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Símbolo da política de subsídios chavista, Bicentenário pede socorro

Criado em 2011, hipermercado fruto da expropriação da rede privada vinculada ao grupo Casino sofre com filas para pão e falta de carne

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Símbolo da frente do projeto chavista que proporcionou maior poder aquisitivo às classes baixas da Venezuela, o hipermercado Bicentenário pede socorro.

Se há pouco mais de quatro anos era um movimentado centro de compras, no qual os venezuelanos encontravam de eletrodomésticos a produtos alimentícios variados e artigos importados, hoje o complexo na Praça Venezuela, em Caracas, carece de itens básicos para o dia a dia da população, como farinha de milho e fraldas.

A situação do Bicentenário, supermercado que vendia de eletrodomésticos a carne subsidiadas, reflete o cenário de crise atual do país: longas filas espalhadas em diferentes regiões da capital por artigos básicos cuja produção é rareada e os preços controlados, e uma retórica agressiva do governo de Nicolás Maduro que culpa a “guerra econômica” pela escassez pela qual passa o país.

No andar térreo, 80 pessoas de pé e 20 sentadas (entre elas lactantes) esperam sua vez de pegar pão. A fila de 36 metros contrasta com a propaganda da Misión Alimentación (programa social do governo) que passa a ideia de abundância com fotos do ex-presidente Hugo Chávez em um supermercado bem abastecido e cifras entusiasmantes, como a criação de 2056 mercados subsidiados e 1,6 milhão de toneladas de alimentos distribuídos pela PDVAL (Produtora e Distribuidora Venezuelana de Alimentos), de 2008 a 2012.

No mesmo andar, a praça de alimentação tem metade das lojas fechadas. Dentre as abertas, uma sorveteria que hoje só consegue vender refrigerante por conta da falta de leite e açúcar, e lojas de brinquedos e roupas com preços não regulados, onde uma calça de lycra custa 4,4 mil bolívares e uma camiseta regata pode chegar a 7,5 mil bolívares.

Itens impensáveis para quem recebe o salário mínimo de 15 mil bolívares, hoje incrementado com tickets refeição que praticamente dobram o montante recebido mensalmente.

Depois de 1 hora de espera, cada pessoa consegue levar duas baguetes pequenas por cerca de 300 bolívares, depois de passar por uma área cercada e vigiada por funcionários do supermercado e bombeiros. Do lado de fora, um pão de forma, cujo preço não é controlados pelo governo chega a custar 1,3 mil bolívares.

Os itens que levam o chamado preço regulado são aqueles da cesta básica venezuelana, cujos preços são tabelados pelo governo. Congelados, eles não acompanham a inflação galopante e nem o custo de produção. Acabam se tornando cada vez mais raros. Quando surgem levam a filas e controle da distribuição por parte do Estado.

A zona onde o pão é distribuído é uma das três divisões existentes hoje em um dos maiores Bicentenários do país. Onde há o pão a preço regulado se vendem também outros itens hoje em falta e com preço controlado, como sabonete e shampoo.

A outra divisão onde seguranças controlam quem entra e sai é destinada a poucos artigos considerados hoje de luxo, como o rum produzido no país e vinhos chilenos, vendidos a partir de 5,2 mil bolívares.

O restante do hipermercado no segundo andar do complexo é de, supostamente, livre circulação. A reportagem, no entanto, foi abordada enquanto anotava preços de itens como lâmpadas de 6 watts (2.134 bolívares) e queijo cremoso telita (vendido a 900 bolívares na embalagem com cerca de 200 gramas). Uma das funcionárias argumentou que ali era para comprar e não para escrever preços.

A solução encontrada para a falta de alguns produtos foi, em muitas prateleiras, a substituição. Assim, na parte onde antes se vendiam fogões para beneficiários do Mi Casa Bien Equipada (programa de venda de eletrodomésticos a preços –preferenciais para a população mais pobre), aparelhos de DVD, telefones e computadores estão bicicletas infantis, bolas e carrinhos de rolimã. Na seção de peças para automóveis e na de móveis para a casa, minicarros de plásticos para as crianças.

Sob o olhar do banner que no alto ostenta “Línea de Mando – Bolivariana, Revolucionária y Chavista”, com as figuras do libertador Simón Bolívar, Chávez e Maduro, a maioria do que se vende hoje ali são produtos venezuelanos ou chineses, como panelas de alumínio.

Itens como o arroz, que outrora eram importados – operação mais barata do que a produção doméstica nos anos de boom petroleiro –, dão espaço para artigos como molho de tomate e panetone.

Em uma prateleira destinada a “margarinas”, exemplares de uma só manteiga produzida em Carabobo, interior da Venezuela. “Nunca vi essa marca antes, mas vou levar umas quatro. Não há quase por aí, é melhor garantir”, diz um cliente que não quis se identificar ao ser questionado sobre a qualidade do produto.

Apesar de o país produzir frutas e verduras que precisa para o consumo doméstico, a área de 30 metros quadrados destinada a esses itens foi reduzida pela metade no supermercado. Nas prateleiras de lácteos, um vazio retumbante. O mesmo para carne, frango, peixe e comida pronta, onde um painel com fotos de Chávez e Maduro desbota solitário.

Criada em 2011 após expropriação da rede Cativen C.A. (vinculada ao grupo francês Casino), a Red de Abastos Bicentenário S.A. manteve por cinco anos o slogan “Tu Precio Justo”, que nos últimos meses destoa da realidade em que o pacote de espaguete custa 1,6 mil bolívares, mais de um décimo do salário mínimo.

A Venezuela vive hoje uma das piores crises econômicas de sua história. Com a crescente dependência da renda petroleira – processo iniciado antes de Chávez chegar ao poder, em 1999 –, o país dono das maiores reservas da commodity no mundo, hoje importa 80% dos alimentos que consome.

A capacidade de importação, no entanto, foi fortemente golpeada pela queda do preço do barril de petróleo (de 115 dólares em 2014 para 43 dólares hoje), o que ajudou a compor uma equação complexa.

A situação crítica é ainda assombrada pela monstruosa inflação, este ano projetada para 500%, que corrói o valor da moeda local. Soma-se a isso uma dualidade da moeda local: enquanto no câmbio oficial 1 dólar vale 10 bolívares, no mercado paralelo a unidade da moeda americana pode chegar a 1.000 bolívares.

Antes de sair e passar pela revista de bolsas e sacolas pela segurança do Bicentenário, a reportagem foi solicitada para apagar todas as fotografias tiradas ali.

Questionada se eram jornalistas, a equipe disse que na verdade eram pesquisadores brasileiros que investigavam programas sociais do chavismo e perguntou por que não era permitido tirar fotos do hipermercado. “Com o que acontece agora no país, fica difícil saber para que será usada a imagem”, explicou uma gerente.

 

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