Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

Feminismo online em chamas

O feminismo é repleto de divergências, o que pode ser saudável. Mas silenciamentos e a promoção de um pensamento único não são

São Paulo 08/06/2016 2º ato Por Todas Elas na Avenida Paulista, contra o estupro. Foto Paulo Pinto/AGPT
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O feminismo de internet tem seus limites, mas nem por isso deixa de ser um modo relevante do ativismo da nossa era. É na internet que uma parte significativa dos debates acontece, nacional e internacionalmente. Na internet troca-se muito conhecimento, e é pela internet que muita gente se depara com o feminismo pela primeira vez. Isso tudo pode ser bom e ruim, mas não é esta a questão.

A questão é que é também na internet que muitas das discussões espinhosas do feminismo vêm acontecendo. Apesar dos entraves que as plataformas digitais apresentam, e mesmo que nem sempre de forma saudável, nas redes sociais conversa-se muito sobre questões importantes e urgentes do projeto feminista – e, para muita gente, é somente nestes espaços que esses debates se realizam.

Ultimamente, no entanto, tenho percebido um aumento na fadiga de feministas que participam destas conversas. Muitas estão dizendo que o clima dos debates ficou tão tenso que mulheres adentrando o movimento declaram estar com medo – de falar, de levantar questionamentos, ou de errar a forma como um tema é abordado – por saberem que serão achincalhadas por outras mulheres, de formas desnecessariamente agressivas e repressoras.

Insisto em afirmar que o feminismo é um movimento tão múltiplo e diversificado quanto são as mulheres que o compõem. Não é surpreendente, portanto, que essa diversidade produza tensões e dissidências: é praticamente impossível que um grupo tão plural concorde em absolutamente tudo. Por isso precisamos aprender a aprimorar nossa capacidade de dialogar apesar das discordâncias – ou até mesmo a partir delas.

Essa necessidade não é exclusiva do feminismo online brasileiro, mas sim uma característica do debate político da nossa era hiper-conectada. Em 2014, em um artigo intitulado “O feminismo está correndo o risco de se tornar tóxico”, a inglesa Julie Bindel ofereceu algumas críticas contundentes ao que chama de “cultura da superioridade moral” e do “apontamento de dedos”, bastante visível em projetos políticos supostamente progressistas.

Bindel sugere que o feminismo pode se tornar repressivo, insinuando que o clima de censura de alguns segmentos periga tomar conta do movimento todo, e atenta para a terrível possibilidade de que transformemos o que deveriam ser debates produtivos em mera caça às bruxas. Para ela, ao perdermos tempo e energia atacando umas às outras – ou nos protegendo umas das outras – perdemos também o foco, que deveria ser o ataque à misoginia institucionalizada.

Neste ponto o artigo faz muito sentido. Qualquer militância, quando acometida por delírios egóicos, apontamento de dedos ou pela síndrome de consultório terapêutico corre o risco de esquecer-se das razões pelas quais milita para tornar-se apenas uma disputa entre quem almeja ser detentora das verdades que sustentam a causa. O que me intrigou, no entanto, foi a cegueira da autora em relação ao próprio insight.

Ao categoricamente acusar feministas de não estarem “fazendo” feminismo da forma correta, Bindel revela ter, ela mesma, a propensão que acusa outras de ter: a de querer determinar como ser uma feminista. Criticar um movimento do qual se participa é uma tarefa dificílima, pois análises exigem distanciamento – e o distanciamento necessário para que uma feminista critique o feminismo exige que a feminista esteja aberta para a forma como outras feministas fazem seus feminismos. Deu nó? Pois é.

Não é Julie Bindel quem decide o que o feminismo é ou não é. E, para elucidar, também não sou eu, nem qualquer outra pessoa. Ninguém pode determinar sozinha como um projeto tão abrangente, diverso e independente deve ou não proceder.

As formas como as conversas feministas vêm se desenvolvendo na internet são peculiares deste contexto, ainda relativamente recente. Estamos todas aprendendo – estamos brigando, errando e reavaliando nossas posições, e isso pode ser cansativo, mas o cansaço faz parte do aprendizado.

Estamos conectadas como nunca, e em vez de me exasperar com os erros desta modalidade de ativismo, prefiro procurar por suas possibilidades de acerto. O bate papo de redes sociais, afinal de contas, não vai desaparecer tão cedo.

O feminismo não é uma empresa, mas sim um movimento orgânico, complexo, e livre de diretrizes institucionais unificadoras. É por isso que é preciso que estejamos preparadas para dialogar – na internet e fora dela – a partir das inevitáveis divergências, e não nos silenciarmos umas às outras por causa delas.

É salutar que feministas não sejam apegadas demais à sua própria concepção do movimento, pois é preciso compreender que outras mulheres se engajam na luta a partir de outras motivações, por isso a farão, inevitavelmente, de outras maneiras. Ao acusar o comportamento de certas feministas de tóxico, Bindel parece sugerir que há uma maneira melhor de fazer a luta. Esta maneira, ao que tudo indica, deve ser a dela. E nada pode ser mais tóxico para um projeto que promove a liberdade do que tentar cerceá-lo com um pensamento totalitário.

O feminismo não é o único espaço político onde acusações internas abundam, e se ser feminista é problematizar, é também assimilar as formas como outras feministas fazem seus feminismos – ou ao menos tentar antes de acusá-las de estarem completamente erradas, ou pior: rejeitar que se proclamem feministas. Não é apenas no feminismo que indivíduos são sistematicamente enquadrados nas narrativas simplistas de outrem; vemos isso acontecendo em diversos espaços, do debate político às fofocas sobre celebridade.

Não me interpretem mal: é importante criticar o movimento, mas simplesmente atacar pessoas por ações que talvez elas não compreendam completamente, ou por diferirem da sua preferência, é imaturo na melhor das hipóteses e contraproducente na pior.

Toda feminista tem o direito de pensar com autonomia, e de falar sem medo, independentemente do quão desconfortável sua retórica possa vir a ser para algumas interlocutoras. E isso vale para todas, por isso é imprescindível também que nos lembremos daquela máxima da vovó: quem fala o que quer pode ouvir o que não quer. É aí que o diálogo precisa florescer, e conversar ao invés de sucumbir à tentação de silenciar aquelas com quem não concordamos é um hábito adquirível.

Ninguém tem controle sobre o feminismo, portanto ninguém pode determinar, definitivamente, o que o feminismo é. Aprender a conviver com essa realidade é, em si só, um passo revolucionário: bradamos que as instituições são machistas, e não podemos esquecer que o próprio conceito de instituição é calcado na lógica patriarcal de dominação. Por isso acho libertador fazer parte de um movimento não institucionalizado, que se autorregula na pluralidade, e que progride a partir de uma diversidade imensa de pontos focais.

Cabe a todas nós fazer do feminismo um movimento melhor? Sim, cabe a mim, cabe a você e àquela mana feminista com quem eu e você não concordamos. E por falar em concordar e discordar: estou com Bindel quando ela declara que o movimento precisa ser constantemente construído a partir do questionamento de pressupostos e truísmos antigos.

Mas não posso concordar com sua recomendação, afinal poucas coisas são tão antigas quanto tentar determinar uma única diretriz para um movimento tão múltiplo.

É preciso ter autocrítica, mas se o feminismo está correndo o risco de se tornar um mar de bile, não é sendo belicosa a respeito do movimento que se aprimora seu potencial de integração. Menos acusações e mais empatia e diálogo, por favor!

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