Política

O último e tardio “aviso” a Jango

Uma carta inédita do general Pery Beviláqua de 31 de março de 1964

Ambíguo. Beviláqua seria cassado pela ditadura por denunciar a farsa dos inquéritos policiais militares. Foto: Arquivo/Ag. O Globo
Apoie Siga-nos no

No dia do golpe, 31 de março de 1964, o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), general Pery Constant Beviláqua, encaminhou ao presidente João Goulart um documento que o alertava sobre os ânimos exaltados na caserna. No texto, provavelmente nunca lido por Jango, Beviláqua faz uma longa análise a respeito do quadro de indisciplina militar momentos depois de iniciada a quartelada, assusta-se com a perspectiva de implantação de uma ditadura “comuno-sindicalista” no País e dá um conselho ao presidente. Segundo o general, a única maneira de Goulart restabelecer a confiança dos chefes militares seria fazer uma “formal declaração” de que iria se opor às “greves políticas” anunciadas à época pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e ordenar uma intervenção nos sindicatos envolvidos nos planos de paralisação.

Confira (em PDF) a íntegra do documento.

Beviláqua era uma figura controversa na caserna. Oficial legalista, continuou chefe do Emfa após o golpe simplesmente porque os golpistas não sabiam o que fazer com ele. Em 1965 foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar (STM), mas logo se desentendeu com a turma da linha dura. Em 1968 foi cassado com base no Ato Institucional número 5, o AI-5, por ter denunciado a fraude em que se transformaram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da ditadura, usados para perseguir, prender, torturar e matar adversários do regime. Proscrito da caserna, Beviláqua filiou-se ao antigo MDB, única oposição permitida pelos generais, e foi um dos criadores do Comitê Nacional de Anistia.

Foi, ele mesmo, anistiado em 1979, e aposentado como ministro do STM. É pouco provável, contudo, que tenha escrito o documento de 31 de março de 1964 sem saber da movimentação golpista à sua volta. Isso porque o chefe do Emfa era o responsável pela organização e emprego conjunto das Forcas Armadas. Também era responsável por emitir pareceres sobre todos os problemas relativos à segurança nacional, além de exercer a alta direção dos serviços de informação e contrainformação militares. Ou seja, Beviláqua sabia – ou deveria saber – de tudo.

Ninguém entende quais foram as razões que o levaram a produzir um alerta a Jango, registrado num documento de nove páginas, horas depois de os tanques do general Olímpio Mourão Filho terem partido de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964. Beviláqua morreu em 1990, aos 91 anos, sem nunca ter tocado no assunto, ao menos publicamente.

Embora tenha sempre se mantido longe da linha dura, Beviláqua era anticomunista de carteirinha e via na agitação sindical pré-1964 uma tentativa de substituição dos partidos democráticos por “ajuntamentos dominados por comunistas”, dos quais ele queria distância do governo e da República. O “espectro de uma ditadura comuno-sindical”, alertava o general, contribuiria, além de tudo, para o agravamento da inflação.

O documento encaminhado a Jango faz parte de uma papelada secreta encontrada há três meses no prédio do Ministério da Defesa, em Brasília, onde por 35 anos funcionou a sede do Emfa, extinto em 1999. Ao todo, foram achados 37 volumes encadernados classificados como sigilosos, além de 52 volumes de boletins reservados. Por ordem do ministro Celso Amorim, a papelada foi enviada ao Arquivo Nacional para ser colocada à disposição do público. Além da mensagem de Beviláqua há muitas comunicações administrativas (ofícios, memorandos, mensagens) e diversos relatórios sobre a conjuntura política nacional e internacional entre 1946 e 1991.

A mensagem de Beviláqua a Jango pode ser interpretada tanto como uma peça de cinismo quanto um atestado de ingenuidade do chefe do Emfa. O distanciamento histórico, contudo, dá a cada conselho do general um toque de ironia. Ao tratar do tema “Exame da situação militar”, Beviláqua alerta para a necessidade de impedir a infiltração de “elementos subversivos” nas Forças Armadas, pessoas que, segundo ele, “chegam a iludir a boa-fé de certas autoridades”, uma insinuação pouco sutil ao próprio presidente. O moral da tropa, avisa o general no dia do golpe, poderia ser considerado “bom”, mas apresentava-se “suscetível de (sic) bruscas variações” por causa da tensão provocada pelo processo “comuno-desagregador em desenvolvimento no País”.

Beviláqua cita, claro, o comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, como um evento que teve “funda repercussão nos meios militares”. E deu a dica do que iria acabar se consolidando dali a algumas horas. “Os chefes militares das três Forças Armadas, em todos os graus da hierarquia, veem com crescente apreensão o desenvolvimento da grave crise de autoridade”. De acordo com o general, “o sistema comuno-sindical-grevista, na medida em que se fortalece e amplia, torna-se cada vez mais perigoso para a segurança do País”.

Uma “República Sindicalista”, delírio comum entre os generais em 1964, diz Beviláqua ao presidente João Goulart, só poderia ser implantada no Brasil “sobre o cadáver moral” das Forças Armadas. Não deixa de ser uma ironia o fato de que, em seguida, uma ditadura tenha sido implantada sobre o cadáver moral do País. Por ingenuidade ou ideologia, o general via nos sindicalistas, e não nos militares golpistas, “inimigos mortais” da democracia, do que, justiça seja feita, iria se arrepender, poucos anos depois, ao ser cassado, entre outros motivos, por conceder habeas corpus demais quando ministro do STM.

No item “Impressão sobre a situação no que concerne à segurança interna”, Beviláqua informa a Jango que as Forças Armadas estavam, suprema ironia, “prontas a cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País, que a todos obrigam”. Mas faz uma ressalva: “Desde que prontamente seja restabelecido o princípio da autoridade e o clima de disciplina militar rotundamente abalados pelas últimas ocorrências”. E repreende Goulart por ele ter ido, na noite anterior ao golpe, receber uma homenagem de sargentos da Marinha, Exército, Aeronáutica e das polícias militares no Automóvel Clube do Rio de Janeiro.

Autor de O Sequestro dos Uruguaios, primeiro livro sobre a Operação Condor, o consórcio do terror montado pelas ditaduras da América do Sul nas décadas de 1970/1980, o jornalista Luiz Cláudio Cunha afirma nunca ter visto o texto do general Beviláqua. Depois de ler o ­documento escrito pelo general, a pedido de CartaCapital, Cunha, recentemente nomeado consultor da Comissão Nacional da Verdade, avaliou que o registro não destoa do ambiente golpista da época. “O Pery, no documento, repete o que os golpistas diziam há tempos.”

No dia do golpe, 31 de março de 1964, o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), general Pery Constant Beviláqua, encaminhou ao presidente João Goulart um documento que o alertava sobre os ânimos exaltados na caserna. No texto, provavelmente nunca lido por Jango, Beviláqua faz uma longa análise a respeito do quadro de indisciplina militar momentos depois de iniciada a quartelada, assusta-se com a perspectiva de implantação de uma ditadura “comuno-sindicalista” no País e dá um conselho ao presidente. Segundo o general, a única maneira de Goulart restabelecer a confiança dos chefes militares seria fazer uma “formal declaração” de que iria se opor às “greves políticas” anunciadas à época pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e ordenar uma intervenção nos sindicatos envolvidos nos planos de paralisação.

Confira (em PDF) a íntegra do documento.

Beviláqua era uma figura controversa na caserna. Oficial legalista, continuou chefe do Emfa após o golpe simplesmente porque os golpistas não sabiam o que fazer com ele. Em 1965 foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar (STM), mas logo se desentendeu com a turma da linha dura. Em 1968 foi cassado com base no Ato Institucional número 5, o AI-5, por ter denunciado a fraude em que se transformaram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da ditadura, usados para perseguir, prender, torturar e matar adversários do regime. Proscrito da caserna, Beviláqua filiou-se ao antigo MDB, única oposição permitida pelos generais, e foi um dos criadores do Comitê Nacional de Anistia.

Foi, ele mesmo, anistiado em 1979, e aposentado como ministro do STM. É pouco provável, contudo, que tenha escrito o documento de 31 de março de 1964 sem saber da movimentação golpista à sua volta. Isso porque o chefe do Emfa era o responsável pela organização e emprego conjunto das Forcas Armadas. Também era responsável por emitir pareceres sobre todos os problemas relativos à segurança nacional, além de exercer a alta direção dos serviços de informação e contrainformação militares. Ou seja, Beviláqua sabia – ou deveria saber – de tudo.

Ninguém entende quais foram as razões que o levaram a produzir um alerta a Jango, registrado num documento de nove páginas, horas depois de os tanques do general Olímpio Mourão Filho terem partido de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964. Beviláqua morreu em 1990, aos 91 anos, sem nunca ter tocado no assunto, ao menos publicamente.

Embora tenha sempre se mantido longe da linha dura, Beviláqua era anticomunista de carteirinha e via na agitação sindical pré-1964 uma tentativa de substituição dos partidos democráticos por “ajuntamentos dominados por comunistas”, dos quais ele queria distância do governo e da República. O “espectro de uma ditadura comuno-sindical”, alertava o general, contribuiria, além de tudo, para o agravamento da inflação.

O documento encaminhado a Jango faz parte de uma papelada secreta encontrada há três meses no prédio do Ministério da Defesa, em Brasília, onde por 35 anos funcionou a sede do Emfa, extinto em 1999. Ao todo, foram achados 37 volumes encadernados classificados como sigilosos, além de 52 volumes de boletins reservados. Por ordem do ministro Celso Amorim, a papelada foi enviada ao Arquivo Nacional para ser colocada à disposição do público. Além da mensagem de Beviláqua há muitas comunicações administrativas (ofícios, memorandos, mensagens) e diversos relatórios sobre a conjuntura política nacional e internacional entre 1946 e 1991.

A mensagem de Beviláqua a Jango pode ser interpretada tanto como uma peça de cinismo quanto um atestado de ingenuidade do chefe do Emfa. O distanciamento histórico, contudo, dá a cada conselho do general um toque de ironia. Ao tratar do tema “Exame da situação militar”, Beviláqua alerta para a necessidade de impedir a infiltração de “elementos subversivos” nas Forças Armadas, pessoas que, segundo ele, “chegam a iludir a boa-fé de certas autoridades”, uma insinuação pouco sutil ao próprio presidente. O moral da tropa, avisa o general no dia do golpe, poderia ser considerado “bom”, mas apresentava-se “suscetível de (sic) bruscas variações” por causa da tensão provocada pelo processo “comuno-desagregador em desenvolvimento no País”.

Beviláqua cita, claro, o comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, como um evento que teve “funda repercussão nos meios militares”. E deu a dica do que iria acabar se consolidando dali a algumas horas. “Os chefes militares das três Forças Armadas, em todos os graus da hierarquia, veem com crescente apreensão o desenvolvimento da grave crise de autoridade”. De acordo com o general, “o sistema comuno-sindical-grevista, na medida em que se fortalece e amplia, torna-se cada vez mais perigoso para a segurança do País”.

Uma “República Sindicalista”, delírio comum entre os generais em 1964, diz Beviláqua ao presidente João Goulart, só poderia ser implantada no Brasil “sobre o cadáver moral” das Forças Armadas. Não deixa de ser uma ironia o fato de que, em seguida, uma ditadura tenha sido implantada sobre o cadáver moral do País. Por ingenuidade ou ideologia, o general via nos sindicalistas, e não nos militares golpistas, “inimigos mortais” da democracia, do que, justiça seja feita, iria se arrepender, poucos anos depois, ao ser cassado, entre outros motivos, por conceder habeas corpus demais quando ministro do STM.

No item “Impressão sobre a situação no que concerne à segurança interna”, Beviláqua informa a Jango que as Forças Armadas estavam, suprema ironia, “prontas a cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País, que a todos obrigam”. Mas faz uma ressalva: “Desde que prontamente seja restabelecido o princípio da autoridade e o clima de disciplina militar rotundamente abalados pelas últimas ocorrências”. E repreende Goulart por ele ter ido, na noite anterior ao golpe, receber uma homenagem de sargentos da Marinha, Exército, Aeronáutica e das polícias militares no Automóvel Clube do Rio de Janeiro.

Autor de O Sequestro dos Uruguaios, primeiro livro sobre a Operação Condor, o consórcio do terror montado pelas ditaduras da América do Sul nas décadas de 1970/1980, o jornalista Luiz Cláudio Cunha afirma nunca ter visto o texto do general Beviláqua. Depois de ler o ­documento escrito pelo general, a pedido de CartaCapital, Cunha, recentemente nomeado consultor da Comissão Nacional da Verdade, avaliou que o registro não destoa do ambiente golpista da época. “O Pery, no documento, repete o que os golpistas diziam há tempos.”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar