Sociedade

A única cidade a adotar o ‘Escola sem Partido’

Sob críticas de educadores, Santa Cruz do Monte Castelo (PR) colocou em prática o polêmico programa de combate à “doutrinação política”

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Por Karina Gomes

As salas de aula da rede pública de ensino primário da pequena Santa Cruz do Monte Castelo, no norte do Paraná, foram tomadas por cartazes. Todos com a mesma mensagem: “O professor não pode se aproveitar dos alunos para promover seus próprios interesses ou preferências ideológicas, religiosas, políticas e partidárias”.

Os quadros trazem os pontos do programa “Escola sem Partido“, aprovado pela câmara municipal em 2014 e implementado nas escolas do município neste ano. Classificado por educadores como “lei da mordaça”, o projeto que prega o combate à “doutrinação política e ideológica” e impõe controle sobre o conteúdo ensinado pelos professores tem inspirado projetos de lei em dezenas de municípios, ao menos dez estados e no Congresso Nacional.

Santa Cruz do Monte Castelo, com 8 mil habitantes, é o único município do país onde o programa virou realidade. Desde o início de 2015, os coordenadores das escolas têm orientado os docentes sobre como se posicionar na sala de aula com a nova lei.

A professora Rita Soares*, há oito anos na rede municipal, descreve o projeto como absurdo. “Trabalho tentando fazer a diferença e provocar mudanças. A gestão democrática no município é quase impossível. Os professores estão desmotivados. Estão nos passando orientações sobre o programa, mas não sabemos o que vai acontecer. Queremos batalhar e mudar essa situação”, disse em entrevista à DW Brasil.

Valdevina da Cunha Guerreiro, secretária municipal de Educação de Santa Cruz do Monte Castelo, diz que não houve grandes questionamentos de pais ou professores. “Na prática, o professor do primário não questiona política ideológica ou religião. Fica neutro”, explica. “Se fosse no ensino fundamental, teria gerado uma polêmica maior. As crianças não têm uma criticidade avançada.”

Além disso, a implementação da lei caminha a passos lentos com a proximidade das eleições municipais, marcadas para outubro. Mas algumas mudanças já são perceptíveis. “Algumas crianças trazem figurinhas de propaganda de políticos. Agora, o professor pede para que elas guardem esse tipo de material e não discutam o assunto”, diz Guerreiro.

A abordagem sobre religião também foi alterada. “Antes, o professor orava de acordo com sua religião, sobretudo o catolicismo. Ele não dava ênfase aos evangélicos, por exemplo. Agora não se faz mais orações porque há crianças de várias religiões. Os textos trabalhados falam sobre um ser maior, mas não tocam na questão de Deus. Trabalhamos todos os símbolos religiosos”, conta.

Onda de denuncismo

A professora Walkíria Olegato Mazeto, secretária educacional do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, integra uma frente estadual contra o projeto. A matéria chegou a ser apresentada na Assembleia Legislativa do estado, mas foi retirada da pauta após forte pressão dos educadores. “O próprio projeto já traz uma concepção ideológica, dizendo o que pode e o que não pode ser ensinado dentro da escola. Então ele já toma uma posição política. Na prática institui uma ideologia única que todas as escolas devem seguir”, critica.

A professora de geografia diz que, apesar de a lei não ter sido aprovada em âmbito estadual, o projeto tem gerado uma onda de denuncismo contra docentes no Paraná. O movimento “Endireita Londrina”, formado por um grupo de advogados, incentiva pais a denunciar conteúdos ministrados pelos professores. As principais reclamações estão relacionadas à questão de gênero.

“Temos um professor de história que foi denunciado por ter abordado a questão do homossexualismo na Grécia Antiga, o que foi interpretado como apologia à questão LGBT e como incentivo à homossexualidade”, conta.

As denúncias, que começaram em 2015, também questionam a discussão sobre ideias de teóricos de esquerda. “Quando uma família discorda de uma corrente de pensamento, acaba denunciando um professor por supostamente ferir princípios que ela defende”, explica.

Questões mais urgentes

O movimento “Escola sem Partido” foi criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib. A página da associação na internet traz depoimentos e denúncias de pais sobre professores que estariam tentando doutrinar os alunos com discussões políticas ou religiosas. O “Escola sem Partido” também chegou a ser aprovado em Campo Grande (MS), Picuí (PB) e no estado de Alagoas, mas foi vetado após intensos protestos de movimentos de professores.

A consulta pública do Senado sobre um projeto de lei do senador Magno Malta (PR-ES), que pretende incluir os pontos do “Escola sem Partido” na Lei de Bases e Diretrizes da Educação Nacional (LBD), atingiu recorde de participações, com mais de 370 mil.

Para Sonia Penin, professora titular da Faculdade de Educação da USP, leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria LBD já garantem direitos aos alunos e permitem aos pais questionar a escola sobre situações específicas. “É um projeto totalmente sem sentido que atravessa a independência dos professores”, opina. “Em momentos de crise política, como o atual, é fundamental que as escolas coloquem todas as posições na mesa, discutindo os temas de forma ampla e aberta e não de forma fechada, como se estivéssemos num país totalitário.”

Marco Antonio Carvalho Teixeira, cientista político da FGV-SP, diz que o “Escola sem Partido” desconecta a sala de aula e os estudantes da realidade social. “Esse projeto toca em questões que são muito mais do século 19 do que do século 21”, critica. “Quando se busca aniquilar a circulação da palavra ‘ideologia’, não se reconhece que a sociedade é feita por forças que se movem. Não existe neutralidade, ou seja, ninguém deixa de se posicionar”, afirma.

Para o especialista, a principal questão a ser discutida sobre educação no Brasil é a inclusão e a qualidade. “Em momento algum, o projeto se preocupa com isso. O Brasil resolveu há algum tempo o problema da inclusão no ensino fundamental, mas boa parte dos jovens ainda não conclui o ensino médio. Tem problemas muito maiores para gastarmos energia do que com uma ‘besteira’ dessa.”

*O nome foi alterado a pedido do entrevistado.

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