Sociedade

A dor de Jerôncio

A história do lavrador que, da noite para o dia – e sem o amparo da lei – perdeu a guarda dos quatro filhos

Galeria de René Mayorga/Flickr
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Por Emiliano José*

 

Jerôncio Brito de Souza é lavrador na roça do pai, de outros que seja. Ou levanta casas, pedreiro, quando o trabalho na lavoura escasseia. Pau pra toda obra. Não despreza uma cachaça, que ninguém é de ferro. Aproxima-se agora da casa dos 30 anos. Casou-se cedo com Silvânia Mota da Silva, também com menos de 30. Protagonistas da dor dilacerante de terem perdido os filhos. Não de morte morrida ou morte matada. Levaram-nos embora, sumiram com eles no mundo, sem lhes dar explicação.

Jerôncio é pai de quatro crianças, todas da união dele com Silvânia: Ricardo Wallace, seis anos; Daniel, quatro; Danilo, três; e Luan, de apenas um ano e meio. Silvânia, além desses, é mãe de Estefane, fruto de outra relação, recém-nascida. Dois mandados de busca e apreensão, entre maio e junho deste ano, tiraram as crianças do aconchego deles, tornando-os quase mortos-vivos, sem alegria de viver, e sem saber o que fazer ou sem a quem apelar. A lei, insondável para eles, havia lhes tirado a razão de viver, mandado seus filhos para não sabe que mundo ou destino. Jerôncio nunca se conformou.

Até hoje só faz chorar. No dia seguinte à retirada das crianças de sua casa, invadiu o Conselho Tutelar, quis arrebentar tudo, distribuiu pontapés em mesas e cadeiras, assustou conselheiras. Que mais esperar de um pai que não sabe a quem responsabilizar? Não machucou ninguém, não quebrou nenhum computador, nada. Era um pai em transe, enlouquecido de amor pelos filhos. Mas a lei, ela e suas manias, o levou para a prisão, onde ficou por 21 dias. Da cadeia só saiu ao custo de cinco mil reais, não se sabe se pagos ao advogado ou como fiança. O pai dele teve que vender uma casinha para tirá-lo do inferno. Daquele inferno, porque do outro não consegue sair.

Perambulou pela cidade, errante, entrou numa lojinha, pegou duas cuequinhas de criança, saiu. Chorava. A dona nem se incomodou porque se fora sem pagar. Como não se sensibilizar com tanta dor? De vez em quando, agarra as fotos dos meninos, numa moldura dourada, alisa que alisa, como se acariciasse cada um deles, imagina-os ali ao lado dele, e chora feito criança. Reflete, pensa, fala: “Eu sou um homem. Meus filhos não são filhos de urubu”. A fala aparentemente desencontrada, quase uma demência, demência de amor. Embalado pelo álcool, promete matar a galega. É, a galega andou coisa de quatro anos por Monte Santo, município do Norte da Bahia, onde se deu a tragédia.

Monte Santo é município lembrado por ter servido de acampamento das tropas que massacraram Antônio Conselheiro e seus seguidores, até o último homem. É município do sertão, clima inclemente, seca constante, pobreza que não é pequena. Gente de fé, que reza com freqüência, que sobe a longa escadaria que leva à igrejinha lá nos cimos para rezar e pedir milagres. Agora, a seca e sua dureza é aplacada pelas políticas sociais do governo Lula e Dilma, especialmente o Bolsa-Família.

Volto a Jerôncio, que falava da galega. Ele sabia que ela rondava os seus filhos para entregá-los não se sabe a quem. Sabia, via-a rondando sua casa, conversando nas vizinhanças, fazendo cumplicidades, espionando sua vida, urdindo não sabe que trama, espalhando maledicências. Estava sempre à procura de crianças para adotar – para ela mesma ou para terceiros. O nome da galega é Carmem, mais não sabe.

Jerôncio tem consciência hoje que seus filhos, suas crianças, foram levados sem nenhum amparo na lei. Tomaram-lhe a guarda sem a observância de requisitos essenciais. Afinal, era um pai presente. Afinal, contribuía para o sustento deles, mesmo que não o fizesse de modo regular porque a vida andava dura, emprego pouco. Tratava seus filhos com carinho, tinha e tem um amor profundo por eles.

Que direito tinham de levá-los, “como se fossem filhos de urubu”? Ele pensa que a lei deveria proteger a família, garantir que os filhos fiquem com os pais, e não o contrário. E a lei, aliás, garante isso. Mas, por razões que nem sempre são conhecidas, a aplicação dela é feita às avessas, como nesse caso.  Depois que levaram os filhos de Jerôncio, Carmem e seu marido Bernard sumiram. O casal, aliás, já tem a guarda de três crianças, duas de Monte Santo e outra de Euclides da Cunha e nunca foi investigado. E obviamente teve participação na articulação que tirou os filhos de Jerôncio e Silvânia.

Esta, hoje, é uma jovem triste. Perdeu os cinco filhos, sem que lhe explicassem as razões. Mora com os pais e com seu novo bebê, Juan, filho do outro companheiro. A avó costuma afirmar que ninguém tirará Juan dos braços dela. A casa toda imersa na tristeza, olhos sem brilho entre roupas, brinquedos e fotos das crianças que se perderam no mundo, olhadas e reolhadas entre lágrimas, como se isso as trouxessem de volta. Mataram a alegria de dois jovens, estraçalharam uma família. Mas, há uma luz no fim do túnel.

A ação do Ministério Público e do novo juiz de Monte Santo permitiu que as crianças presumivelmente adotadas, num processo absolutamente irregular, fossem localizadas. Já se tem os endereços. Menos de um, Luan, então com um ano e meio, que sumiu, simplesmente sumiu. Quanto aos outros, restam as providências legais, que se reclamam, urgentes, para fazê-los voltar aos braços de seus pais, que é o lugar deles, de onde nunca poderiam ter sido tirados, salvo se fossem violentos com as crianças, se não tivessem condições de criá-las, se não houvessem avós dispostos a cuidar delas. E nada disso ocorria.

A dor do pai e da mãe é a prova mais evidente do crime cometido – crime contra a humanidade. Ressalto o papel absolutamente essencial da jornalista Eleonora Ramos na elucidação de toda essa trama, que espero resulte num desfecho feliz para as crianças, todas, inclusive Luan, e para os pais. Destaco, também, a prontidão com que agiu o procurador-geral de Justiça da Bahia, Wellington César Lima e Silva, ao tomar conhecimento do crime.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das mais caras conquistas da democracia pós-ditadura, é uma lei que protege as crianças e que pretende, salvo em condições excepcionalíssimas, que elas sejam criadas por seus pais. Ninguém pode negar a Jerôncio e Silvânia o direito de criar seus filhos. O direito de amá-los, de vê-los crescer, se desenvolver. Por isso, devem todos voltar aos seus pais. Feita a justiça, nesse caso, desestimula-se a repetição de adoções criminosas como estas.

Jerôncio, depois que recebeu a visita de Eleonora Ramos, e que soube que suas crianças haviam sido levadas sem amparo na lei, que havia possibilidade de retornarem, passou a beber menos, trabalhar mais. Certamente, quer que os filhos o encontrem bem, inteiro, pronto a seguir a vida ao lado deles, dando-lhes amor, carinho, proteção. E que desfrutem também do amor e carinho de Silvânia, não importando se agora não estejam mais vivendo juntos. Pai e mãe podem perfeitamente criar bem os filhos, mesmo separados. O que não se admite é que, como neste caso, se faça a violência de tentar destruir a possibilidade de os pais criarem seus filhos.

 

*jornalista e escritor.

www.emilianojose.com.br

 

 

Por Emiliano José*

 

Jerôncio Brito de Souza é lavrador na roça do pai, de outros que seja. Ou levanta casas, pedreiro, quando o trabalho na lavoura escasseia. Pau pra toda obra. Não despreza uma cachaça, que ninguém é de ferro. Aproxima-se agora da casa dos 30 anos. Casou-se cedo com Silvânia Mota da Silva, também com menos de 30. Protagonistas da dor dilacerante de terem perdido os filhos. Não de morte morrida ou morte matada. Levaram-nos embora, sumiram com eles no mundo, sem lhes dar explicação.

Jerôncio é pai de quatro crianças, todas da união dele com Silvânia: Ricardo Wallace, seis anos; Daniel, quatro; Danilo, três; e Luan, de apenas um ano e meio. Silvânia, além desses, é mãe de Estefane, fruto de outra relação, recém-nascida. Dois mandados de busca e apreensão, entre maio e junho deste ano, tiraram as crianças do aconchego deles, tornando-os quase mortos-vivos, sem alegria de viver, e sem saber o que fazer ou sem a quem apelar. A lei, insondável para eles, havia lhes tirado a razão de viver, mandado seus filhos para não sabe que mundo ou destino. Jerôncio nunca se conformou.

Até hoje só faz chorar. No dia seguinte à retirada das crianças de sua casa, invadiu o Conselho Tutelar, quis arrebentar tudo, distribuiu pontapés em mesas e cadeiras, assustou conselheiras. Que mais esperar de um pai que não sabe a quem responsabilizar? Não machucou ninguém, não quebrou nenhum computador, nada. Era um pai em transe, enlouquecido de amor pelos filhos. Mas a lei, ela e suas manias, o levou para a prisão, onde ficou por 21 dias. Da cadeia só saiu ao custo de cinco mil reais, não se sabe se pagos ao advogado ou como fiança. O pai dele teve que vender uma casinha para tirá-lo do inferno. Daquele inferno, porque do outro não consegue sair.

Perambulou pela cidade, errante, entrou numa lojinha, pegou duas cuequinhas de criança, saiu. Chorava. A dona nem se incomodou porque se fora sem pagar. Como não se sensibilizar com tanta dor? De vez em quando, agarra as fotos dos meninos, numa moldura dourada, alisa que alisa, como se acariciasse cada um deles, imagina-os ali ao lado dele, e chora feito criança. Reflete, pensa, fala: “Eu sou um homem. Meus filhos não são filhos de urubu”. A fala aparentemente desencontrada, quase uma demência, demência de amor. Embalado pelo álcool, promete matar a galega. É, a galega andou coisa de quatro anos por Monte Santo, município do Norte da Bahia, onde se deu a tragédia.

Monte Santo é município lembrado por ter servido de acampamento das tropas que massacraram Antônio Conselheiro e seus seguidores, até o último homem. É município do sertão, clima inclemente, seca constante, pobreza que não é pequena. Gente de fé, que reza com freqüência, que sobe a longa escadaria que leva à igrejinha lá nos cimos para rezar e pedir milagres. Agora, a seca e sua dureza é aplacada pelas políticas sociais do governo Lula e Dilma, especialmente o Bolsa-Família.

Volto a Jerôncio, que falava da galega. Ele sabia que ela rondava os seus filhos para entregá-los não se sabe a quem. Sabia, via-a rondando sua casa, conversando nas vizinhanças, fazendo cumplicidades, espionando sua vida, urdindo não sabe que trama, espalhando maledicências. Estava sempre à procura de crianças para adotar – para ela mesma ou para terceiros. O nome da galega é Carmem, mais não sabe.

Jerôncio tem consciência hoje que seus filhos, suas crianças, foram levados sem nenhum amparo na lei. Tomaram-lhe a guarda sem a observância de requisitos essenciais. Afinal, era um pai presente. Afinal, contribuía para o sustento deles, mesmo que não o fizesse de modo regular porque a vida andava dura, emprego pouco. Tratava seus filhos com carinho, tinha e tem um amor profundo por eles.

Que direito tinham de levá-los, “como se fossem filhos de urubu”? Ele pensa que a lei deveria proteger a família, garantir que os filhos fiquem com os pais, e não o contrário. E a lei, aliás, garante isso. Mas, por razões que nem sempre são conhecidas, a aplicação dela é feita às avessas, como nesse caso.  Depois que levaram os filhos de Jerôncio, Carmem e seu marido Bernard sumiram. O casal, aliás, já tem a guarda de três crianças, duas de Monte Santo e outra de Euclides da Cunha e nunca foi investigado. E obviamente teve participação na articulação que tirou os filhos de Jerôncio e Silvânia.

Esta, hoje, é uma jovem triste. Perdeu os cinco filhos, sem que lhe explicassem as razões. Mora com os pais e com seu novo bebê, Juan, filho do outro companheiro. A avó costuma afirmar que ninguém tirará Juan dos braços dela. A casa toda imersa na tristeza, olhos sem brilho entre roupas, brinquedos e fotos das crianças que se perderam no mundo, olhadas e reolhadas entre lágrimas, como se isso as trouxessem de volta. Mataram a alegria de dois jovens, estraçalharam uma família. Mas, há uma luz no fim do túnel.

A ação do Ministério Público e do novo juiz de Monte Santo permitiu que as crianças presumivelmente adotadas, num processo absolutamente irregular, fossem localizadas. Já se tem os endereços. Menos de um, Luan, então com um ano e meio, que sumiu, simplesmente sumiu. Quanto aos outros, restam as providências legais, que se reclamam, urgentes, para fazê-los voltar aos braços de seus pais, que é o lugar deles, de onde nunca poderiam ter sido tirados, salvo se fossem violentos com as crianças, se não tivessem condições de criá-las, se não houvessem avós dispostos a cuidar delas. E nada disso ocorria.

A dor do pai e da mãe é a prova mais evidente do crime cometido – crime contra a humanidade. Ressalto o papel absolutamente essencial da jornalista Eleonora Ramos na elucidação de toda essa trama, que espero resulte num desfecho feliz para as crianças, todas, inclusive Luan, e para os pais. Destaco, também, a prontidão com que agiu o procurador-geral de Justiça da Bahia, Wellington César Lima e Silva, ao tomar conhecimento do crime.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das mais caras conquistas da democracia pós-ditadura, é uma lei que protege as crianças e que pretende, salvo em condições excepcionalíssimas, que elas sejam criadas por seus pais. Ninguém pode negar a Jerôncio e Silvânia o direito de criar seus filhos. O direito de amá-los, de vê-los crescer, se desenvolver. Por isso, devem todos voltar aos seus pais. Feita a justiça, nesse caso, desestimula-se a repetição de adoções criminosas como estas.

Jerôncio, depois que recebeu a visita de Eleonora Ramos, e que soube que suas crianças haviam sido levadas sem amparo na lei, que havia possibilidade de retornarem, passou a beber menos, trabalhar mais. Certamente, quer que os filhos o encontrem bem, inteiro, pronto a seguir a vida ao lado deles, dando-lhes amor, carinho, proteção. E que desfrutem também do amor e carinho de Silvânia, não importando se agora não estejam mais vivendo juntos. Pai e mãe podem perfeitamente criar bem os filhos, mesmo separados. O que não se admite é que, como neste caso, se faça a violência de tentar destruir a possibilidade de os pais criarem seus filhos.

 

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