Sociedade

Dworkin e Carlos Alexandre Azevedo

No Brasil, de forma semelhante ao machismo que culpa a mulher pelo estupro, sutilmente culpa-se o torturado pela tortura

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Na onda conservadora que tem atravessado o ambiente cultural e midiático do País nos últimos anos, as tentativas de relativização do que foi a brutalidade da ditadura têm sido uma constante.

Da expressão “ditabranda”, do jornal Folha de S. Paulo, à queixa do cantor Lobão de que nada mais fizeram os torturadores que “arrancar umas unhas”, passando pelo desejo de alguns adolescentes de refundar a Arena, partido do regime de exceção em sua época, tem se tornado um certo lugar comum procurar diminuir a rejeição a este período histórico, seja pela referida relativização das atrocidades, seja por diversas formas de culpabilização da oposição de esquerda à ditadura, armada ou não.

De forma semelhante ao machismo que culpa a mulher pelo estupro, sutilmente culpa-se o torturado e o assassinado pela tortura e pelo homicídio.

Tudo num invólucro verbal de aparência democrática. Defende-se o arbítrio sem se assumir claramente sua defesa – como, aliás, é corrente na História humana: nenhuma postura arbitrária se declara arbitrária nem nunca se declarou .

Uma boa parte da opinião social ativa procura se colocar numa suposta posição de “equilíbrio”, de meio termo entre as defesas enrustidas e os ataques claros à ditadura.Um ministro do STF chegou a afirmar que a ditadura foi um mal necessário.

Argumenta-se que no Brasil “matou-se pouco”; que “apenas” algumas centenas morreram.

Ora, mediar com atrocidades é compactuar com elas.

É uma postura semelhante a mediar com o Holocausto dos judeus pelo nazismo: “não vamos matá-los, vamos apenas torturá-los e mantê-los num campo de concentração”.

Comissão da Verdade quer ouvir Fiesp e consulado dos EUA sobre possível ligação com a repressão

No momento da edição do Patriotic Act, nos EUA, importantes autoridades daquele país procuraram justificar a prática de uma “tortura moderada” como método investigativo contra o terrorismo.

Mediar com a atrocidade sempre implica propor outra atrocidade. Mediar com a indignidade humana significa aceitá-la.

A morte nesta semana de Ronald Dworkin, o conhecido e genial jurista liberal norte-americano, serve para nos lembrar que certos valores são absolutos no sentido de ter seu fundamento racional plasmado de forma clara no âmbito claro de sentido da dignidade humana.

Comentando o falecimento do aludido filosofo do direito, o promotor Francisco José Borges Motta dá o exemplo da “tortura” de crianças como um ato de imoralidade absoluta.

Neste fim de semana Carlos Alexandre Azevedo se suicidou. Em 14 de janeiro de 1974, ele tinha apenas 1 ano e 8 meses de idade quando foi preso e torturado com choques elétricos e outras sevicias por agentes da ditadura.

As torturas ocorreram como forma de pressão em seu pai, o jornalista Dermi Azevedo, militante e líder do movimento nacional dos direitos humanos e sua mãe, então presos e também torturados pelo regime.

Não o conheci pessoalmente. Sou amigo de seu pai, com quem convivi na década de 80, um homem solidário, generoso e de trato gentil e doce.

Carlos Alexandre vai ser uma um irrisório número na contabilidade de mortos de parte de nossas elites e sua mídia.

Sua morte não afetará o fato de “apenas” algumas centenas terem morrido em razão direta ou indireta da prática de sevícias pela “ditabranda”.

Ninguém obviamente será punido, pois nosso STF enterrou a possibilidade jurídica de apuração criminal.

E boa parte de nossas elites e nossas classes médias continuará , nos almoços familiares de domingo, em meio ao barulho vivo e saudável de crianças correndo pela casa, cultivando ideias e discursos de mediação com o inaceitável e com o absolutamente imoral.

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