Cultura

Volver a los 17

Como os jovens do filme, quem chegou ao mundo adulto na virada do século não tinha grandes ideais a defender. O dilema era ‘partir ou ficar’

Camille e Sullivan, separados pelas próprias opções
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Quem completou 18 anos na virada do século sabe do que vou falar. O fim da história, decretado quando a gente nem tinha dez anos – e que aterrou as veredas ideológicas que marcaram as gerações anteriores – deitou ao chão as causas justas ou injustas, ingênuas ou não, a serem defendidas em uma idade propensa à rebeldia. Estávamos órfãos.

O vácuo de lideranças e o desencanto geral com as opções políticas fizeram com que chegássemos à maioridade sem ver qualquer sentido em ideais como o fim da guerra ou as revoluções. Só um sistema parecia viável, e o caminho estava desenhado em todo canto, das escolas aos programas de tevê.

 

Como não havia nada que se esperar do mundo, o mundo parecia se dividir, basicamente, em duas categorias: os que aceitavam correr em linha reta e obedecer à ordem imposta (se alimentar bem, prestar vestibular, fazer uma boa faculdade, comprar uma boa casa, um bom carro, casar, viajar no fim do ano, assinar tevê a cabo, participar das reuniões de pais e mestres da escola dos filhos, pagar a mensalidade do clube e do condomínio e morrer mais a cada dia com menos dor) ou romper a linha lógica…Como? Defendendo a libertação do Vietnã? Cantando “Give Peace a Chance”? Praticando o amor livre ou abrindo as portas da percepção? Organizando células para derrubar governos autoritários?

Nada disso. A guerra estava perdida (os Estados Unidos deixaram o front, mas os bombardeiros continuavam), John Lennon, Raul Seixas e Cazuza estavam mortos e tudo o que a rádio tocava era “encaixa, encaixa, encaixa, encaixa, remexe e agacha”. Isso num tempo em que a Aids pairava como uma sombra de castigo às escolhas libertárias, e bater no governo, que já se alternava conforme nossos humores eleitorais, era tão eficiente quando enxugar gelo.

A opção era dar um tempo. Largar os estudos, ou abrir mão (por um tempo) de uma vida sufocante no escritório. E sair pra viajar, colocar mochila nas costas e procurar um sentido em alguma coisa, ou na gente mesmo, em algum canto longe das mesmas coisas – ou da gente mesmo. Como chegou a fazer, anos antes, o jovem Christopher McCandless, que se rebelou contra tudo o que está aí e saiu andando a pé pelos Estados Unidos, e inspirando mais tarde o filme “Na Natureza Selvagem”, de Sean Pean (juro que poucas coisas me assustam mais do que a foto do personagem real dessa viagem que não acabou bem, mas esta é outra história.)

Tudo isso pra dizer que deu uma nostalgia danada dos nossos 17 anos assistir a “Adeus, Primeiro Amor”, de Mia Hansen-Love. Rescaldo de 2011, e ainda em cartaz em São Paulo, o filme se passa em Paris e traz uma história enxuta: um jovem casal se ama e se descobre às vésperas da maioridade, mas se separa por um motivo aparentemente banal. Ele quer viajar, ela precisa ficar (e vai trabalhar e estudar arquitetura, aprender a construir casas num espaço arejado, mas fixo; com conforto, luz, paz e funcionalidade. Mas fixo).

Num jogo de câmera, quando Camille (Lola Créton) lê uma carta do namorado sobre sua passagem pela América do Sul (que deveria durar só dez meses), dá para perceber que tudo o que Sullivan (Sebastian Urzendowsky) buscava, e encontrava na viagem, estava ao seu alcance no lugar de origem. Ele descreve florestas, lagos, e uma sensação de tranquilidade em um lugar distante, e ela lê a carta num lugar, à saída de Paris, com florestas, lagos e sensação de tranquilidade, justamente onde eles passaram seus últimos dias. Estava tudo ali, parecia dizer a diretora, ao mesmo tempo em que nada estava lá.

O desencontro de Camille e Sullivan é, na verdade, o choque entre escolhas possíveis numa idade aparentemente de ingenuidades, e quase sempre desprezada pelos retratistas da alma humana, que se concentram na infância, velhice e, agora, na meia idade, para fazer dramas, romances ou novelas sobre assunto sério. Depois de certa idade, as escolhas, sonhos e amores juvenis são lembrados como histórias pueris, de um tempo em que o mundo parecia acabar em lágrimas por amores não correspondidos. Rendem piadas, mas pouca gente esquece – porque são decisões que ressoam para o resto da vida.

Mia Hansen-Love tem como mérito não minimizar nada disso, e não ignorar a complexidade de uma idade de exageros, num momento peculiar da história, quando abandonamos as cartas escritas à mão e passamos a usar computadores, e deixamos aos poucos o mundo analógico para mergulhar de cabeça num universo digital. Esse mundo é herdado por filhos de pais que, anos antes, fracassaram na tentativa de construir um mundo mais justo e mais livre, e que no fim mal se suportavam (o fim dos anos 2000 foi a época em que todos os pais de todos os amigos pareciam em processo de separação).

Por não querer repetir o marasmo que observavam na vida adulta é que parte dos jovens daquela época assumiu uma tarefa inglória: viver todas as paixões que foram negadas a quem construiu aquele mundo sombrio, de certezas, consumos desnecessários e retidões morais.

É o que leva Camille a se desentender com a mãe, que não vê sentido algum no sofrimento da filha ao ver o namorado partir. “Isso passa, vai viver sua vida”, diz a mãe, que não perde oportunidade para dizer o quanto o marido a incomoda.

“Mas mãe, só o amor importa”, responde a filha, aparentemente sem a preocupação de se ver no espelho, anos depois, e rir da própria dor.

Camille é quase uma vítima do livre arbítrio. Ela escolheu, mas não foi escolhida. Porque, superada a sobriedade dos pais, viu emergiu a vocação individual como uma entidade sacrossanta, num tempo em que cada um tem o direito inalienável de traçar seu próprio plano de voo.

Íntimos no que importa, mas distantes nos planos para a vida, Camille e Sullivan se distanciam não porque não se amaram o suficiente, mas porque simplesmente tinham projetos excludentes. É quando meninos e meninas se desencontram na mesma idade, mesmo tendo exatamente os mesmos sonhos – no caso, ser feliz. Quem um dia teve 17 anos sabe como é.

(Tudo a ver, a não ser a linguagem: logo no começo, o pano de fundo do desencontro é a música “Volver a los 17”, imortalizada por Mercedes Sosa).

Sullivan não é exatamente um jovem insensível, carreirista, arrivista, introspectivo. Parece ter de sobra tudo o que Camille precisa. Mas não demonstra o menor talento para assumir responsabilidades: é capaz de morrer sufocado se aceitar viver num mundo que pede ordem, disciplina, constância, cuidado. Resta a ele rasgar aquele mundo, e lamentar o que não coube na bagagem. E sair em busca de algo que não sabe o que é. Tudo para não morrer com a certeza de que não tentou.

“Adeus, Primeiro Amor” parece colocar a coragem em campos opostos das decisões juvenis. Ficar ou se libertar? Quem é que foge do quê?

A consequencia é o que menos importa neste caso. Os jovens, naquele tempo, cresceram sem a sombra da esperança de mundo igualitário, e não há grupo que interfira em sua ação. Pelo contrário: as escolhas são individuais, e agora pouco importa o que dizem o padre, a mãe, o locutor do rádio ou o líder da associação de bairro. E, se duas escolhas individuais derem no mesmo caminho, ótimo; existe uma história a dois. Se não, não há outro caminho se não chorar a impossibilidade da conciliação. E dizer, de vez, adeus, mesmo sob o risco do eterno reencontro – aquele único capaz de revolver cadáveres que jurávamos enterrados.

Quem completou 18 anos na virada do século sabe do que vou falar. O fim da história, decretado quando a gente nem tinha dez anos – e que aterrou as veredas ideológicas que marcaram as gerações anteriores – deitou ao chão as causas justas ou injustas, ingênuas ou não, a serem defendidas em uma idade propensa à rebeldia. Estávamos órfãos.

O vácuo de lideranças e o desencanto geral com as opções políticas fizeram com que chegássemos à maioridade sem ver qualquer sentido em ideais como o fim da guerra ou as revoluções. Só um sistema parecia viável, e o caminho estava desenhado em todo canto, das escolas aos programas de tevê.

 

Como não havia nada que se esperar do mundo, o mundo parecia se dividir, basicamente, em duas categorias: os que aceitavam correr em linha reta e obedecer à ordem imposta (se alimentar bem, prestar vestibular, fazer uma boa faculdade, comprar uma boa casa, um bom carro, casar, viajar no fim do ano, assinar tevê a cabo, participar das reuniões de pais e mestres da escola dos filhos, pagar a mensalidade do clube e do condomínio e morrer mais a cada dia com menos dor) ou romper a linha lógica…Como? Defendendo a libertação do Vietnã? Cantando “Give Peace a Chance”? Praticando o amor livre ou abrindo as portas da percepção? Organizando células para derrubar governos autoritários?

Nada disso. A guerra estava perdida (os Estados Unidos deixaram o front, mas os bombardeiros continuavam), John Lennon, Raul Seixas e Cazuza estavam mortos e tudo o que a rádio tocava era “encaixa, encaixa, encaixa, encaixa, remexe e agacha”. Isso num tempo em que a Aids pairava como uma sombra de castigo às escolhas libertárias, e bater no governo, que já se alternava conforme nossos humores eleitorais, era tão eficiente quando enxugar gelo.

A opção era dar um tempo. Largar os estudos, ou abrir mão (por um tempo) de uma vida sufocante no escritório. E sair pra viajar, colocar mochila nas costas e procurar um sentido em alguma coisa, ou na gente mesmo, em algum canto longe das mesmas coisas – ou da gente mesmo. Como chegou a fazer, anos antes, o jovem Christopher McCandless, que se rebelou contra tudo o que está aí e saiu andando a pé pelos Estados Unidos, e inspirando mais tarde o filme “Na Natureza Selvagem”, de Sean Pean (juro que poucas coisas me assustam mais do que a foto do personagem real dessa viagem que não acabou bem, mas esta é outra história.)

Tudo isso pra dizer que deu uma nostalgia danada dos nossos 17 anos assistir a “Adeus, Primeiro Amor”, de Mia Hansen-Love. Rescaldo de 2011, e ainda em cartaz em São Paulo, o filme se passa em Paris e traz uma história enxuta: um jovem casal se ama e se descobre às vésperas da maioridade, mas se separa por um motivo aparentemente banal. Ele quer viajar, ela precisa ficar (e vai trabalhar e estudar arquitetura, aprender a construir casas num espaço arejado, mas fixo; com conforto, luz, paz e funcionalidade. Mas fixo).

Num jogo de câmera, quando Camille (Lola Créton) lê uma carta do namorado sobre sua passagem pela América do Sul (que deveria durar só dez meses), dá para perceber que tudo o que Sullivan (Sebastian Urzendowsky) buscava, e encontrava na viagem, estava ao seu alcance no lugar de origem. Ele descreve florestas, lagos, e uma sensação de tranquilidade em um lugar distante, e ela lê a carta num lugar, à saída de Paris, com florestas, lagos e sensação de tranquilidade, justamente onde eles passaram seus últimos dias. Estava tudo ali, parecia dizer a diretora, ao mesmo tempo em que nada estava lá.

O desencontro de Camille e Sullivan é, na verdade, o choque entre escolhas possíveis numa idade aparentemente de ingenuidades, e quase sempre desprezada pelos retratistas da alma humana, que se concentram na infância, velhice e, agora, na meia idade, para fazer dramas, romances ou novelas sobre assunto sério. Depois de certa idade, as escolhas, sonhos e amores juvenis são lembrados como histórias pueris, de um tempo em que o mundo parecia acabar em lágrimas por amores não correspondidos. Rendem piadas, mas pouca gente esquece – porque são decisões que ressoam para o resto da vida.

Mia Hansen-Love tem como mérito não minimizar nada disso, e não ignorar a complexidade de uma idade de exageros, num momento peculiar da história, quando abandonamos as cartas escritas à mão e passamos a usar computadores, e deixamos aos poucos o mundo analógico para mergulhar de cabeça num universo digital. Esse mundo é herdado por filhos de pais que, anos antes, fracassaram na tentativa de construir um mundo mais justo e mais livre, e que no fim mal se suportavam (o fim dos anos 2000 foi a época em que todos os pais de todos os amigos pareciam em processo de separação).

Por não querer repetir o marasmo que observavam na vida adulta é que parte dos jovens daquela época assumiu uma tarefa inglória: viver todas as paixões que foram negadas a quem construiu aquele mundo sombrio, de certezas, consumos desnecessários e retidões morais.

É o que leva Camille a se desentender com a mãe, que não vê sentido algum no sofrimento da filha ao ver o namorado partir. “Isso passa, vai viver sua vida”, diz a mãe, que não perde oportunidade para dizer o quanto o marido a incomoda.

“Mas mãe, só o amor importa”, responde a filha, aparentemente sem a preocupação de se ver no espelho, anos depois, e rir da própria dor.

Camille é quase uma vítima do livre arbítrio. Ela escolheu, mas não foi escolhida. Porque, superada a sobriedade dos pais, viu emergiu a vocação individual como uma entidade sacrossanta, num tempo em que cada um tem o direito inalienável de traçar seu próprio plano de voo.

Íntimos no que importa, mas distantes nos planos para a vida, Camille e Sullivan se distanciam não porque não se amaram o suficiente, mas porque simplesmente tinham projetos excludentes. É quando meninos e meninas se desencontram na mesma idade, mesmo tendo exatamente os mesmos sonhos – no caso, ser feliz. Quem um dia teve 17 anos sabe como é.

(Tudo a ver, a não ser a linguagem: logo no começo, o pano de fundo do desencontro é a música “Volver a los 17”, imortalizada por Mercedes Sosa).

Sullivan não é exatamente um jovem insensível, carreirista, arrivista, introspectivo. Parece ter de sobra tudo o que Camille precisa. Mas não demonstra o menor talento para assumir responsabilidades: é capaz de morrer sufocado se aceitar viver num mundo que pede ordem, disciplina, constância, cuidado. Resta a ele rasgar aquele mundo, e lamentar o que não coube na bagagem. E sair em busca de algo que não sabe o que é. Tudo para não morrer com a certeza de que não tentou.

“Adeus, Primeiro Amor” parece colocar a coragem em campos opostos das decisões juvenis. Ficar ou se libertar? Quem é que foge do quê?

A consequencia é o que menos importa neste caso. Os jovens, naquele tempo, cresceram sem a sombra da esperança de mundo igualitário, e não há grupo que interfira em sua ação. Pelo contrário: as escolhas são individuais, e agora pouco importa o que dizem o padre, a mãe, o locutor do rádio ou o líder da associação de bairro. E, se duas escolhas individuais derem no mesmo caminho, ótimo; existe uma história a dois. Se não, não há outro caminho se não chorar a impossibilidade da conciliação. E dizer, de vez, adeus, mesmo sob o risco do eterno reencontro – aquele único capaz de revolver cadáveres que jurávamos enterrados.

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