Política

Gato por lebre

Déficit fiscal, dívida pública e o aprofundamento da instabilidade trazido por aquele que deu um golpe com o argumento de que superaria a crise

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A voracidade daquele que usurpou a Presidência da República no ataque às conquistas da classe trabalhadora, o grau de sofisma de seus apaniguados que afirmam a flexibilização de direitos como benéfica para a população, o fim da universalidade do Sistema Único de Saúde como alternativa para o aumento da qualidade do serviço e a redução dos programas sociais como medida de justiça social, têm causado perplexidade.

Os retrocessos são inúmeros, neste artigo, porém, focaremos em dois elementos: a narrativa do déficit fiscal e da dívida pública, e o aprofundamento da instabilidade trazido por aquele que deu um golpe com o argumento de que seria capaz de superar a crise.

O enfrentamento ao avanço do desemprego e da perda do poder de compra dos salários dos trabalhadores estão entre os principais desafios do País e só poderão ser superados com a retomada de investimentos que permitam que voltemos a crescer.

Assim questionamos: como fazer isso descapitalizando o BNDES e entregando a gestão dos Fundos de Pensão para o mercado financeiro (ambos responsáveis por boa parte dos financiamentos aos investimentos produtivos públicos e privados)? Cortando o aporte do Tesouro Nacional à Previdência Social, responsável direta pela injeção de recursos nas economias locais dos municípios brasileiros?

Precarizando o trabalho e os direitos dos trabalhadores? Entregando o pré-sal com a mudança de seu marco regulatório? Congelando investimentos em saúde e educação? A equação não fecha. Então, como justificar tais medidas e angariar apoio social para temas impopulares, reformas que mexem em direitos?

Simples: criando um ambiente de caos econômico, massificando este conceito na população e vendendo a ideia de “herança maldita”.

Tal estratégia foi inaugurada quando o ministro da Fazenda Henrique Meirelles, junto com o então Ministro do Planejamento, Romero Jucá, deu uma coletiva que anunciou, de forma artificial e inflada, um déficit orçamentário de 170,5 bilhões de reais. Explicitemos a fraude.

O déficit anunciado trata-se de uma previsão da diferença entre receitas e despesas para 2016, que, em tese, pode ou não se concretizar. O aditamento ao valor da proposta enviada ao Congresso pelo governo Dilma (96 bilhões de reais) demonstra que o objetivo deste governo não é o ajuste fiscal que defendem e utilizam como justificativa para cortes de investimentos.

A previsão aprovada superestima a queda de arrecadação, desconsidera as novas receitas em debate no Congresso, e mais, aponta a intenção de aumentar substancialmente as despesas.

Falam de um rombo como se este fosse um dado da Natureza, quando na verdade não é fruto do que passou, da tal herança, mas das ações vindouras.

O aumento do déficit, sem o estabelecimento claro das destinações de recursos é ação de má-fé. Combina a intenção de criminalizar o governo anterior com o objetivo de ter um cheque em branco para, por um lado, pagar a conta do impeachment e por outro financiar seus aliados nas eleições que se avizinham e que não contarão com financiamento empresarial.

Ofereço apenas alguns dados entre diversos que se poderia escolher: em janeiro de 2003, as Reservas Internacionais deixadas por FHC eram de apenas 37 bilhões de dólares, atualmente superam os 350 bilhões e são um “colchão forte” (expressão utilizada pela OCDE) para enfrentar qualquer crise.

Suficientes para cobrir entre sete e oito anos de déficit como este artificialmente projetado por Temer. Para além desta questão conjuntural, é preciso relativizar o significado da dívida pública por meio de uma análise comparativa.

Se no Brasil, na última década, a relação dívida/PIB ficou na média dos 57%, nos países da Zona do Euro, Reino Unido e Canadá a relação foi de cerca de 90%, nos EUA uma média de 100% e no Japão, 230%.

O governo golpista negligencia intencionalmente esses dados e constrói uma narrativa que visa dar espaço à lógica de que na economia há um caminho único, de que o povo, que na prática pagará esta conta, deve contentar-se em perder os anéis em prol da manutenção dos dedos.

De que melhor é submeter-se ao acordo coletivo ruim do que à demissão, à jornada exaustiva, do que à falta de comida no prato. Diremos não!

Denunciaremos que o terrorismo econômico que alimentou a crise agora está sendo instrumentalizado para possibilitar a retirada dos seus direitos, dos nossos direitos.

É evidente a gravidade da crise pela qual passa o Brasil, e que esta não é fruto exclusivo dos efeitos da desaceleração da economia internacional. Estamos cientes de que, se por um lado o Brasil não é uma ilha e, portanto, sofre os impactos de uma profunda crise do capitalismo mundial, por outro, erros foram cometidos, como a malfadada política de desoneração fiscal sem contrapartida.

Mas sabemos também que o terrorismo econômico está a serviço de objetivos escusos, e que a crise econômica é agravada pela crise política.

Desde o momento de sua ilegítima posse, Temer vem demonstrando ser incapaz de promover a estabilidade que tanto propagandeou. No sentido contrário, a inconstância já passa a ser marca deste governo.

O próprio desfecho do processo do impeachment no Senado cada vez mais se revela imprevisível em face da forte reação social contra o golpe, a deterioração da imagem internacional do País e o impacto público, e nos bastidores, da menção a integrantes do governo em áudios e delações premiadas que se multiplicam.

Diante desse quadro as respostas do Palácio têm sido vacilantes e insuficientes, trata-se da confirmação do que já dizíamos: um governo nascido da conspiração e sem votos não é, e nem será, capaz de colocar o Brasil no rumo do crescimento.

O País pode superar a multifacetada crise em que se encontra, mas não o fará por meio de falácias, retrocessos e ataques às conquistas históricas de nosso povo. A sociedade cada vez mais se soma ao grito de Fora Temer, não tardará para que outros setores, que apoiaram o golpe, percebam que pagaram por lebre e receberam gato.

 *Maria do Rosário é ex-ministra dos Direitos Humanos e deputada federal (PT-RS)

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