Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

Na crise, o silenciamento e a censura crescem

A frequência perturbadora de episódios de cerceamento de opinião deveria servir de alerta para a sociedade

Fernando Frazão / Agência Brasil
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Nunca foi fácil ser feminista. Tentativas de nos silenciar ou de neutralizar, manobrar e ridicularizar as nossas falas e ações são acontecimentos diários para quem se dedica a expor o patriarcado, e pode-se somar a isso a violência simbólica e real que vem em nossa direção, cotidianamente, de todos os lados.

Experiência pessoal e observação histórica nos indicam o que tende a acontecer com mulheres que ousam dissentir. As finalidades da dissidência feminista são a liberdade e a equidade, mas nem sempre a jornada é agradável. Os ossos do ofício feminista são osso – mas continuamos, afinal há razões de sobra para falarmos sobre gênero.

Homens recebem salários 30% maiores que as mulheres, que também são minoria em cargos de poder, do governo ao comando de empresas e instituições. 48% das mulheres agredidas declaram que a violência acontece em casa. Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos. Um estupro ocorre a cada 11 minutos. Feminicídio ainda é tratado como crime passional. Uma morte LGBT acontece a cada 28 horas. E tudo isso apenas no Brasil, que é o País que mais mata população trans.

Ainda assim, online e off-line, pessoas que declaram não saber nem querer saber do que se tratam o feminismo e o debate acerca de gênero não se acanham em reproduzir falácias sobre os dois discursos. É impressionante o tipo de mitologia que brota da ignorância.

Ameaças artificiais oriundas de uma suposta doutrinação no que chamam de “ideologia de gênero” são propagadas e repetidas à exaustão, a ponto de as palavras “feminismo” e “gênero” provocarem temores irracionais, como a fantasia de que o mero contato com uma fala feminista sobre gênero vá transformar machões convictos em bichas loucas ou fazer com que todos os banheiros do mundo sejam unissex…

Além disso, muitos sequer dialogam com quem se propõe a apresentar a episteme feminista ou de gênero, e pior: volta e meia criam impedimentos institucionais para que não possamos apresenta-las a quem demonstra interesse.

Aqui é importante lembrar que o feminismo não é uma ideologia bem como ressaltar que “gênero” é uma categoria de análise. Tanto feministas quanto quem estuda e trabalha com gênero fazem o oposto de doutrinação ideológica.

Gênero e feminismo são ferramentas de uma crítica social que questiona precisamente a ideologia do patriarcado, ou seja, a dominação masculina que se apresenta sob a forma de estruturas de poder que relegam mulheres (homossexuais, transexuais e outros grupos sociais) a posições socialmente inferiores.

Tentativas de estabelecer diálogo muitas vezes também parecem ser em vão, pois muitos dos nossos interlocutores tendem a ter cabeça feita a respeito do feminismo, das feministas ou de questões de gênero. As ideias fixas – ou achismos – que são arremessadas no que deveria ser um debate, mas raramente se constitui como tal, costumam ser pautadas nas impressões e medos pessoais de quem não se dispõe a sequer ouvir, quem dirá assimilar o que propomos.

Manobras de silenciamento também são constantes, e reconhecemos a linguagem e as estratégias que funcionam como “cale-se”.

Acusar as feministas de histéricas, loucas, de estarmos na TPM, questionar nossa sexualidade, ou ainda sugerir que a gente vá lavar uma louça são táticas de desqualificação cuja finalidade é deslegitimar a voz política das mulheres, ou demonstrar que ela não é desejada.

Enfrentar obstáculos como estes é parte intrínseca da rotina de uma feminista que fala. Ser feminista exige resiliência, além de muita paciência para observar, catalogar, articular e expor de forma compreensível a profusão de evidências que sustentam nossas convicções.

No entanto é notável – e alarmante – o crescimento e a naturalização de formas conservadoras e autoritárias de pensar e agir, que não admitem divergências e que se impõem de formas totalitárias tanto por instituições quanto por membros da sociedade civil.

Infelizmente estou acostumada a sofrer ataques violentos e acusações descabidas nas minhas redes sociais, e recentemente uma palestra sobre gênero que vou ministrar em uma escola teve que ser adiada pela direção para apaziguar a aversão que a mera menção da palavra “gênero” causou em alguns pais.

No sábado 30, mulheres que participavam de um debate sobre a descriminalização do aborto na Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS) foram interpeladas pela Guarda Metropolitana. De acordo com os soldados o encontro havia sido denunciado, e as organizadoras tiveram seus nomes anotados para inserção em um relatório policial.

Este tipo de silenciamento é grave, e não está sendo imposto apenas às feministas. Estamos começando a ver mais e mais atos de censura do pensamento crítico de forma geral.

A Sociedade Brasileira de Sociologia declarou ter recebido frequentes denúncias relatando a demissão de professores devido a supostas orientações ideológicas, e manifestou repúdio ao cerceamento da liberdade docente.

Em Alagoas um projeto de lei aprovado por deputados em 26 de abril, prevê punição a professores que propuserem debates considerados polêmicos (e é nebuloso o que qualifica um debate como “polêmico”), e já foi apelidado por educadores de “lei da mordaça”.

No dia 27 de abril o Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da UFMG, convocou uma Assembleia Geral Extraordinária com o objetivo de discutir o momento politico vivenciado pelo país, mas no dia 29, pouco antes do horário marcado para a instalação da reunião, estudantes foram surpreendidos por uma decisão judicial que impedia a realização da mesma.

Muitas aulas públicas sobre democracia vêm ocorrendo no País, e a de Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais da PUC-SP, foi interrompida na manhã do dia 28 de abril pela Polícia Militar.

A censura institucionalizada é um projeto que percebemos aos poucos e que a sociedade não sente acontecer como de golpe. Ficamos sabendo sobre o silenciamento de uma amiga no sul, lemos uma notícia de censura veiculada no norte, ou acompanhamos uma postagem sobre intervenção judicial que viraliza nas redes sociais, e é plausível acreditar que sejam casos extraordinários, ou fatos isolados.

No entanto, quem trabalha com a disseminação do pensamento crítico, seja através de militância, pedagogia ou mídia, sente na pele as formas de silenciamento que precedem e fomentam a censura institucional como a reconhecemos.

Os censores de hoje – cada dia mais legitimados por configurações políticas conservadoras que corroboram com a ideologia patriarcal de dominação – não precisam nem usar camuflagem: eles se camuflam entre nós.

Pela liberdade de expressão que é característica de estados democráticos de direito, que afastem logo de nós este cale-se…

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