Sociedade

Cidades inteligentes, até demais

Para especialista, a tendência de espaços urbanos cada vez mais informatizados pode resultar em vigilância e falta de transparência do Estado

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O conceito de “cidade inteligente” se popularizou como estratégia de solução e gerenciamento de problemas urbanos. Diz respeito à confluência de informação que circula em grande cidades e ao uso da tecnologia para automatizar a gestão de setores urbanos; desde bases de dados de saúde e educação públicas, por exemplo; até os dados pessoais que circulam em redes sociais e aplicativos móveis.

Na cidade inteligente ideal, todos esses dados confluem para bases de armazenamento abertas à consulta, que ajudam a criar soluções para desafios clássicos da cidade contemporânea, como a mobilidade urbana e o amplo acesso e eficiência de serviços públicos.

Em grandes capitais brasileiras, serviços e programas públicos já fazem uso do conceito, como o novo sistema de Bilhete Único em São Paulo e o portal Data.rio, a recém-inaugurada base de dados abertos do Rio de Janeiro.

Porém, a ideia de uma cidade que colete e processe dados sobre tudo e todos não suscita somente perspectivas otimistas.

O advogado Cristiano Therrien, pesquisador em Direito da Tecnologia na Universidade de Montreal, no Canadá, que investiga em seu doutorado justamente os riscos jurídicos e tecnológicos do uso de dados em larga escala pela gestão pública de cidades, atenta para o risco de projetos de cidades inteligentes que, caso não envolvam políticas de transparência e participação da sociedade, poderão criar as “condições ideais para um estado de vigilância e controle” e se transformar “em uma ameaça para a democracia”.

O pesquisador conversou com o Observatório da Privacidade e Vigilância sobre o tema.

Observatório da Privacidade e Vigilância: O que, afinal, é uma cidade inteligente?

Cristiano Therrien: Cidades inteligentes, cidades conectadas, cibercidades, cidades responsivas, são muitos dos adjetivos usados para destacar a dimensão informativa da cidade. Quando nos referimos a essas nomenclaturas para cidades, falamos da cidade enquanto um espaço de fluxos.

A maioria das tecnologias necessárias para as cidades inteligentes já é viável economicamente em todo o mundo – fácil acessibilidade da computação em nuvem, dispositivos baratos de internet, sistemas de TI cada vez mais flexíveis – que passam a formar camadas simbióticas com outras estruturas urbanas e dinâmicas municipais.

As duas cidades mais destacadas nos estudos de cidades inteligentes são Londres (particularmente no uso de dados abertos) e Barcelona. Vale ressaltar que há experiências importantes em cidades brasileiras, como Curitiba (pelo seu enfoque pioneiro em transporte público), Rio de Janeiro (e seu famoso centro de operações) e, mais recentemente, São Paulo (no tocante à mobilidade urbana).

OPV: A ideia de cidade inteligente sempre aparece relacionada à abertura de bases de dados por parte dos órgãos públicos. Você pode explicar por quê?

CT: Encontramos muitas experiências diferentes em andamento nas cidades: uma parte prioriza a transparência como meio de prestação de contas e responsabilidade política frente à sociedade civil, como a ideia de governo aberto; outra parte já prioriza a participação popular através da interatividade, bem como a cooperação técnica para o reuso de dados abertos por entidades e empresas.

A lei de acesso à informação (lei 12.527, de novembro de 2011) é o principal marco legal brasileiro deste primeiro modelo de políticas de dados abertos, mas as cidades brasileiras que se pretendem inteligentes, infelizmente, dificilmente satisfazem plenamente esta lei.

Se pensarmos na alternativa de projetos de cidades inteligentes que não envolvem políticas públicas de dados abertos, que não prestem conta detalhada de suas atividades, ao mesmo tempo que disponham dos sofisticados sistemas para o gerenciamento de dados (de cidadãos) urbanos em larga escala, encontraremos condições ideais para um estado de vigilância e controle.

OPV: O que torna a proteção de dados pessoais e o risco de vigilância massiva duas das questões centrais nas cidades inteligentes…

CT: Sim, porque o Estado já dispõe de amplos recursos tecnológicos para auxiliá-lo na gestão da vida humana em sociedade, sobretudo nas cidades, que concentrarão mais de 75% de uma população mundial de 9,7 bilhões de pessoas em 2050. Os governos produzem cada vez maior quantidade e diversidade de informações, várias delas (mapas, orçamentos, questões ambientais) não possuem grande conexão com dados pessoais e podem ser muito úteis à sociedade fora do governo.

Em muitos outros casos, serão justamente os dados pessoais de seus cidadãos – onde/como/quando as pessoas moram, movimentam-se, trabalham, vivem – que serão os mais úteis para o planejamento e administração de uma cidade.

Em nome da eficiência administrativa, pode-se armazenar, por exemplo, enormes massas de dados de mobilidade urbana (placas e identificação por radiofrequência em veículos, passes e GPS em ônibus), cujos bancos de dados podem ou não intencionalmente identificar seus usuários.

Dados de mobilidade são de grande utilidade pública e podem ser “anonimizados” [ter os seus identificadores pessoais eliminados] e abertos. Contudo, existem estudos recentes que apontam que bastariam meros 4 pontos de dados para identificar os movimentos de uma pessoa na cidade.

OPV: Quais os principais desafios a serem enfrentados nessa equação da privacidade X dados abertos nas cidades inteligentes brasileiras?

CT: Particularmente, acredito em um balanço possível entre os benefícios e riscos jurídicos no uso de grande volume de dados abertos em cidades inteligentes, faço disso um dos meus temas principais de pesquisa doutoral. Mas há que se ter claro que nenhuma nova ação governamental virá sem riscos. As cidades devem construir coletivamente suas próprias legislações prudentes para apoiar a inteligência de seus projetos tecnológicos.

A proteção da privacidade nas cidades inteligentes costuma apontar as legislações de proteção de dados pessoais – amplamente disponível na União Europeia e Canadá, por exemplo.

Mas no caso brasileiro, onde propostas de lei de proteção de dados pessoais aguardam configurações parlamentares ideais para serem tratadas pelo congresso nacional, não encontramos as estruturas legais e institucionais necessárias para lidar com os riscos à proteção dos habitantes dessas cidades inteligentes que saberão cada vez mais sobre eles.

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