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Turquia: entenda a tentativa de golpe e suas repercussões

O desfecho inevitável da intervenção militar é um país menos democrático e mais instável

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Até a publicação deste texto, a situação na Turquia era incerta. Soldados e civis disputavam o controle de redações de jornais e canais de televisão em Istambul, enquanto caças e helicópteros bombardeavam prédios governamentais em Ancara, a capital do país, e tanques de guerra atacavam o Parlamento.

No Aeroporto Ataturk, também em Istambul, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan era recebido por uma multidão ao voltar do balneário de Marmaris, onde estava quando uma facção das Forças Armadas anunciou a derrubada do governo, na noite da sexta-feira 15. Relatos de mortos e feridos se acumulavam, mas a quantidade era impossível de atestar.

Certeza só há sobre o futuro imediato da Turquia, sem dúvida sombrio. A tentativa de golpe, que seria o quinto no país nos últimos 56 anos, chega em um momento no qual Erdogan atingia o ápice de uma guinada autoritária iniciada em 2013.

Por si só, esse processo já ameaçava o futuro democrático turco. Com o advento da tentativa de golpe, a situação tende a se agravar. 

Presidente da Turquia desde agosto de 2014, Erdogan foi também primeiro-ministro por 11 anos. Desde a primeira vitória eleitoral, em 2002, o Partido Justiça e Desenvolvimento, conhecido como AKP, é a força dominante na política turca. Em todos os pleitos realizados na última década, a sigla oscilou entre 40% e 50% das intenções de voto.

O grosso desse eleitorado é a massa conservadora turca, que por décadas foi subjugada por uma elite secular ligada aos militares. Sob Erdogan, esses religiosos praticantes puderam pela primeira vez na história do país prosperar e almejar poder político.

Originalmente ligado ao Islã político, ideologia segundo a qual a religião pode resolver todo e qualquer problema criado pela modernidade, Erdogan moderou suas posições e fez do AKP exemplo do que poderia ser a conciliação entre a democracia e o mundo muçulmano.

As coisas começaram a mudar em 2013. Entre maio e agosto daquele ano, Erdogan mostrou sua face autoritária, ao comandar a repressão contra manifestantes contrários a um polêmico projeto de desenvolvimento urbano centrado no Gezi Park, em Istambul.

Em dezembro do mesmo ano, seu governo foi abatido pela revelação de um enorme escândalo de corrupção, envolvendo ministros e a própria família de Erdogan. Dezenas de pessoas foram acusadas de se beneficiar de um esquema para burlar as sanções econômicas impostas ao Irã pelos Estados Unidos, por meio de trocas ilegais de ouro por petróleo.

A resposta de Erdogan foi brutal. O então premier turco iniciou um expurgo nas forças policiais, no Ministério Público e no Judiciário, de forma a remover autoridades que lideravam as investigações. Como justificativa, acusou muitas dessas figuras de serem integrantes do Hizmet, movimento social e religioso que, por mais de uma década, apoiou o AKP.

Liderado pelo imã muçulmano Fethullah Gulen, que desde 1999 vive em autoexílio nos Estados Unidos, o Hizmet (Serviço, em turco) dedica-se majoritariamente a obras educacionais, por meio das quais adquiriu influência significativa na sociedade turca, mas seus integrantes também atuam com destaque na mídia e no empresariado do país. Pouco transparente, o Hizmet foi acusado de montar um “Estado paralelo” e atuar para derrubar o governo.

A perseguição serviu para abafar as investigações de corrupção, mas também para ampliar o poder de Erdogan. Hoje, o Hizmet encontra-se praticamente desmontado em território turco, mas outros críticos do presidente, em diversos setores da sociedade, também estão acuados. A Turquia é o quarto país com mais jornalistas presos, e o Judiciário recentemente viu 3,7 mil juízes e promotores serem removidos de seus postos por meio de um único decreto presidencial.

A perseguição esgarçou o tecido social turco. Há um temor intenso de cidadãos comuns de serem presos unicamente por criticar o presidente. Dentro e fora do país, famílias estão desestruturadas por conta da crise política. Contribuem para esse cenário a retomada do conflito com separatistas curdos, promovida por Erdogan, e a intensificação da atuação da Turquia na Síria. Por causa desses dois eventos, o país tornou-se alvo de inúmeros atentados – apenas no último ano, foram oito grandes ataques, que deixaram ao menos 267 mortos e mais de mil feridos.

Na sexta-feira 15, Erdogan não esqueceu o Hizmet. Ele atribuiu o golpe ao movimento (que criticou a intervenção militar), embora seja pouco crível que as Forças Armadas, cuja autoimagem é centrada na defesa de um Estado laico, tenham qualquer simpatia pelos conservadores do Hizmet. No breve comunicado que fizeram horas após o início do golpe, militares disseram estar atuando para restaurar a democracia e criticaram o governo por “erodir a tradição secular da Turquia”.

No momento da publicação deste texto, o desfecho do putsch estava indefinido, mas muitos elementos indicavam que o movimento falharia. Por um lado, a Turquia se livraria de uma desoladora ditadura militar sem data para acabar, como a do Egito, mas, por outro, Erdogan sairá fortalecido e pronto a intensificar sua tentativa de criar um governo de um homem só, nos moldes do que Vladimir Putin faz na Rússia.

O momento-chave desta empreitada deve vir em breve. Erdogan trabalha para obter, seja por meio do Legislativo, seja por meio de um referendo, a troca do regime parlamentarista da Turquia por um presidencialista. Se conseguir esse feito, Erdogan assumirá ainda mais o controle do país, inclusive sobre as Forças Armadas, agora expurgadas dos golpistas da sexta-feira. Sem a sombra militar, que sempre pairou sobre suas ações, Erdogan não terá mais contrapesos a seu poder e estará livre para moldar a Turquia a seu próprio gosto.

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