Sociedade

Desirée

‘Quando Desirée tinha 12 anos viramos as costas para ela e quando decidimos lhe estender o braço era tarde demais’

Foto: Marcello Casal Jr./ABr
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“A vida não é filme, você não entendeu” (Paralamas)

 

Aos 44 anos, olho minha vida no retrovisor e percebo que a maior dificuldade de amadurecer não é nem tanto se dar conta que os sonhos foram ficando para trás. Sonhos mudam, a gente vai adaptando, arrumando outros. O pior para mim é constatar, dia após dia, que a vida não é tão fácil nem tão leve quanto parecia na infância ou aos 20 anos de idade. Que, por mais simplesmente que tentemos levá-la, de repente nos damos conta de quão complexos são a natureza humana, a convivência em sociedade, a percepção do outro, as fatalidades, o destino de cada um.

Meio à enxurrada de notícias sobre o atabalhoado combate ao crack na capital paulista, os repórteres Emilio Sant’Anna e Afonso Benites encontraram na cracolândia e contaram na Folha de S.Paulo a história da gaúcha Teresa Beatriz Viega. A faxineira de 68 anos, analfabeta, volta e meia se embrenha na região que os “cidadãos de bem” paulistanos tanto temem para procurar a nora, Desirée, viciada em crack e grávida de quatro meses. O marido dela, João, filho de Teresa, está preso por tráfico. A sogra leva comida e algum dinheiro. Quer tirar Desirée dali. Desirée tem 35 anos e não acha mais possível sair porque está “nessa vida” desde os 12.

Ao ler esta reportagem, todas as minhas certezas ruíram. Não era por abandono que estas pessoas estavam ali? Por que uma delas rejeitava a mão amiga estendida em sua direção? Me senti falida como ser humano, impotente diante do drama de semelhantes que não só não conseguem como não desejam se libertar de uma substância – ou de uma subvida, aos olhos de quem os assiste no conforto de seus lares.

Por que Desirée não abraçava Teresa, aceitava sua oferta e fugiam as duas para longe dali, rumo a uma vida melhor, saudável e feliz, para ela e uma criança que ainda nem nasceu? Porque a vida não é um filme, querida, você não entendeu.

A história de Teresa e Desirée ficou dando voltas dentro de mim o dia todo, até que me dei conta de que o que me incomodava nisso tudo não era o vício do crack em si, mas a desistência da moça diante da sogra, da sociedade, de mim. Quando Desirée tinha 12 anos viramos as costas para ela e quando decidimos lhe estender o braço era tarde demais. Não existimos para Desirée, já não adianta oferecer-lhe colo, alternativa ou um futuro. Ela não acredita em nada disso. As cartas foram jogadas lá atrás e a vida dela hoje é a rua, é o centro de São Paulo. Os pardieiros que Teresa percorreu em busca de Desirée são sua casa. E os viciados da cracolândia, sua família.

Quantas futuras Desirées eu vi na vida, vendendo chiclete no semáforo, oferecendo flores no boteco, pedindo dinheiro na calçada? Haverá solução para as Desirées já crescidas ou teria que ter vindo antes, muito antes, quando isso tudo começou? E o filho de Desirée, terá uma Teresa a se preocupar com ele, a lhe oferecer abrigo e amor, quando ainda for alguém capaz de acreditar que o mundo não lhe virará as costas?

“Só você não viu, não era filme algum.”

“A vida não é filme, você não entendeu” (Paralamas)

 

Aos 44 anos, olho minha vida no retrovisor e percebo que a maior dificuldade de amadurecer não é nem tanto se dar conta que os sonhos foram ficando para trás. Sonhos mudam, a gente vai adaptando, arrumando outros. O pior para mim é constatar, dia após dia, que a vida não é tão fácil nem tão leve quanto parecia na infância ou aos 20 anos de idade. Que, por mais simplesmente que tentemos levá-la, de repente nos damos conta de quão complexos são a natureza humana, a convivência em sociedade, a percepção do outro, as fatalidades, o destino de cada um.

Meio à enxurrada de notícias sobre o atabalhoado combate ao crack na capital paulista, os repórteres Emilio Sant’Anna e Afonso Benites encontraram na cracolândia e contaram na Folha de S.Paulo a história da gaúcha Teresa Beatriz Viega. A faxineira de 68 anos, analfabeta, volta e meia se embrenha na região que os “cidadãos de bem” paulistanos tanto temem para procurar a nora, Desirée, viciada em crack e grávida de quatro meses. O marido dela, João, filho de Teresa, está preso por tráfico. A sogra leva comida e algum dinheiro. Quer tirar Desirée dali. Desirée tem 35 anos e não acha mais possível sair porque está “nessa vida” desde os 12.

Ao ler esta reportagem, todas as minhas certezas ruíram. Não era por abandono que estas pessoas estavam ali? Por que uma delas rejeitava a mão amiga estendida em sua direção? Me senti falida como ser humano, impotente diante do drama de semelhantes que não só não conseguem como não desejam se libertar de uma substância – ou de uma subvida, aos olhos de quem os assiste no conforto de seus lares.

Por que Desirée não abraçava Teresa, aceitava sua oferta e fugiam as duas para longe dali, rumo a uma vida melhor, saudável e feliz, para ela e uma criança que ainda nem nasceu? Porque a vida não é um filme, querida, você não entendeu.

A história de Teresa e Desirée ficou dando voltas dentro de mim o dia todo, até que me dei conta de que o que me incomodava nisso tudo não era o vício do crack em si, mas a desistência da moça diante da sogra, da sociedade, de mim. Quando Desirée tinha 12 anos viramos as costas para ela e quando decidimos lhe estender o braço era tarde demais. Não existimos para Desirée, já não adianta oferecer-lhe colo, alternativa ou um futuro. Ela não acredita em nada disso. As cartas foram jogadas lá atrás e a vida dela hoje é a rua, é o centro de São Paulo. Os pardieiros que Teresa percorreu em busca de Desirée são sua casa. E os viciados da cracolândia, sua família.

Quantas futuras Desirées eu vi na vida, vendendo chiclete no semáforo, oferecendo flores no boteco, pedindo dinheiro na calçada? Haverá solução para as Desirées já crescidas ou teria que ter vindo antes, muito antes, quando isso tudo começou? E o filho de Desirée, terá uma Teresa a se preocupar com ele, a lhe oferecer abrigo e amor, quando ainda for alguém capaz de acreditar que o mundo não lhe virará as costas?

“Só você não viu, não era filme algum.”

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