Sociedade

Santa Maria, a impunidade que financia a tragédia

É necessário implodir essa cultura da irresponsabilidade, da imprevidência e do lucro acima da vida

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Por Maria Stela Grossi Porto

Até a data de hoje, 11 de fevereiro de 2013, 239 jovens perderam a vida em decorrência de um incêndio, em 27 de janeiro, na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Duas semanas depois do ocorrido, falar sobre esse fato, sem me tornar repetitiva ou sem resvalar no lugar comum das denúncias e acusações, revela-se tarefa difícil: a mídia ocupou-se exaustivamente do acontecido; além de compartilhar a dor de parentes e amigos, que se transformou na dor de toda uma cidade, a preocupação maior dos órgãos de comunicação foi no sentido de discutir e apurar responsabilidades. Tanto se falou sobre isso que pareceria nada mais haver a dizer. Gostaria, no entanto, de ressaltar alguns aspectos menos comentados sobre o fato e que são igualmente merecedores de atenção.

Começo também cobrando responsabilidades. Na ausência de uma cultura que privilegie o planejamento responsável, a prevenção e a obediência a normas elementares de segurança em locais públicos ou em edificações que reúnam grande quantidade de pessoas (em terra, água ou ar), a sociedade grita sua impotência e angustia se perguntando: Por quê? De quem é a culpa? Quem são os responsáveis?

Perguntas necessárias, embora insuficientes, uma vez que não revertem o irrecuperável de tantas vidas desperdiçadas, não vividas. Vidas que certamente fariam sentido em um futuro próximo, em diferentes dimensões da vida social. Necessárias, entretanto, como estratégia e mecanismo possíveis visando a implodir essa cultura da irresponsabilidade, da imprevidência, do lucro acima da vida. Episódios como o de Santa Maria, que se espraiam muito além de seu espaço de acontecimento e chocam o mundo, só perderão seu triste caráter de reincidência a partir de uma atitude ágil e eficiente das autoridades – governos e justiça- apontando e punindo os responsáveis.

Considere-se dois aspectos distintos mas interligados da questão. Por um lado, a impunidade é o combustível para a irresponsabilidade de proprietários, preocupados com o lucro rápido e a baixo custo e que, por isso mesmo, se ‘descuidam’ das normas  elementares de construção e funcionamento de seus negócios. A sociedade se depara com frequência com notícias de estabelecimentos que funcionam sem permissão, ou por meio de liminares que, a rigor, legalizam o ilegal, sustentadas que são por brechas na legislação, as quais possibilitam que normas de funcionamento sejam tão somente prescritivas e opcionais não tendo, pois, força de lei. Quando a segurança do cidadão está em jogo isso é inconcebível. Mesmo do ponto de vista da contingente racionalidade econômica está em questão um paradoxo: ainda que esses empresários ‘esquecessem’ o fundamental e mais importante, que é o valor da vida humana, sua atitude compromete e põe em risco seu próprio empreendimento. Racionalidade e irracionalidade disputam espaço nessa competição pelo ganho rápido, que banaliza o sentido da vida.

Por outro, considerando-se que a tecnologia disponível torna possível prever e controlar, fiscalizar e interditar estabelecimentos que coloquem vidas em risco, alvarás de funcionamento que, juntamente com liminares concedidas indevidamente, abrem mão da segurança são igualmente o combustível para a irresponsabilidade das autoridades e uma forma indireta de impunidade. Impunidade que traz como consequência um descrédito no poder da Justiça para fazer justiça. Pensando de modo mais abrangente, para além do acontecimento que ora ocupa noticiários e população em geral, esse descrédito pode levar à famosa alternativa da justiça com as próprias mãos, sobretudo se além do descrédito real existe a sensação, a representação, construída pela população de que a Justiça não funciona.

Esse episódio, cujo impacto ainda é desconcertante, choca, sobretudo, por dois motivos: Em primeira instância por ter como vítimas um contingente de jovens mal chegados à vida.  Em seguida pelo fato de ser algo absolutamente evitável, caso a imprevidência não tivesse sido a orientadora por excelência das ações dos envolvidos, nesse caso autoridades, proprietários do estabelecimento e integrantes da banda que animava a festa. Santa Maria não acordou no meio da noite confrontada com um acidente, que é da ordem do imprevisível; também não foi vítima de uma fatalidade, eufemismo rapidamente construído para se mascarar responsabilidades. O que ocorreu foi, mais uma vez, o horror de uma tragédia que estampa o descaso pela vida.

O mundo vive mergulhado, cada vez mais, em uma era tecnológica, a qual torna extremamente simples a prevenção: seja com construções responsáveis por meio do planejamento consequente seja em relação aos usuários com treinamentos e rotinas de utilização do espaço.  Falhas técnicas e humanas são um cenário indesejável mas possível; em Santa Maria, no entanto, o que falhou foi o respeito pelo cidadão. Diante da tragédia exposta, o comportamento dos envolvidos é ainda mais desconcertante: digladiam-se em um jogo de empurra-empurra para se safarem das responsabilidades,  recusando-se a assumir as consequências sobre os desdobramentos de suas ações.

Quando uma tragédia como essa acontece é porque algo não foi feito para que ela fosse evitada. Nesse momento e tomada ainda no calor da hora pela dor e pela comoção é impossível não me questionar sobre que tipo de sociedade a contemporaneidade está legando às gerações futuras. E não estou me referindo apenas ao Brasil: cenas essa ocorreram e ocorrem em vários outros lugares do mundo.  Algo sub-reptício subjaz abaixo e acima dessas situações e eventos dramáticos e diz respeito à percepção de uma mudança ou afrouxamento dos valores em função dos quais vida e morte se relativizam; quando a morte perde valor e significado é que a vida também de há muito já os perdeu. Banaliza-se o mal, conforma-se com a ideia de que vida e morte estão aí por acontecer e a materialidade passa acima de outros valores, tais como interesse, solidariedade e consideração pelo Outro.

O episódio recém-vivenciado pela população de Santa Maria leva a clamores populares e demandas por justiça. A rigor, não se está pedindo muito: simplesmente que a sociedade não se autodestrua. A tragédia foi um ato autodestrutivo; quando se perde tantos jovens, cujas vidas estão agora sendo cobradas, trata-se de uma autofagia e precisa servir como alerta para que o mal não se repita de modo tão banal e inconsequente.

*Maria Stela Grossi Porto é professora do Departamento de Sociologia e do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília 

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