Cultura

Batman – o ressentimento ressurge

No filme, todos os personagens, inclusive os heróis, são movidos por seus ressentimentos. Não sem produzir estragos

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Muitos sentidos podem ser extraídos de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge. O filme pode ser abordado de diferentes ângulos ou perspectivas. Eu poderia abordá-lo a partir do sentido de heroísmo que ele propõe: aquele de o heroísmo (ou seu reverso da medalha: a vilania) ser – a despeito do fascínio que nos causa e do fato de demandarmos por ele em nossas existências ordinárias – uma ocupação mal remunerada que frequentemente conduz a um fim prematuro e, por isso mesmo, atrai fanáticos ou pessoas com um fascínio doentio pela morte – algo que é o tema principal do primeiro filme (Batman Begins) da trilogia dirigida por Cristopher Nolan e que reaparece nos outros dois subsequentes.

Eu poderia abordar Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge a partir do sentido da prisão – e da pena de prisão – que o filme suscita: o de que as prisões, com suas violações da dignidade da pessoa humana, às margens da Justiça e longe de regenerar e ressocializar os criminosos, servem à construção da delinquência que permite a ampla aceitação de um estado policial e forte sem qualquer questionamento, por parte da maioria, sobre sua possível e provável corrupção e abuso de poder (estado policial e forte encarnado na figura do próprio Batman, cujo trabalho, ao contrário do que é feito pela Mulher Gato, não questiona nem altera as estruturas socioeconômicas causadoras de injustiças sociais).

Eu poderia abordar o filme a partir de sua referência explícita aos “guindastes da morte” do Irã, em cujos cabos os dissidentes da política e da moralidade defendidas e propagadas pela teocracia fundamentalista de Ahmadinejad são enforcados e expostos publicamente para “servirem de exemplo”.

Mas vou abordar Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge a partir daquilo que, para mim, é fio com que a trama do filme é tecida: o ressentimento. Miranda e Bane traçam seu plano de vingança contra Gotham City movidos pelo ressentimento – a vingança é o ressentimento em ação; a Mulher Gato age pelo ressentimento de não ter, de ter que roubar para ter, de ser infame e, por isso, não poder recomeçar sua vida numa sociedade da vigilância e da punição; Blake (ou Robin) nutre o ressentimento pela infância em orfanatos pobres; e, por fim, Batman é produto de um homem ressentido pela perda dos pais milionários e, mais tarde, da mulher que amava, para a violência urbana decorrente da criminalidade. Como bem disse o historiador Marc Ferro, semelhante a esses vírus que julgamos erradicados, quando estão apenas incubados, o ressentimento subitamente reativado ganha vida, para surpresa daqueles que nem sequer suspeitavam de sua existência. “O mal ressurge de onde tentamos enterrá-lo”, diz o comissário Gordon a Batman, referindo-se à Liga das Sombras. Em Miranda germinava a semente fascista da Liga e sua cólera contra os civis de Gotham, cidade julgada ingrata e em “decadência moral”.

O ressentimento tem um papel fundamental não só na constituição do sujeito, em sua transformação individual, mas também (e por meio do indivíduo) nas transformações coletivas; nos rumos que toma o coletivo ao qual ele pertence. O ressentimento subjaz, por exemplo, à luta de classes e ao racismo. “Quando a tempestade vier, você e seus amigos vão poder pensar sobre como puderam viver com tanto, deixando tão pouco para o resto de nós”, sussurra a Mulher Gato ao ouvido de Bruce Wayne, membro da elite econômica e intelectual de Gotham.

Para conseguir adesão popular à sua “revolução”, Bane interpela a maioria empobrecida por meio de seu ressentimento em relação aos ricos da cidade, tanto que, na sequência, cidadãos saqueiam lojas e mansões, como forma de aplacar a raiva por anos de privação de mercadorias cujo consumo é estimulado por uma publicidade onipresente, mas negado pelos salários de fome, e condenam os ricos à morte em tribunais populares. “Não estamos aqui como conquistadores, mas como libertadores que vão devolver o controle da cidade ao povo”, argumenta Bane.

Isto mostra como o discurso histórico da esquerda de promoção da justiça social, defesa das liberdades e devolução do poder ao povo pode ser manipulado por tiranos e ditadores de toda sorte, porque é isso que Bane é (há aí uma referência aos rumos que tomaram as revoluções socialistas da antiga União Soviética, cujo socialismo “real” foi implantado à custa de muitas vidas e do sacrifício das liberdades individuais, e de Cuba, onde homossexuais foram conduzidos ao fuzilamento por serem considerados “frutos da moral burguesa decadente”). Não se trata de um ataque por parte do filme aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que inspiraram as revoluções que transformaram o mundo nos últimos séculos, mas, sim, um ataque à manipulação desses ideais por fascistas disfarçados de líderes “revolucionários” ou políticos que, uma vez no poder, não hesitarão em trair esses ideais e instaurar ditaduras para sustentar seus privilégios.

O filme ainda faz uma sutil inversão de valores ao colocar a esperança como um sentimento nocivo. “Não há sofrimento real sem esperança”, diz Bane, ao se referir à esperança que é dada aos presidiários de escaparem do inferno e que só serve para aumentar o calvário destes, uma vez que a liberdade jamais será alcançada. Melhor que a esperança seria o medo da morte, este instinto primitivo que nos levaria a viver a vida como se não houvesse amanhã (e se você parara para pensar, na verdade, não há!); a viver sem espera nem crenças em vida eterna que só serviriam ao controle espiritual de homens e mulheres.

Por trás do ressentimento, individual ou coletivo, há uma ferida gerada por um trauma, uma afronta, uma humilhação ou uma violência sofrida e um desejo de repará-la, de curá-la. Essa ferida dói latejada apesar de toda vontade de esquecer, de todo esforço para esquecer.

Blake fala a Wayne sobre os sorrisos treinados em frente ao espelho que nunca o fizeram esquecer a dor de ter perdido o pai num crime decorrente de dívida de jogo. O contrário do ressentimento – e seu antídoto – é o impulso magnânimo do perdão, das desculpas e, sobretudo, da reparação. E, em sua sequência final, Batman – o Cavaleiro das Trevas Ressurge apela a esse impulso como forma de garantir o amanhã.

Muitos sentidos podem ser extraídos de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge. O filme pode ser abordado de diferentes ângulos ou perspectivas. Eu poderia abordá-lo a partir do sentido de heroísmo que ele propõe: aquele de o heroísmo (ou seu reverso da medalha: a vilania) ser – a despeito do fascínio que nos causa e do fato de demandarmos por ele em nossas existências ordinárias – uma ocupação mal remunerada que frequentemente conduz a um fim prematuro e, por isso mesmo, atrai fanáticos ou pessoas com um fascínio doentio pela morte – algo que é o tema principal do primeiro filme (Batman Begins) da trilogia dirigida por Cristopher Nolan e que reaparece nos outros dois subsequentes.

Eu poderia abordar Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge a partir do sentido da prisão – e da pena de prisão – que o filme suscita: o de que as prisões, com suas violações da dignidade da pessoa humana, às margens da Justiça e longe de regenerar e ressocializar os criminosos, servem à construção da delinquência que permite a ampla aceitação de um estado policial e forte sem qualquer questionamento, por parte da maioria, sobre sua possível e provável corrupção e abuso de poder (estado policial e forte encarnado na figura do próprio Batman, cujo trabalho, ao contrário do que é feito pela Mulher Gato, não questiona nem altera as estruturas socioeconômicas causadoras de injustiças sociais).

Eu poderia abordar o filme a partir de sua referência explícita aos “guindastes da morte” do Irã, em cujos cabos os dissidentes da política e da moralidade defendidas e propagadas pela teocracia fundamentalista de Ahmadinejad são enforcados e expostos publicamente para “servirem de exemplo”.

Mas vou abordar Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge a partir daquilo que, para mim, é fio com que a trama do filme é tecida: o ressentimento. Miranda e Bane traçam seu plano de vingança contra Gotham City movidos pelo ressentimento – a vingança é o ressentimento em ação; a Mulher Gato age pelo ressentimento de não ter, de ter que roubar para ter, de ser infame e, por isso, não poder recomeçar sua vida numa sociedade da vigilância e da punição; Blake (ou Robin) nutre o ressentimento pela infância em orfanatos pobres; e, por fim, Batman é produto de um homem ressentido pela perda dos pais milionários e, mais tarde, da mulher que amava, para a violência urbana decorrente da criminalidade. Como bem disse o historiador Marc Ferro, semelhante a esses vírus que julgamos erradicados, quando estão apenas incubados, o ressentimento subitamente reativado ganha vida, para surpresa daqueles que nem sequer suspeitavam de sua existência. “O mal ressurge de onde tentamos enterrá-lo”, diz o comissário Gordon a Batman, referindo-se à Liga das Sombras. Em Miranda germinava a semente fascista da Liga e sua cólera contra os civis de Gotham, cidade julgada ingrata e em “decadência moral”.

O ressentimento tem um papel fundamental não só na constituição do sujeito, em sua transformação individual, mas também (e por meio do indivíduo) nas transformações coletivas; nos rumos que toma o coletivo ao qual ele pertence. O ressentimento subjaz, por exemplo, à luta de classes e ao racismo. “Quando a tempestade vier, você e seus amigos vão poder pensar sobre como puderam viver com tanto, deixando tão pouco para o resto de nós”, sussurra a Mulher Gato ao ouvido de Bruce Wayne, membro da elite econômica e intelectual de Gotham.

Para conseguir adesão popular à sua “revolução”, Bane interpela a maioria empobrecida por meio de seu ressentimento em relação aos ricos da cidade, tanto que, na sequência, cidadãos saqueiam lojas e mansões, como forma de aplacar a raiva por anos de privação de mercadorias cujo consumo é estimulado por uma publicidade onipresente, mas negado pelos salários de fome, e condenam os ricos à morte em tribunais populares. “Não estamos aqui como conquistadores, mas como libertadores que vão devolver o controle da cidade ao povo”, argumenta Bane.

Isto mostra como o discurso histórico da esquerda de promoção da justiça social, defesa das liberdades e devolução do poder ao povo pode ser manipulado por tiranos e ditadores de toda sorte, porque é isso que Bane é (há aí uma referência aos rumos que tomaram as revoluções socialistas da antiga União Soviética, cujo socialismo “real” foi implantado à custa de muitas vidas e do sacrifício das liberdades individuais, e de Cuba, onde homossexuais foram conduzidos ao fuzilamento por serem considerados “frutos da moral burguesa decadente”). Não se trata de um ataque por parte do filme aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que inspiraram as revoluções que transformaram o mundo nos últimos séculos, mas, sim, um ataque à manipulação desses ideais por fascistas disfarçados de líderes “revolucionários” ou políticos que, uma vez no poder, não hesitarão em trair esses ideais e instaurar ditaduras para sustentar seus privilégios.

O filme ainda faz uma sutil inversão de valores ao colocar a esperança como um sentimento nocivo. “Não há sofrimento real sem esperança”, diz Bane, ao se referir à esperança que é dada aos presidiários de escaparem do inferno e que só serve para aumentar o calvário destes, uma vez que a liberdade jamais será alcançada. Melhor que a esperança seria o medo da morte, este instinto primitivo que nos levaria a viver a vida como se não houvesse amanhã (e se você parara para pensar, na verdade, não há!); a viver sem espera nem crenças em vida eterna que só serviriam ao controle espiritual de homens e mulheres.

Por trás do ressentimento, individual ou coletivo, há uma ferida gerada por um trauma, uma afronta, uma humilhação ou uma violência sofrida e um desejo de repará-la, de curá-la. Essa ferida dói latejada apesar de toda vontade de esquecer, de todo esforço para esquecer.

Blake fala a Wayne sobre os sorrisos treinados em frente ao espelho que nunca o fizeram esquecer a dor de ter perdido o pai num crime decorrente de dívida de jogo. O contrário do ressentimento – e seu antídoto – é o impulso magnânimo do perdão, das desculpas e, sobretudo, da reparação. E, em sua sequência final, Batman – o Cavaleiro das Trevas Ressurge apela a esse impulso como forma de garantir o amanhã.

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