Sociedade

O veto à cerveja e a falsa soberania

Bate-cabeça sobre a Lei da Copa mostra visão tacanha de um País que eliminou a bebida, mas não a violência de seus estádios

O símbolo da Copa de uma Copa que até agora não definiu as regras do jogo
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Tenho um pesadelo recorrente. Vira e mexe sonho que dormi demais e acordo só na semana seguinte. Quando me levanto e me dirijo aos jornais, já não reconheço o mundo que deixei antes de dormir: o líder do campeonato não é mais o mesmo,  gente que estava na crista da onda já não é mais importante (muitos nem vivos estão), o que era proibido passa a ser permitido, e o que era permitido passa a ser proibido.

Se estivesse dormindo há uma semana e acordasse agora, por exemplo, tomaria um susto: Jucá e Vaccarezza não são mais interlocutores do governo no Congresso, Ricardo Teixeira caiu de maduro, o ministro do Desenvolvimento Agrário agora é outro e o Corinthians desistiu de esperar Adriano (há uma semana, ele fazia gol e todos falavam “agora vai”).

Mas nada me deixa mais confuso do que a Lei Geral da Copa. Fecho o jornal num dia, abro no outro e tenho a impressão de que dormi meses. Cada hora é uma regra que entra, outra que sai e eu não sei até agora com que roupa vamos para o Mundial.

Enquanto o governo não se decide (até o fechamento deste texto o veto à bebida tinha caído), a cerveja nos estádios já virou questão nacional. Todos sabem que a Fifa é uma entidade privada com regras claras para promover um Mundial. Dá aos países o direito de sediar os jogos – e faturar com turistas e outras atrações – mas em troca leva um circo pré-montado. Quem não aceita as regras tem a possibilidade de não convidar o visitante – e quem convida já faria muito se vigiasse o ralo de dinheiro público empregado em elefantes brancos descartáveis após um mês de jogos.

Mesmo assim o festival de besteiras que assola o País, com o perdão ao velho Stanislaw Ponte Preta, fez com que a liberação (ou não) de bebida alcoólica nos estádios colocasse em risco a soberania nacional. O bate-cabeça sobre a regra, provocado em parte pela troca de interlocutores governistas no Congresso, mobilizou e quase gerou uma crise entre ministros, parlamentares, empresários, lobistas, o papa e a bancada religiosa (e cada vez que eles falam sobre o céu mais fico tentado a pedir asilo no inferno)…

Uma coisa garanto: nas periferia das cidades-sede a população não poderia se importar menos com a questão. Como brasileiro e torcedor, não me incomodo nem um pouco se vier cerveja estrangeira para as arquibancadas – até porque, ao que tudo indica, não estarei na arquibancada em 2014.

O que me incomoda é a patrulha montada sobre a questão – e, nessa, quem chama brasileiro de idiota não é a Fifa nem outra entidade , mas os próprios brasileiros, que se assumem como animais capazes de produzir hecatombes caso cheguem perto de bebida alcoólica.

É possível que garrafas, latas de cerveja ou qualquer outro objeto cortante possam virar armas de destruição em massa nas mãos de uma multidão enraivecida. Que usem copos de plástico ou isopor.

Mas, por aqui, é sempre melhor matar o cavalo com carrapatos do que se livrar dos carrapatos. É sempre mais fácil tratar o problema da bebida como caso de polícia, e não de saúde pública; mais fácil proibir do que prevenir; mais fácil vender remédio do que entender a doença. (Em tempo: estamos falando de consumo moderado num espaço específico; quem bebe e perde o controle é doente, e quem bebe, perde o controle e dirige é criminoso).

Quem defende o veto à bebida nos estádios usa como argumento o fato de o País não poder mudar a sua lei para atender aos caprichos de uma entidade privada. É uma meia verdade: querem é jogar para a torcida, fidelizar um eleitorado conservador crente de que tudo seria melhor se tudo fosse proibido e controlado, do vício ao vestuário, passando pelo modo de falar, pensar e sentir.

No Egito, uma briga entre torcidas levou recentemente dezenas de pessoas ao cemitério. No Brasil, onde não há guerra civil declarada, já vi muito torcedor ameaçar arrebentar portões, juízes e jogadores só por causa de um placar adverso. Não consta que tinham tomado cerveja no intervalo.

Quando o Brasil se candidatou a sediar os jogos, até as pedras do Arpoador sabiam quem a Fifa exige contrapartida aos países que escolhe como sede. Para isso foi criada a Lei Geral da Copa: para que as normas vigentes por aqui fossem adaptadas às condicionantes da entidade.

Simples assim.

Por aqui, a bebida é proibida nos estádios com o argumento de que, sob o efeito do álcool, os torcedores ficam mais propensos à violência. Conversa.

Basta analisar o histórico de pancadarias nos estádios para saber que ignoramos há muito tempo as razões da violência real. Em troca, compramos uma sensação ilusória de que os governantes, ao proibir a população de fazer o que se quer, são os principais vigilantes na ordem e da paz. Outra conversa.

Em campo, jogadores trocam botinadas, incitam a torcida com gestos de declarações; técnicos e dirigentes distribuem provocações a rodo – muitas vezes jogando os próprios atletas contra os torcedores –, as organizadas cantam juras de morte aos rivais (“muitas vezes eu tive que parar, parar, parar pra dar porrada”); ingressos ficam nas mãos de cambistas, estacionamento viram espaço para extorsão; o transporte público para grandes eventos é precário, a pobreza no entorno é notória, enquanto os atos de racismo, homofobia e sexismo são quase entidades culturais nas arquibancadas.

E a culpa é de quem? Do vendedor de bebida.

O fato é que a bebida foi banida há anos dos estádios, mas estamos ainda a anos-luz de banir a violência no futebol. É porque segurança, saúde pública e civilidade não combinam com oportunismo nem hipocrisia.

Tenho um pesadelo recorrente. Vira e mexe sonho que dormi demais e acordo só na semana seguinte. Quando me levanto e me dirijo aos jornais, já não reconheço o mundo que deixei antes de dormir: o líder do campeonato não é mais o mesmo,  gente que estava na crista da onda já não é mais importante (muitos nem vivos estão), o que era proibido passa a ser permitido, e o que era permitido passa a ser proibido.

Se estivesse dormindo há uma semana e acordasse agora, por exemplo, tomaria um susto: Jucá e Vaccarezza não são mais interlocutores do governo no Congresso, Ricardo Teixeira caiu de maduro, o ministro do Desenvolvimento Agrário agora é outro e o Corinthians desistiu de esperar Adriano (há uma semana, ele fazia gol e todos falavam “agora vai”).

Mas nada me deixa mais confuso do que a Lei Geral da Copa. Fecho o jornal num dia, abro no outro e tenho a impressão de que dormi meses. Cada hora é uma regra que entra, outra que sai e eu não sei até agora com que roupa vamos para o Mundial.

Enquanto o governo não se decide (até o fechamento deste texto o veto à bebida tinha caído), a cerveja nos estádios já virou questão nacional. Todos sabem que a Fifa é uma entidade privada com regras claras para promover um Mundial. Dá aos países o direito de sediar os jogos – e faturar com turistas e outras atrações – mas em troca leva um circo pré-montado. Quem não aceita as regras tem a possibilidade de não convidar o visitante – e quem convida já faria muito se vigiasse o ralo de dinheiro público empregado em elefantes brancos descartáveis após um mês de jogos.

Mesmo assim o festival de besteiras que assola o País, com o perdão ao velho Stanislaw Ponte Preta, fez com que a liberação (ou não) de bebida alcoólica nos estádios colocasse em risco a soberania nacional. O bate-cabeça sobre a regra, provocado em parte pela troca de interlocutores governistas no Congresso, mobilizou e quase gerou uma crise entre ministros, parlamentares, empresários, lobistas, o papa e a bancada religiosa (e cada vez que eles falam sobre o céu mais fico tentado a pedir asilo no inferno)…

Uma coisa garanto: nas periferia das cidades-sede a população não poderia se importar menos com a questão. Como brasileiro e torcedor, não me incomodo nem um pouco se vier cerveja estrangeira para as arquibancadas – até porque, ao que tudo indica, não estarei na arquibancada em 2014.

O que me incomoda é a patrulha montada sobre a questão – e, nessa, quem chama brasileiro de idiota não é a Fifa nem outra entidade , mas os próprios brasileiros, que se assumem como animais capazes de produzir hecatombes caso cheguem perto de bebida alcoólica.

É possível que garrafas, latas de cerveja ou qualquer outro objeto cortante possam virar armas de destruição em massa nas mãos de uma multidão enraivecida. Que usem copos de plástico ou isopor.

Mas, por aqui, é sempre melhor matar o cavalo com carrapatos do que se livrar dos carrapatos. É sempre mais fácil tratar o problema da bebida como caso de polícia, e não de saúde pública; mais fácil proibir do que prevenir; mais fácil vender remédio do que entender a doença. (Em tempo: estamos falando de consumo moderado num espaço específico; quem bebe e perde o controle é doente, e quem bebe, perde o controle e dirige é criminoso).

Quem defende o veto à bebida nos estádios usa como argumento o fato de o País não poder mudar a sua lei para atender aos caprichos de uma entidade privada. É uma meia verdade: querem é jogar para a torcida, fidelizar um eleitorado conservador crente de que tudo seria melhor se tudo fosse proibido e controlado, do vício ao vestuário, passando pelo modo de falar, pensar e sentir.

No Egito, uma briga entre torcidas levou recentemente dezenas de pessoas ao cemitério. No Brasil, onde não há guerra civil declarada, já vi muito torcedor ameaçar arrebentar portões, juízes e jogadores só por causa de um placar adverso. Não consta que tinham tomado cerveja no intervalo.

Quando o Brasil se candidatou a sediar os jogos, até as pedras do Arpoador sabiam quem a Fifa exige contrapartida aos países que escolhe como sede. Para isso foi criada a Lei Geral da Copa: para que as normas vigentes por aqui fossem adaptadas às condicionantes da entidade.

Simples assim.

Por aqui, a bebida é proibida nos estádios com o argumento de que, sob o efeito do álcool, os torcedores ficam mais propensos à violência. Conversa.

Basta analisar o histórico de pancadarias nos estádios para saber que ignoramos há muito tempo as razões da violência real. Em troca, compramos uma sensação ilusória de que os governantes, ao proibir a população de fazer o que se quer, são os principais vigilantes na ordem e da paz. Outra conversa.

Em campo, jogadores trocam botinadas, incitam a torcida com gestos de declarações; técnicos e dirigentes distribuem provocações a rodo – muitas vezes jogando os próprios atletas contra os torcedores –, as organizadas cantam juras de morte aos rivais (“muitas vezes eu tive que parar, parar, parar pra dar porrada”); ingressos ficam nas mãos de cambistas, estacionamento viram espaço para extorsão; o transporte público para grandes eventos é precário, a pobreza no entorno é notória, enquanto os atos de racismo, homofobia e sexismo são quase entidades culturais nas arquibancadas.

E a culpa é de quem? Do vendedor de bebida.

O fato é que a bebida foi banida há anos dos estádios, mas estamos ainda a anos-luz de banir a violência no futebol. É porque segurança, saúde pública e civilidade não combinam com oportunismo nem hipocrisia.

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