Sociedade

Nas passarelas, Brasil ainda é branco e de olhos azuis

Estilista baiana Carol Barreto, que desfilou na Black Fashion Week, fala sobre moda, racismo e construções culturais dos corpos

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Em entrevista exclusiva, a estilista baiana Carol Barreto, que desfilou na Black Fashion Week Paris e agora apresentará seu trabalho nos EUA e Canadá, fala sobre moda, racismo e construções culturais dos corpos.

Para Barreto, que também é professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), estilistas negros e negras são completamente invisibilizados no Brasil. “Nossas marcas e nossos discursos ainda são referenciados pela branquitude européia e estadunidense”, afirma.

CartaCapital: No final de 2015 você desfilou sua coleção “Vozes” na Black Fashion Week Paris. Qual é a ideia da coleção? 

Carol Barreto: “Vozes: Moda e Ancestralidades”, que é o nome da coleção atual, traz um enfrentamento a partir da minha perspectiva de militância como feminista negra e de atuação na moda com uma prática antirracista.

Eu já vinha fazendo um debate sobre pós-colonialidade, refletindo sobre quais seriam os processos violentos da colonização e sobre quais seriam as marcas de subalternização e de resistência. No painel semântico, que geralmente a gente faz reunindo imagens de referência para construir a coleção, usei referências de Yinka Shonibare, que é um artista visual de Londres. Conheci o trabalho dele a partir de uma peça que eu encontrei no Museu de Arte Moderna da Bahia e me surpreendeu o modo como ele demonstra se incomodar muito com a obrigatoriedade de falar de sua cultura “original”.

Como toda pessoa negra na Europa, ele tem que grifar que é de origem nigeriana, sendo que ele nasceu e cresceu em Londres. E ele transformou isso ao contrário, subverteu. Ele disse “tá bom, professores das escolas de arte, eu vou fazer isso, mas vou fazer criticando a nossa ausência na história da arte produzida por vocês”. Aí ele passa a reconstruir os quadros clássicos, principalmente da época do rococó, século XVIII europeu, reconstruindo aquelas vestes todas em tecido africano e colocando em manequins decapitados.

Isso mexeu comigo quando eu encontrei a escultura chamada “como estourar duas cabeças ao mesmo tempo” (How to Blow Up Two Heads Once – gentleman) de 2006, que mostra dois homens com indumentária da corte francesa e que estão apontando armas um para o outro, sem cabeças já. E como eu fui professora de história da moda e da arte e sempre me incomodei com essa ausência, aquilo ficou.

A segunda pesquisa foi sobre as Herrero da Namíbia, que tiveram contato com colonizadores alemães e adotaram a indumentária vitoriana no início do século XIX e reconstruíram isso com as características da cultura africana.

Os Sapeur do Congo foi um outro recorte para inspiração na alfaiataria multicolorida desses Dândis africanos, que leio como uma maneira de subversão de uma padrão estreito – símbolo forte de masculinidade e branquitude europeizada, marcador de classe social – que com a assinatura desse grupo cultural do Congo ganha combinações e um colorido incrível, numa interlocução que também vejo como pós-colonial. Eu queria provocar esse contexto da moda comercial, que é grande referência de colonização.

CC: Qual a importância de haver uma semana de moda negra?

CB: O evento original era a Dakar Fashion Week no Senegal e se desdobrou nas Black Fashion Weeks. A estilista Adama Ndiaye, que organiza ambos os eventos, cresceu em Paris, por isso adotou como nome da marca Adama Paris. É observando o discurso dela que eu começo a chamar as minhas escritas de modAtivismo e vejo que não tem pretensão nenhuma de não parecer enfrentamento político.

Especialmente na Dakar Fashion Week, quando ela declara que no processo de seleção de modelos a exigência é que elas não usem o creme de clareamento de pele – que mostra uma experiência tão internalizada de racismo que as faz se submeter a um produto extremamente cancerígeno e impactante para clarear a sua pele, como fazemos aqui como nossos cabelos.

Aqui no Brasil, no campo da moda, os corpos e imagens das modelos negras atendem ao mínimo imposto pelo Ministério Público de 10% de participação. Seja de Fortaleza ao Rio Grande do Sul, em qualquer evento de moda, essa é uma triste realidade. A quantidade e a qualidade cultural em termos de pesquisa, de estilistas negros e negras é enorme, mas somos completamente invisibilizadas no Brasil, isso é perceptível quando vemos que não há espaço pra outras corporalidades, outras formas de vestir, que nossos espaços de expressão cultural que foram subssumidos.

CC: Fale um pouco mais sobre esse lugar da moda e da produção dos corpos.

CB: Geralmente os eventos de moda contratam o casting, aquele grupo de modelos para desfilar. Quando eu faço um desfile de moda num evento comercial e eu tenho o mínimo de possibilidade de opinar sobre o casting, eu sempre faço a exigência de que essas modelos sejam negras, mas nem sempre é possível por diversas questões da organização.

Antes de pensar na aparência do casting é também necessário questionar e reconstruir a tabela antropométrica vigente – a tabela de medida que a gente replica na modelagem, que tem padrões variados para cada país mas que, a depender da visibilidade que determinadas marcas têm, elas acabam impondo um padrão. O “eu quero ser magra” alimenta uma indústria enorme.

Ou seja, temos que questionar as medidas para que vistam corpos mais reais e o corpo das mulheres negras é muito mais curvilíneo do que das caucasianas. Mas eu ainda não tenho capital para refazer essa tabela porque isso pressupõe um estudo de um ano de laboratório, uma pesquisa científica para quebrá-la e materializá-la em peças pilotos e assim construir eventos onde eu mesma possa custear as modelos nos desfiles.

No Brasil, a passarela ainda espelha um país branco, de olhos azuis. Num evento onde eu desfilei em Fortaleza em 2014, mesmo o tema da coleção falando sobre processos de identificação das mulheres negras por meio dos cabelos na diáspora africana – a referência era a série fotográfica Hairstyle de 1968 do nigeriano J.D. Ojeikere – nós levamos todos os cabelos prontos, com traças sintéticas que criamos como styling, porque já sabíamos, analisando o casting dos eventos anteriores, que teríamos predominantemente modelos loiras do sul do Brasil.

Então, mesmo estando no Nordeste, isso é alarmante. Onde está o casting local, que nesse caso seria predominante de origem indígena? Na Bahia também não é fácil, mesmo que sejamos maioria numérica da população, as modelos negras trabalham pouco e compõem a cota obrigatória na moda e na publicidade.

Com o meu aprofundamento no pensamento feminista negro, como professora da área de estudos de gênero, cultura e relações raciais, hoje desenvolvendo minha pesquisa de doutorado refletindo sobre o meu lugar de fala e esses processos criativos.

Foi a produção das feministas negras que me impulsionou a não ter os pudores que eu construí na minha formação inteira como estudante de literatura e artes na graduação. Percebi agora que o conceito de arte que aprendi naquele contexto é branco e androcentrado. Se não fosse o feminismo, eu falaria desse outro alguém completamente diferente de mim.

CartaCapital: Como será agora sua exposição nos Estados Unidos e no Canadá?

CB: É o questionamento da efemeridade do produto de moda. Estou trabalhando na coleção “Vozes” desde agosto de 2015, mas em fevereiro já havia desenhado, definido materiais, parcerias e fomos construindo tecido para depois construir a roupa, definir o styling para depois elaborar a foto em outubro. Não faz sentido ela ser pulverizada após dez minutos de desfile em 12 de dezembro.

Assim, depois do desfile na Black Fashion Week Paris, recebi um convite para integrar uma Fashion-Art Exhibition em Toronto, no Canadá. Essa exposição foi lançada em 5 de fevereiro de 2016 no Royal Ontario Museum como parte de Friday Night Live e de 6 a 12 de fevereiro ficou aberta à visitação no Harbourfront Centre.

O tema que recebemos como mote da criação foi água, por isso retornei à pesquisa da Coleção Fluxus que já trazia o oceano e a diáspora africana como temas e reverenciei a Rainha do Mar, a divindade mais festejada na minha atual região de moradia, o bairro do Rio Vermelho, na cidade de Salvador, e a tentei traduzir a minha relação com essa Orixá. Por isso chamei a peça de Yemonja e mais uma vez pude contar com o trabalho de Ju Fonseca e Maria Viana como co-criadoras.

A novidade agora é minha viagem para Chicago (EUA) em março de 2016. Para os Estados Unidos eu vou levar um relato de toda essa trajetória que falei aqui, com uma programação que conta com dois Arts Talks. Para mim esse é momento diferente na minha trajetória, quando me aproximo do universo da arte. 

 

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