Sociedade

Casas aos pedaços na CDHU? Culpa dos favelados

Recém-entregues por Alckmin, casas populares têm vazamentos e fissuras, mas responsável diz que a culpa é dos moradores

A marquise nunca me agradou nem incomodou, salvo o fato de que as famílias dos andares de cima a vejam como depósito de lixo.
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Moro há seis anos no mesmo apartamento no centro de São Paulo. Perto da minha janela tem uma marquise inútil que liga o nada ao lugar nenhum. Para acessá-la, é preciso pular uma das janelas, o que em dias de chuva e piso escorregadio pode não ser uma boa ideia.

A marquise nunca me agradou nem incomodou, salvo o fato de que as famílias dos andares de cima a vejam como depósito de lixo. Perdi as contas de quantas vezes, em seis anos, acordei com estouros a poucos metros da janela. Vou ver é uma caixa de pizza, algumas ainda com as bordas sem recheio e azeitonas desprezadas. Bitucas de cigarro, fraldas de bebê, panos velhos, esponja de aço, restos de comida, cascas de banana: o que o leitor imaginar já me foi oferecido pelos meus nobres vizinhos. Que, ao que tudo indica, nunca passaram nem perto de uma favela.

Não há muito o que fazer, a não ser lacrar com concreto e tijolo as janelas que deveriam arejar os apartamentos de cima. Ou ensinar bons modos de convivência para quem na vida só aprendeu a ganhar dinheiro e se dar bem na vida, perturbe-se o que tiver de ser perturbado a quem estiver no andar de baixo. Nas regras de convivência não se ensina bom senso.

Por sorte, nosso prédio nunca passou por reformas irresponsáveis, ao menos não o suficiente para botar tudo abaixo. Mesmo assim, acidentes acontecem, ora por displicência, ora por ignorância. E não é exatamente uma favela o conjunto de prédios que acaba de ir ao chão no centro do Rio de Janeiro.

Durante muito tempo achei que as oferendas depositadas na nossa marquise fossem sintomas apenas da cretinice humana. E cretinice, como se sabe, não distingue cor, raça, credo ou classe social.

É o que pensava até ler, pela manhã, a tese sociológica de uma verdadeira autoridade no assunto. Ao falar sobre as rachaduras, vazamentos e fissuras em portas e janelas das casas entregues em dezembro último à população, Milton Vieira de Souza Leite, diretor regional da CDHU em Ribeirão Preto, justificou a situação com uma pérola que fatalmente competirá, em pouco tempo, com a “fábrica de marginais” de Sergio Cabral: “A gente conhece o nível de educação [dos moradores]… O pessoal veio da favela. Não está acostumado a viver em casa”.

Para provar que leva a sério a possibilidade de concorrer ao Prêmio “Sensibilidade Social” com o próprio chefe da autarquia – que manda prender e arrebentar em São José dos Campos – o burocrata ainda foi além: “Você não consegue mudar a educação delas [famílias] somente mudando de local.”

O relato pode ser lido na edição da última sexta-feira 27 da Folha de S.Paulo. O doutor talvez imagine que na favela não deve haver outra modalidade esportiva do que martelar as próprias paredes e dormir com a torneira aberta. Arremesso de restos de comida na casa dos vizinhos também deve ser comum. Vai ver por isso é que água encanada, coleta de lixo e coleta de esgoto sejam expressões incompatíveis com a palavra “periferia”.

Por via das dúvidas, vou sugerir ao doutor uma visita ao nosso prédio para saber em que medida os hábitos da favela foram disseminados para os centros das grandes cidades. Se for provada a epidemia, podemos sugerir uma passeata paulistana num feriado próximo.

Com o doutor Souza Leite à frente, vamos todos exigir internação compulsória aos favelados. A desintoxicação deverá conter aulas de bons modos e gratidão. E pode ser mais útil do que construir casas populares.

O risco é transformar o progressista estado de São Paulo numa grande Itaguaí.

Moro há seis anos no mesmo apartamento no centro de São Paulo. Perto da minha janela tem uma marquise inútil que liga o nada ao lugar nenhum. Para acessá-la, é preciso pular uma das janelas, o que em dias de chuva e piso escorregadio pode não ser uma boa ideia.

A marquise nunca me agradou nem incomodou, salvo o fato de que as famílias dos andares de cima a vejam como depósito de lixo. Perdi as contas de quantas vezes, em seis anos, acordei com estouros a poucos metros da janela. Vou ver é uma caixa de pizza, algumas ainda com as bordas sem recheio e azeitonas desprezadas. Bitucas de cigarro, fraldas de bebê, panos velhos, esponja de aço, restos de comida, cascas de banana: o que o leitor imaginar já me foi oferecido pelos meus nobres vizinhos. Que, ao que tudo indica, nunca passaram nem perto de uma favela.

Não há muito o que fazer, a não ser lacrar com concreto e tijolo as janelas que deveriam arejar os apartamentos de cima. Ou ensinar bons modos de convivência para quem na vida só aprendeu a ganhar dinheiro e se dar bem na vida, perturbe-se o que tiver de ser perturbado a quem estiver no andar de baixo. Nas regras de convivência não se ensina bom senso.

Por sorte, nosso prédio nunca passou por reformas irresponsáveis, ao menos não o suficiente para botar tudo abaixo. Mesmo assim, acidentes acontecem, ora por displicência, ora por ignorância. E não é exatamente uma favela o conjunto de prédios que acaba de ir ao chão no centro do Rio de Janeiro.

Durante muito tempo achei que as oferendas depositadas na nossa marquise fossem sintomas apenas da cretinice humana. E cretinice, como se sabe, não distingue cor, raça, credo ou classe social.

É o que pensava até ler, pela manhã, a tese sociológica de uma verdadeira autoridade no assunto. Ao falar sobre as rachaduras, vazamentos e fissuras em portas e janelas das casas entregues em dezembro último à população, Milton Vieira de Souza Leite, diretor regional da CDHU em Ribeirão Preto, justificou a situação com uma pérola que fatalmente competirá, em pouco tempo, com a “fábrica de marginais” de Sergio Cabral: “A gente conhece o nível de educação [dos moradores]… O pessoal veio da favela. Não está acostumado a viver em casa”.

Para provar que leva a sério a possibilidade de concorrer ao Prêmio “Sensibilidade Social” com o próprio chefe da autarquia – que manda prender e arrebentar em São José dos Campos – o burocrata ainda foi além: “Você não consegue mudar a educação delas [famílias] somente mudando de local.”

O relato pode ser lido na edição da última sexta-feira 27 da Folha de S.Paulo. O doutor talvez imagine que na favela não deve haver outra modalidade esportiva do que martelar as próprias paredes e dormir com a torneira aberta. Arremesso de restos de comida na casa dos vizinhos também deve ser comum. Vai ver por isso é que água encanada, coleta de lixo e coleta de esgoto sejam expressões incompatíveis com a palavra “periferia”.

Por via das dúvidas, vou sugerir ao doutor uma visita ao nosso prédio para saber em que medida os hábitos da favela foram disseminados para os centros das grandes cidades. Se for provada a epidemia, podemos sugerir uma passeata paulistana num feriado próximo.

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