Cultura

‘O que é bom a gente fatura’

Numa campanha política, posições religiosas causam mais comoção que qualquer projeto. E os bastidores definem o jogo. Isso não é privilégio de americano…

Meio Clooney, meio Ryan Gosling: filme aborda a influência da relação com a imprensa na postura de um candidato
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Com certo atraso, fui ontem assistir “Tudo pelo Poder”, thriller político dirigido por George Clooney sobre os bastidores de uma pré-campanha presidencial nos Estados Unidos.

O filme tinha gancho: está em cartaz por esses lados justamente enquanto republicanos se acotovelam para decidir quem vai para a briga com o democrata Barack Obama em novembro. A coisa anda tão acirrada que, no primeiro capítulo das prévias, em Iowa, o primeiro colocado, o moderado Mitt Romney, recebeu apenas oito votos a mais que o segundo, o fundamentalista cristão Rick Santorum. Foram 30.015 votos contra 30.007.

 

Por lá, como se sabe, os pré-candidatos do mesmo partido se estropiam em eleições de verdade para, quem sair vivo, disputar a Presidência. Por cá, a ideia de “prévias” causa arrepio entre caciques, e é sempre vista como sinal de racha, que mais fragiliza do que fortalece o nome do partido. “Consenso” em torno de um nome só, por aqui, pega melhor.

Fato é que, em Tudo pelo Poder, o cenário é bem parecido com uma eleição de fato. Tem derrapadas feias, mas capta de certa forma o ambiente de uma campanha: as paranoias, as intrigas, a construção de discursos, os cuidados muitas vezes desnecessários sobre a exposição do postulante, os acertos para apoios, a partilha de cargos antes mesmo do resultado, a relação de interesses entre os coordenadores de campanha e a imprensa, as rodas de conselheiros, a temperatura de um comitê e o número de profissionais que a corrida exige, com gastos exorbitantes, financiamento, viagens, bastidores…

O elenco impressiona: o próprio Clooney (no papel de Mike Morris, o candidato a candidato democrata), Philip Seymour Hoffman (o coordenador da campanha), Evan Rachel Wood (a estagiária), Paul Giamatti (o coordenador da campanha rival), Marisa Tomei (a colunista interesseira), Jeffrey Wright (o senador de Ohio, de quem todos querem apoio), Gregory Itzin (o candidato rival).

Mas é Sthephen Myers, o assessor de imprensa interpretado por Ryan Gosling, quem assume o papel principal da campanha e do filme. É ele o responsável por municiar a imprensa com informações que valorizem seu candidato, e que tenta filtrar o que não interessa.

 

Seria uma versão americana do famoso “eu não tenho escrúpulos, o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”, que consagrou o então ministro da Fazenda Rubens Ricupero no governo Itamar Franco.

O cartaz do filme não poderia ser mais perfeito: de um lado, metade rosto do candidato (Clooney) estampado na revista Time; na outra metade, o assessor de imprensa.

Até certa parte do filme, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Não há fala do governador que não passa pelo crivo do assessor, que planeja cada detalhe do que deve ser dito e proposto.

E o que importa dizer? “É a economia, estúpido?”

Não. É o aborto. Quem se aventurou a tentar uma vaga para presidente do Brasil, no ano passado, sabe quantos miolos foram estourados na tentativa de se desviar dos petardos enviados todo santo dia em torno da questão. “É a favor do aborto?” “E da descriminalização?” “E as criancinhas?”

Houve quem tentasse faturar com o episódio ao ver do outro lado do páreo duas mulheres candidatas. Tudo pelo poder, não?

Numa eleição, os debates entre candidatos são repetitivos, cansativos, pouco esclarecem. As perguntas quase nunca prospectam o que deve ser feito sobre determinada questão, mas sim a posição pessoal de alguém cercado (ou amarrado) pelos grupos que representa (os evangélicos não podem ser provocados), as amarras políticas, e a Constituição. Todos querem saber “o que acha” o candidato sobre o tema-tabu, e poucos se interessam em saber “o que deve ser feito”.

A impressão é que estamos sempre elegendo padres, e não presidentes.

Nessas horas, frases de efeito, como ensina a Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, valem mais que qualquer filosofia ou ideia nova. O “antes de mudar as leis, reformemos os costumes” tem suas vertentes no século XXI como “o futuro é a educação”, “a saúde vai ser prioridade” e outras sacadas menos legíveis acerca de “transversalidades”, captadas por uns e não por outros.

Por fim, julga-se a pessoa e não o homem público, e também a sua capacidade de ganhar tempo, repetir os mesmos bordões e não se encrencar. Mas a encrenca existe, e todo mundo tem um esqueleto de elefante trancado no armário – pelo menos no caso do filme.

Mas é aí que Clooney se perde, a história se rala num nó inverossímil e tudo parece perder o sentido. Como os eleitores de qualquer urna do mundo, Clooney dá um jeito de colocar o tema “aborto” no filme e compromete boa parte da trama, que fica mal amarrada…

Ainda assim, a pergunta deixada pelo diretor chega a dar medo: até onde candidato e estafe acreditam no que estão dizendo? Até onde faz sentido a ideia de coerência na vida pública, se para vencer e governar são necessários tantos acordos, tantos delegados (ao menos os americanos), tantos recursos para campanha?

Myers aparentemente acreditava no que dizia. E pagou um preço por isso, ainda que a maioria só quisesse saber se o candidato, ou candidata, era ou não capaz de promover um aborto antes de definir seu voto.

Com certo atraso, fui ontem assistir “Tudo pelo Poder”, thriller político dirigido por George Clooney sobre os bastidores de uma pré-campanha presidencial nos Estados Unidos.

O filme tinha gancho: está em cartaz por esses lados justamente enquanto republicanos se acotovelam para decidir quem vai para a briga com o democrata Barack Obama em novembro. A coisa anda tão acirrada que, no primeiro capítulo das prévias, em Iowa, o primeiro colocado, o moderado Mitt Romney, recebeu apenas oito votos a mais que o segundo, o fundamentalista cristão Rick Santorum. Foram 30.015 votos contra 30.007.

 

Por lá, como se sabe, os pré-candidatos do mesmo partido se estropiam em eleições de verdade para, quem sair vivo, disputar a Presidência. Por cá, a ideia de “prévias” causa arrepio entre caciques, e é sempre vista como sinal de racha, que mais fragiliza do que fortalece o nome do partido. “Consenso” em torno de um nome só, por aqui, pega melhor.

Fato é que, em Tudo pelo Poder, o cenário é bem parecido com uma eleição de fato. Tem derrapadas feias, mas capta de certa forma o ambiente de uma campanha: as paranoias, as intrigas, a construção de discursos, os cuidados muitas vezes desnecessários sobre a exposição do postulante, os acertos para apoios, a partilha de cargos antes mesmo do resultado, a relação de interesses entre os coordenadores de campanha e a imprensa, as rodas de conselheiros, a temperatura de um comitê e o número de profissionais que a corrida exige, com gastos exorbitantes, financiamento, viagens, bastidores…

O elenco impressiona: o próprio Clooney (no papel de Mike Morris, o candidato a candidato democrata), Philip Seymour Hoffman (o coordenador da campanha), Evan Rachel Wood (a estagiária), Paul Giamatti (o coordenador da campanha rival), Marisa Tomei (a colunista interesseira), Jeffrey Wright (o senador de Ohio, de quem todos querem apoio), Gregory Itzin (o candidato rival).

Mas é Sthephen Myers, o assessor de imprensa interpretado por Ryan Gosling, quem assume o papel principal da campanha e do filme. É ele o responsável por municiar a imprensa com informações que valorizem seu candidato, e que tenta filtrar o que não interessa.

 

Seria uma versão americana do famoso “eu não tenho escrúpulos, o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”, que consagrou o então ministro da Fazenda Rubens Ricupero no governo Itamar Franco.

O cartaz do filme não poderia ser mais perfeito: de um lado, metade rosto do candidato (Clooney) estampado na revista Time; na outra metade, o assessor de imprensa.

Até certa parte do filme, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Não há fala do governador que não passa pelo crivo do assessor, que planeja cada detalhe do que deve ser dito e proposto.

E o que importa dizer? “É a economia, estúpido?”

Não. É o aborto. Quem se aventurou a tentar uma vaga para presidente do Brasil, no ano passado, sabe quantos miolos foram estourados na tentativa de se desviar dos petardos enviados todo santo dia em torno da questão. “É a favor do aborto?” “E da descriminalização?” “E as criancinhas?”

Houve quem tentasse faturar com o episódio ao ver do outro lado do páreo duas mulheres candidatas. Tudo pelo poder, não?

Numa eleição, os debates entre candidatos são repetitivos, cansativos, pouco esclarecem. As perguntas quase nunca prospectam o que deve ser feito sobre determinada questão, mas sim a posição pessoal de alguém cercado (ou amarrado) pelos grupos que representa (os evangélicos não podem ser provocados), as amarras políticas, e a Constituição. Todos querem saber “o que acha” o candidato sobre o tema-tabu, e poucos se interessam em saber “o que deve ser feito”.

A impressão é que estamos sempre elegendo padres, e não presidentes.

Nessas horas, frases de efeito, como ensina a Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, valem mais que qualquer filosofia ou ideia nova. O “antes de mudar as leis, reformemos os costumes” tem suas vertentes no século XXI como “o futuro é a educação”, “a saúde vai ser prioridade” e outras sacadas menos legíveis acerca de “transversalidades”, captadas por uns e não por outros.

Por fim, julga-se a pessoa e não o homem público, e também a sua capacidade de ganhar tempo, repetir os mesmos bordões e não se encrencar. Mas a encrenca existe, e todo mundo tem um esqueleto de elefante trancado no armário – pelo menos no caso do filme.

Mas é aí que Clooney se perde, a história se rala num nó inverossímil e tudo parece perder o sentido. Como os eleitores de qualquer urna do mundo, Clooney dá um jeito de colocar o tema “aborto” no filme e compromete boa parte da trama, que fica mal amarrada…

Ainda assim, a pergunta deixada pelo diretor chega a dar medo: até onde candidato e estafe acreditam no que estão dizendo? Até onde faz sentido a ideia de coerência na vida pública, se para vencer e governar são necessários tantos acordos, tantos delegados (ao menos os americanos), tantos recursos para campanha?

Myers aparentemente acreditava no que dizia. E pagou um preço por isso, ainda que a maioria só quisesse saber se o candidato, ou candidata, era ou não capaz de promover um aborto antes de definir seu voto.

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