Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

O fim do feminismo

Nem só de textão lacrador, das brigas de internet e da irritabilidade de umas e outras vive a episteme feminista

Rovena Rosa/Agência Brasil/Fotos Públicas
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Apesar dos muitos textos que questionam a validade do feminismo, o fim do movimento não chegou, e felizmente não está nem perto de chegar.

(Ou infelizmente: o fim do feminismo, afinal de contas, só vai chegar depois do fim da desigualdade de gênero, e como diz o famoso jargão de internet, “eu serei uma pós-feminista no pós-patriarcado”)

Engana-se quem pensa que feministas são feministas por amor ao feminismo. Arrisco dizer, mesmo não almejando falar por todas nós, que se nutrimos sentimentos afetuosos em relação ao movimento, é por causa de seu caráter libertador, e não por um apego cego à palavra. Feministas, pensando bem, são pessoas que trabalham pelo fim do feminismo – ou ao menos pelo fim da necessidade de sua existência.

O feminismo é resistência organizada ao patriarcado. Relativamente organizada: grupos e organizações feministas se arranjam em si mesmas e/ou em colaboração com outras, mas não no sentido corporativo. O feminismo não é uma marca: não existe manual de identidade nem memorandos com diretrizes operacionais, e muito menos decisões executivas que vêm de um escritório central.

É exatamente por isso que há tanta disputa entre feminismos – assim mesmo, no plural. Sem diretrizes unificadoras, altercações sobre quem é mais ou menos feminista, ou sabe mais ou menos sobre feminismo, são frequentes.

Também é por isso que anti-feministas geralmente têm êxito em nos posicionar como o que não somos: sem uma centralização institucional que nos oriente a todas, a estratégia de “dividir e conquistar” se encontra já feita, e é fácil retratar o movimento todo por sua parte constituinte menos engajada ou mais hipócrita ou menos diplomática ou mais treteira.

Ainda assim, existem alguns pilares fundamentais que informam todas as vertentes e correntes sem precisar oferecer pareceres unificadores. É seguro afirmar que o patriarcado é um deles: todos os feminismos o reconhecem como objeto de desconstrução.

A ideologia dominante (e de dominação) patriarcal é um conceito organizador da produção tanto do pensamento quanto de ações feministas. Com perdão da piada infame, o patriarcado é ponto pacífico feminista, e sua dissolução é um dos principais focos do nosso trabalho.

O feminismo é um movimento feito por pessoas e grupos sociais diversos, e embora a experiência das mulheres continue sendo o norte da empreitada, o feminismo reconhece que as experiências de mulheres diferentes são necessariamente diversas, e variam em complexidade.

Ironicamente, é bastante por causa do feminismo que a categoria “mulher” vem expandindo para além do nosso entendimento tradicional do que significa “ser mulher”. Foi o feminismo que questionou a categoria “mulher” e as restrições sociais impostas a quem nela cabe. Foi o feminismo que apontou que somos o segundo sexo, que expôs a mística feminina e que revelou o mito da belza. Ao quebrar as amarras que restringem as experiências das mulheres, acabamos por criar novas possibilidades para sermos mulheres.

Assim, insistir que o feminismo seja homogêneo apaga as complexidades e tensionamentos do movimento, e eclipsa a possibilidade de aprender e evoluir com os debates entre suas vertentes e correntes.

Um dos debates que causou dissabores e conflitos recentemente foi acerca do PL Gabriela Leite, um projeto de lei que visa regulamentar certos aspectos referentes ao trabalho de profissionais do sexo.

Os corpos das prostitutas estão no epicentro de muitas tensões sociais, e debates feministas sobre prostituição sempre foram espinhosos por concentrarem em si (em ordem não hierárquica, e para aquém e além do feminismo): sexo, dinheiro, relações de poder, direitos trabalhistas, moralidade, legalidade, identidades sexuais e de gênero, violência e linguagem.

Algumas feministas se opõem ao PL, e argumentam que chamá-lo de “regulamentação da prostituição” seria falacioso, pois ele não trata de legalizar a prostituição, ou de garantir direitos às mulheres em situação de prostituição, mas sim de regulamentar a cafetinagem.

Outras alegam que quem argumenta contra o PL não conhece a realidade da maioria dos prostíbulos, muito menos a vivência real das prostitutas, por isso deveria ser delas a voz mais ativa desta conversa.

Uma terceira vertente assiste o debate com angústia, propondo que se ampliem as plataformas de diálogo – afinal as mulheres são múltiplas e plurais, e o feminismo também deve ser. A libertação de uma mulher não pode partir dos termos de outra, e insistir nesta premissa não deixa de ser uma violência.

No entanto não é somente conflitos como esse – que tendem a dominar o discurso por períodos de tempo – o que faz com que muita gente fique exasperada com o feminismo, mas sim a sensação de que eles são todo o feminismo. E é geralmente em momentos conturbados do movimento que ações anti-feministas fazem a festa.

Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres é um livro de 1991, da jornalista estadunidense vencedora do Prêmio Pulitzer Susan Faludi, que articula a existência de reações midiáticas, deliberadas e orquestradas, contra avanços feministas.

O livro é pautado em matérias e reportagens da mídia norte-americana durante o feminismo da chamada “segunda onda” da década de 1970, e de acordo com Faludi o backlash (um contra-ataque organizado) postula que é o feminismo a fonte dos problemas que afligem as mulheres.

Faludi argumenta que muitos dos problemas levantados por articuladores do backlash são fantasiosos e construídos por uma mídia machista que não tem evidência confiável para substanciá-los, e também que o contra-ataque é uma tendência histórica, recorrente quando as mulheres alcançam ganhos substanciais através dos nossos esforços por equidade. Ela diz (em tradução livre minha): “O backlash anti-feminismo é definido não pela concretização da plena igualdade das mulheres, mas pelo aumento das possibilidades do que podemos conquistar. É um ataque preventivo, que interrompe a corrida das mulheres muito antes que elas atinjam a linha de chegada”.

Teorias feministas e sobre gênero representam bem a sofisticação da teoria social. Me seguro para declarar isso, por achar a asserção meio arrogante. Mas o que é realmente arrogante é usar argumentos anti-feministas, seja pautados na biologia ou em noções positivistas, sem se dar conta de que é a partir deles que a esta episteme, que é inerentemente crítica, se constrói.

Quem quer de fato dialogar e aprender não goza com o prazer perverso de desqualificar e deslegitimar o que não conhece. Reproduzir o que os declaradamente anti-feministas dizem sobre o feminismo sem engajar com o que as próprias feministas têm a dizer sobre o movimento revela uma antipatia prévia por ele que impede a pessoa de aprender a partir do que não consegue admitir que não entende.

Nem só de textão lacrador, das brigas de internet e da irritabilidade de umas e outras vive a episteme feminista. A produção teórica e os debates entre vertentes são muito mais cheios de nuance e muito mais dialógicos do que o pânico egóico das redes sociais ou as mídias misóginas fazem parecer.

Aos arrogantes retrógrados e mídias patriarcais, meu mais sincero boa sorte. O poder institucional para produzir contra-ataques a partir das nossas próprias conversas ainda é de vocês. Mas o mundo segue sendo de todos e todas, e o feminismo não somente não chegou ao fim, mas só faz crescer.

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