Política

Leniência superior

A letargia de Suzana Camargo, candidata a uma vaga no STJ, garantiu a impunidade a um grupo de sonegadores

Problema crônico. Na segunda instância onde atua a magistrada, os processos criminais caminham lentamente. Foto: Bruno Henrique / Correio do Estado
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Um emblemático caso de prescrição na Justiça Federal expõe os meandros de um sistema que favorece a impunidade de criminosos de “colarinho-branco”. Trata-se de um processo que resultou na condenação, em primeira instância, de 12 acusados de crimes de ordem tributária, fartamente documentados após fiscalizações da Receita e investigações conduzidas pela Polícia Federal. Em valores atualizados, o rombo causado nas contas do Fisco seria de 2,5 milhões de reais. Os réus foram condenados a sete anos de prisão. Quatro deles tiveram a pena acrescida em um ano por formação de quadrilha. Com o direito de apelar da sentença em liberdade, todos, sem exceção, acabaram beneficiados com a prescrição do crime por causa da demora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) em avaliar o caso, apesar dos sucessivos alertas feitos por procuradores de que esse risco era iminente. A Corte dormiu sobre o caso e os condenados permanecem livres.

À frente da relatoria do processo esteve ninguém menos que a desembargadora Suzana Camargo, que acaba de deixar a corregedoria do tribunal federal e é candidata a assumir uma vaga no Superior Tribunal de Justiça. Dilma Rousseff deve anunciar a sua escolha em breve, e Camargo é considerada favorita para substituir o ministro Aldir Passarinho Junior, que se aposentou. Não apenas por ser mulher e pertencer ao tribunal mais movimentado da segunda instância federal, mas pela influência de seu cunhado, Ari Pargendler, presidente do STJ. Ambos os magistrados têm percorrido gabinetes de políticos em busca de apoio à candidatura, o que teria, inclusive, constrangido alguns ministros da Corte, segundo relatos na mídia.

O processo em questão diz respeito a um clássico caso de sonegação fiscal. Os acusados, na condição de sócios-gerentes da empresa Kavty do Brasil Indústria de Pisos de Computadores Ltda., teriam se utilizado de notas fiscais frias emitidas por duas empresas fantasmas com a finalidade de fraudar o Fisco, simulando despesas inexistentes. Entre 1992 e 1993, a empresa sonegou o pagamento de diversos tributos, como Imposto de Renda, Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Dessa forma, teriam sido suprimidos dos cofres públicos a quantia de 1.116.230,04 ufir, o equivalente a atuais 2,5 milhões de reais. Os crimes, agravados pela acusação de fraude documental, resultaram na condenação de sete anos de prisão, a serem cumpridos inicialmente em regime semiaberto. Mas na segunda instância a morosidade do Judiciário fez cair por terra a pretensão punitiva.

O recurso de apelação criminal foi distribuído ao tribunal em agosto de 1999, quatro meses após a sentença condenatória em primeira instância ter sido assinada pelo juiz Fausto de Sanctis. No início de 2000, a Procuradoria Regional da República emitiu seu parecer, pela manutenção da condenação. Passados quatro anos sem o julgamento do caso, a procuradora Geisa de Assis Rodrigues alertou pela primeira vez a desembargadora Suzana Camargo sobre o risco de prescrição. “Trata-se de crimes contra a ordem tributária, causadores de graves lesões aos cofres públicos, o que traduz a necessidade de um pronunciamento definitivo acerca das responsabilidades dos seus agentes”, anotou na petição, datada de abril de 2004.

Sem resposta por parte da magistrada, Geisa voltou a pedir urgência no julgamento em dezembro do mesmo ano: “Em virtude do grande lapso decorrido da publicação da sentença, ocorrida em 28 de abril de 1999, há risco da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva”. A procuradora voltaria, uma terceira vez, em fevereiro de 2006, a encaminhar uma petição à desembargadora: “Em 12 de abril de 2004 e em 9 de dezembro de 2004 foram protocolados pedidos de prioridade do julgamento da referida ação, contudo, desde aquela data não ocorreu o julgamento da ação, sendo que os autos encontram-se conclusos à relatora”.

Apesar dos três alertas, o caso continuou sem julgamento. Suzana deixaria a relatoria do processo em maio de 2007, quando se licenciou para tomar posse da vice-presidência do tribunal. “Infelizmente, essa demora é pratica recorrente na Corte. Não acredito que a doutora Suzana tenha feito isso para favorecer alguém. Os desembargadores são obrigados a avaliar uma avalanche de casos cíveis, além das matérias criminais, e acaba ocorrendo esse tipo de situação”, afirmou Geisa Rodrigues a CartaCapital. “Só que os processos criminais correm risco de prescrição. Essa é uma das razões de eu ter abandonado a atuação criminal e passado a outras áreas. Há uma série de problemas estruturais que favorece a impunidade”, desabafa.

Assim que Suzana Camargo tomou posse como vice-presidente da Corte, o desembargador Baptista Pereira assumiu a relatoria do processo. Após um novo alerta feito pela Procuradoria, ele avaliaria o caso em fevereiro de 2008. Registrou, “não sem incômodo”, que o prazo prescricional havia sido superado. Os acusados não poderiam mais ser punidos. CartaCapital solicitou entrevista com Suzana Camargo, mas a assessoria de imprensa do Tribunal Federal informou que a desembargadora está de férias.

Segundo a procuradora-chefe da 3ª Região, Luiza Cristina Frischeisen, o caso é, de fato, atípico. “Tudo que poderia dar errado deu. O cálculo de prescrição foi equivocado, houve troca de relatoria, o que costuma atrasar os processos, e a desembargadora não deu atenção aos pedidos de prioridade”, avalia, a partir da leitura da decisão de Baptista Pereira. “Mas não se iluda, esse é um problema crônico na segunda instância federal. Como não há turmas de desembargadores com dedicação exclusiva à área criminal, eles estão atolados com uma avalanche de processos cíveis. Os atrasos são recorrentes e a chance de um crime prescrever é considerável, sobretudo em casos financeiros e tributários, nos quais o prazo de prescrição é menor.”

Apenas no ano passado, 199 casos prescreveram no tribunal da 3ª Região, segundo um levantamento da Procuradoria. Em 2010, foram 229. Boa parte deles, alerta Frischeisen, vieram prescritos da primeira instância, graças a alterações no prazo prescricional que podem ocorrer quando a condenação em primeira instância não impõe a pena máxima. Mesmo assim, causa preocupação a morosidade em analisar os casos criminais. Enquanto os procuradores costumam formular seus pareceres em menos de uma semana em 70% dos casos, apenas 46% dos processos criminais são julgados pelos desembargadores em menos de um ano. Dado alarmante: ao menos 13% dos casos são decididos após quatro anos de espera.

“É indispensável criar turmas de desembargadores com dedicação exclusiva”, avalia Frischeisen. “O próprio presidente do TRF3, Newton De Lucca, admite ser necessário. Somente quando desafogarmos os magistrados da área criminal poderemos dizer se este ou aquele ‘sentou’ num processo, foi negligente e acabou deixando um crime prescrever. E aí, sim, cobrar uma atitude do Conselho Nacional de Justiça.”

Um emblemático caso de prescrição na Justiça Federal expõe os meandros de um sistema que favorece a impunidade de criminosos de “colarinho-branco”. Trata-se de um processo que resultou na condenação, em primeira instância, de 12 acusados de crimes de ordem tributária, fartamente documentados após fiscalizações da Receita e investigações conduzidas pela Polícia Federal. Em valores atualizados, o rombo causado nas contas do Fisco seria de 2,5 milhões de reais. Os réus foram condenados a sete anos de prisão. Quatro deles tiveram a pena acrescida em um ano por formação de quadrilha. Com o direito de apelar da sentença em liberdade, todos, sem exceção, acabaram beneficiados com a prescrição do crime por causa da demora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul) em avaliar o caso, apesar dos sucessivos alertas feitos por procuradores de que esse risco era iminente. A Corte dormiu sobre o caso e os condenados permanecem livres.

À frente da relatoria do processo esteve ninguém menos que a desembargadora Suzana Camargo, que acaba de deixar a corregedoria do tribunal federal e é candidata a assumir uma vaga no Superior Tribunal de Justiça. Dilma Rousseff deve anunciar a sua escolha em breve, e Camargo é considerada favorita para substituir o ministro Aldir Passarinho Junior, que se aposentou. Não apenas por ser mulher e pertencer ao tribunal mais movimentado da segunda instância federal, mas pela influência de seu cunhado, Ari Pargendler, presidente do STJ. Ambos os magistrados têm percorrido gabinetes de políticos em busca de apoio à candidatura, o que teria, inclusive, constrangido alguns ministros da Corte, segundo relatos na mídia.

O processo em questão diz respeito a um clássico caso de sonegação fiscal. Os acusados, na condição de sócios-gerentes da empresa Kavty do Brasil Indústria de Pisos de Computadores Ltda., teriam se utilizado de notas fiscais frias emitidas por duas empresas fantasmas com a finalidade de fraudar o Fisco, simulando despesas inexistentes. Entre 1992 e 1993, a empresa sonegou o pagamento de diversos tributos, como Imposto de Renda, Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Dessa forma, teriam sido suprimidos dos cofres públicos a quantia de 1.116.230,04 ufir, o equivalente a atuais 2,5 milhões de reais. Os crimes, agravados pela acusação de fraude documental, resultaram na condenação de sete anos de prisão, a serem cumpridos inicialmente em regime semiaberto. Mas na segunda instância a morosidade do Judiciário fez cair por terra a pretensão punitiva.

O recurso de apelação criminal foi distribuído ao tribunal em agosto de 1999, quatro meses após a sentença condenatória em primeira instância ter sido assinada pelo juiz Fausto de Sanctis. No início de 2000, a Procuradoria Regional da República emitiu seu parecer, pela manutenção da condenação. Passados quatro anos sem o julgamento do caso, a procuradora Geisa de Assis Rodrigues alertou pela primeira vez a desembargadora Suzana Camargo sobre o risco de prescrição. “Trata-se de crimes contra a ordem tributária, causadores de graves lesões aos cofres públicos, o que traduz a necessidade de um pronunciamento definitivo acerca das responsabilidades dos seus agentes”, anotou na petição, datada de abril de 2004.

Sem resposta por parte da magistrada, Geisa voltou a pedir urgência no julgamento em dezembro do mesmo ano: “Em virtude do grande lapso decorrido da publicação da sentença, ocorrida em 28 de abril de 1999, há risco da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva”. A procuradora voltaria, uma terceira vez, em fevereiro de 2006, a encaminhar uma petição à desembargadora: “Em 12 de abril de 2004 e em 9 de dezembro de 2004 foram protocolados pedidos de prioridade do julgamento da referida ação, contudo, desde aquela data não ocorreu o julgamento da ação, sendo que os autos encontram-se conclusos à relatora”.

Apesar dos três alertas, o caso continuou sem julgamento. Suzana deixaria a relatoria do processo em maio de 2007, quando se licenciou para tomar posse da vice-presidência do tribunal. “Infelizmente, essa demora é pratica recorrente na Corte. Não acredito que a doutora Suzana tenha feito isso para favorecer alguém. Os desembargadores são obrigados a avaliar uma avalanche de casos cíveis, além das matérias criminais, e acaba ocorrendo esse tipo de situação”, afirmou Geisa Rodrigues a CartaCapital. “Só que os processos criminais correm risco de prescrição. Essa é uma das razões de eu ter abandonado a atuação criminal e passado a outras áreas. Há uma série de problemas estruturais que favorece a impunidade”, desabafa.

Assim que Suzana Camargo tomou posse como vice-presidente da Corte, o desembargador Baptista Pereira assumiu a relatoria do processo. Após um novo alerta feito pela Procuradoria, ele avaliaria o caso em fevereiro de 2008. Registrou, “não sem incômodo”, que o prazo prescricional havia sido superado. Os acusados não poderiam mais ser punidos. CartaCapital solicitou entrevista com Suzana Camargo, mas a assessoria de imprensa do Tribunal Federal informou que a desembargadora está de férias.

Segundo a procuradora-chefe da 3ª Região, Luiza Cristina Frischeisen, o caso é, de fato, atípico. “Tudo que poderia dar errado deu. O cálculo de prescrição foi equivocado, houve troca de relatoria, o que costuma atrasar os processos, e a desembargadora não deu atenção aos pedidos de prioridade”, avalia, a partir da leitura da decisão de Baptista Pereira. “Mas não se iluda, esse é um problema crônico na segunda instância federal. Como não há turmas de desembargadores com dedicação exclusiva à área criminal, eles estão atolados com uma avalanche de processos cíveis. Os atrasos são recorrentes e a chance de um crime prescrever é considerável, sobretudo em casos financeiros e tributários, nos quais o prazo de prescrição é menor.”

Apenas no ano passado, 199 casos prescreveram no tribunal da 3ª Região, segundo um levantamento da Procuradoria. Em 2010, foram 229. Boa parte deles, alerta Frischeisen, vieram prescritos da primeira instância, graças a alterações no prazo prescricional que podem ocorrer quando a condenação em primeira instância não impõe a pena máxima. Mesmo assim, causa preocupação a morosidade em analisar os casos criminais. Enquanto os procuradores costumam formular seus pareceres em menos de uma semana em 70% dos casos, apenas 46% dos processos criminais são julgados pelos desembargadores em menos de um ano. Dado alarmante: ao menos 13% dos casos são decididos após quatro anos de espera.

“É indispensável criar turmas de desembargadores com dedicação exclusiva”, avalia Frischeisen. “O próprio presidente do TRF3, Newton De Lucca, admite ser necessário. Somente quando desafogarmos os magistrados da área criminal poderemos dizer se este ou aquele ‘sentou’ num processo, foi negligente e acabou deixando um crime prescrever. E aí, sim, cobrar uma atitude do Conselho Nacional de Justiça.”

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