Sociedade

Aziz e eu

Uma homenagem ao grande intelectual e ser humano Aziz Ab’Saber, geógrafo e pesquisador da USP morto nesta sexta-feira

Aos 87 anos, morreu o geógrafo Aziz Ab'Saber na manhã desta sexta-feira. Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP
Apoie Siga-nos no

Se há algo bom de verdade nesta profissão de jornalista é ter a oportunidade de conhecer gente sábia. Eu posso dizer que tive a honra de conhecer alguns sábios ao longo da minha carreira. Um deles morreu hoje, aos 87 anos, mansamente, em sua casa em Cotia (SP): o geógrafo Aziz Ab’Saber. O Brasil perde um grande intelectual e um ser humano maravilhoso.

Há oito anos recebi da editora Record a incumbência de fazer um livro com o professor Aziz, “O Que É Ser Geógrafo”, um depoimento em primeira pessoa voltado para universitários. Começou então a amizade entre a jornalista de 30 e poucos que nada sabia de geografia além do que aprendera no colégio, e o maior geógrafo brasileiro, de quase oitenta. Foram mais de 20 horas de entrevistas em sua sala no Instituto de Estudos Avançados da USP, na verdade uma prosa prazerosa onde ele ia contando, de forma absolutamente poética, a história de sua vida.

De olhos fechados, o professor ia lembrando e, não raro, se emocionando, com os relatos que vinham do passado, de muito antes de ele nascer, na aldeia do Líbano de onde partira seu pai, Nacib, em direção ao Brasil. Era tão vívida e colorida a narrativa de Aziz Ab’Saber que me transportava até suas memórias: o mercado no Líbano; a feira em São Luiz do Paraitinga, cidade em que o professor nasceu; as excursões de campo, já na USP, com os mestres franceses que formaram a primeira geração de uspianos e que ele tanto admirava: Pierre Monbeig, Roger Bastide, Jean Tricart, Roger Dion, André de Cailleux, Jean Dresch, Louis Papi.

Os papos se estendiam depois, na lanchonete da faculdade de Letras ou do DCE –o professor sempre me convidava para um café com leite e um pão com manteiga. Dava para perceber o quanto ele amava estar no ambiente universitário, sobretudo entre os estudantes, que volta e meia vinham cumprimentá-lo. Uma tarde, quando já havíamos terminado o ciclo de entrevistas, ele passou em minha casa e disse: “Hoje você vai receber uma aula de geomorfologia”. E me levou para um recorrido pelo interior de São Paulo, na região de Itu, onde conheci o interessantíssimo parque do Varvito, um tipo de rocha sedimentar única, formada pela sucessão repetitiva de lâminas ou camadas.

Em Salto, ele me mostrou a força das águas do Tietê, poluído mas vivo, pulsante, ao contrário da placidez triste que o rio tem na capital. Subimos o monumento à Nossa Senhora de Monte Serrat, onde Ab’Saber me explicou in loco sua teoria dos redutos e refúgios: pedaços de paisagens que pertencem a outro ecossistema. Em pleno interior paulista, me mostrou areia e mandacarus típicos do Nordeste Seco. Sinal de que um dia houve caatingas também ali. Eu, a discípula, arregalava os olhos e aguçava os ouvidos.

Aprendi muito com o professor. O principal, para mim, foi descobrir que havia poesia na geografia. Nunca vou esquecer a linda expressão que usava para definir a paisagem montanhosa de sua terra natal, São Luiz: “mar de morros”. Inesquecível também a viagem a cavalo que me contou ter feito, pequenino, dentro do jacá (cesto de vime), pela serra do Mar, descendo até o litoral, em Ubatuba. Toda vez que vou à praia em São Paulo e percebo como é úmida a mata atlântica, lembro do professor Aziz contando dos “pinguinhos” que caíam no cesto de suas lembranças de menino e que, ele, curioso, se esforçava para entender, por entre as tramas do jacá.

Aziz Ab’Saber era um homem de esquerda, no sentido mais utópico do termo – nada a ver com partidos políticos, como as pessoas teimam em confundir hoje em dia. Foi dele a ideia, que deu a Lula, de fazer pelo País as caravanas da cidadania. E lembro de como ficou chateado por nunca ter sido convidado para ir ao Palácio do Planalto, depois da posse… Mais triste ainda ficou quando seu amigo operário foi capaz de dizer, em 2006, em tom de pilhéria: “se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas”. Ab’Saber foi de esquerda até o fim. Até o fim o centro de suas preocupações como intelectual foram os mais necessitados, os que viviam longe de tudo, os ribeirinhos, os catadores de papel, os moradores das favelas. Até o fim desejou a inserção social dos humanos desamparados e se indignou com a injustiça.

Sempre que eu ligava para sua casa, mal ouvia eu dizer “alô!” e o professor Aziz respondia: “Cynara! Minha amiga”. As amizades são assim, não importa quantos anos se tem, de onde se vem, onde se nasce. As almas se reconhecem. Vou sentir saudades, professor. Se existe Paraíso, espero que tenha vista para o mar de morros.

 

Ecos do Sino Grande (Aziz Ab’Saber)

Ainda oiço. Trago na memória.


Na noite de São Luiz


Escuto ainda


As badaladas arrastadas


Do sino grande


Da matriz.

Coisa rara: tivemos que sair


Minha mãe, minha madrinha e eu


Para arejar o pequeno Iussef


Que estava com tosse comprida.

Ruas desertas. Escuridão


Barro e chuvinha


Cheiro do mato vindo da outra banda


Do rio.

No alto do morro


O cruzeiro iluminado que meu pai,


Poeta introvertido,


Mandou iluminar.


Primeiras elétricas luzes,


Que antecediam


O pontilhado imenso que


marcava as luzes do universo.

Saudades de menino


Entes queridos.


Lembranças sentidas.


E, para completar


As badaladas arrastadas do sino grande


Que saudades, Deus meu!

Se há algo bom de verdade nesta profissão de jornalista é ter a oportunidade de conhecer gente sábia. Eu posso dizer que tive a honra de conhecer alguns sábios ao longo da minha carreira. Um deles morreu hoje, aos 87 anos, mansamente, em sua casa em Cotia (SP): o geógrafo Aziz Ab’Saber. O Brasil perde um grande intelectual e um ser humano maravilhoso.

Há oito anos recebi da editora Record a incumbência de fazer um livro com o professor Aziz, “O Que É Ser Geógrafo”, um depoimento em primeira pessoa voltado para universitários. Começou então a amizade entre a jornalista de 30 e poucos que nada sabia de geografia além do que aprendera no colégio, e o maior geógrafo brasileiro, de quase oitenta. Foram mais de 20 horas de entrevistas em sua sala no Instituto de Estudos Avançados da USP, na verdade uma prosa prazerosa onde ele ia contando, de forma absolutamente poética, a história de sua vida.

De olhos fechados, o professor ia lembrando e, não raro, se emocionando, com os relatos que vinham do passado, de muito antes de ele nascer, na aldeia do Líbano de onde partira seu pai, Nacib, em direção ao Brasil. Era tão vívida e colorida a narrativa de Aziz Ab’Saber que me transportava até suas memórias: o mercado no Líbano; a feira em São Luiz do Paraitinga, cidade em que o professor nasceu; as excursões de campo, já na USP, com os mestres franceses que formaram a primeira geração de uspianos e que ele tanto admirava: Pierre Monbeig, Roger Bastide, Jean Tricart, Roger Dion, André de Cailleux, Jean Dresch, Louis Papi.

Os papos se estendiam depois, na lanchonete da faculdade de Letras ou do DCE –o professor sempre me convidava para um café com leite e um pão com manteiga. Dava para perceber o quanto ele amava estar no ambiente universitário, sobretudo entre os estudantes, que volta e meia vinham cumprimentá-lo. Uma tarde, quando já havíamos terminado o ciclo de entrevistas, ele passou em minha casa e disse: “Hoje você vai receber uma aula de geomorfologia”. E me levou para um recorrido pelo interior de São Paulo, na região de Itu, onde conheci o interessantíssimo parque do Varvito, um tipo de rocha sedimentar única, formada pela sucessão repetitiva de lâminas ou camadas.

Em Salto, ele me mostrou a força das águas do Tietê, poluído mas vivo, pulsante, ao contrário da placidez triste que o rio tem na capital. Subimos o monumento à Nossa Senhora de Monte Serrat, onde Ab’Saber me explicou in loco sua teoria dos redutos e refúgios: pedaços de paisagens que pertencem a outro ecossistema. Em pleno interior paulista, me mostrou areia e mandacarus típicos do Nordeste Seco. Sinal de que um dia houve caatingas também ali. Eu, a discípula, arregalava os olhos e aguçava os ouvidos.

Aprendi muito com o professor. O principal, para mim, foi descobrir que havia poesia na geografia. Nunca vou esquecer a linda expressão que usava para definir a paisagem montanhosa de sua terra natal, São Luiz: “mar de morros”. Inesquecível também a viagem a cavalo que me contou ter feito, pequenino, dentro do jacá (cesto de vime), pela serra do Mar, descendo até o litoral, em Ubatuba. Toda vez que vou à praia em São Paulo e percebo como é úmida a mata atlântica, lembro do professor Aziz contando dos “pinguinhos” que caíam no cesto de suas lembranças de menino e que, ele, curioso, se esforçava para entender, por entre as tramas do jacá.

Aziz Ab’Saber era um homem de esquerda, no sentido mais utópico do termo – nada a ver com partidos políticos, como as pessoas teimam em confundir hoje em dia. Foi dele a ideia, que deu a Lula, de fazer pelo País as caravanas da cidadania. E lembro de como ficou chateado por nunca ter sido convidado para ir ao Palácio do Planalto, depois da posse… Mais triste ainda ficou quando seu amigo operário foi capaz de dizer, em 2006, em tom de pilhéria: “se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas”. Ab’Saber foi de esquerda até o fim. Até o fim o centro de suas preocupações como intelectual foram os mais necessitados, os que viviam longe de tudo, os ribeirinhos, os catadores de papel, os moradores das favelas. Até o fim desejou a inserção social dos humanos desamparados e se indignou com a injustiça.

Sempre que eu ligava para sua casa, mal ouvia eu dizer “alô!” e o professor Aziz respondia: “Cynara! Minha amiga”. As amizades são assim, não importa quantos anos se tem, de onde se vem, onde se nasce. As almas se reconhecem. Vou sentir saudades, professor. Se existe Paraíso, espero que tenha vista para o mar de morros.

 

Ecos do Sino Grande (Aziz Ab’Saber)

Ainda oiço. Trago na memória.


Na noite de São Luiz


Escuto ainda


As badaladas arrastadas


Do sino grande


Da matriz.

Coisa rara: tivemos que sair


Minha mãe, minha madrinha e eu


Para arejar o pequeno Iussef


Que estava com tosse comprida.

Ruas desertas. Escuridão


Barro e chuvinha


Cheiro do mato vindo da outra banda


Do rio.

No alto do morro


O cruzeiro iluminado que meu pai,


Poeta introvertido,


Mandou iluminar.


Primeiras elétricas luzes,


Que antecediam


O pontilhado imenso que


marcava as luzes do universo.

Saudades de menino


Entes queridos.


Lembranças sentidas.


E, para completar


As badaladas arrastadas do sino grande


Que saudades, Deus meu!

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo