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Indignado Global

Stéphane Hessel, inspirador do movimento contra ditadura dos mercados, acredita em final feliz para a Primavera Árabe

Stéphane Hessel, inspirateur du mouvement de réaction à la dictature des marchés, croit à un heureux final pour le Printemps Arabe. Foto: Joel Saget/AFP
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Inspirados pelo opúsculo de Stéphane Hessel, milhões de jovens manifestam-se contra o sistema econômico, o conflito israelo-palestino e outros problemas a assolar o mundo. Indignez-vous! (Indigène, 32 págs., 3 euros), um “pequeno livro”, como o chama o próprio Hessel, serve de manifesto para indignados de Madri ao Magrebe. Publicada na França em 20 de outubro de 2010, data do 93° aniversário de Hessel, a obra já foi traduzida para mais de 35 línguas, inclusive para o português (Indignai-vos, Leya Brasil, 48 págs., R$ 9,90). Até setembro, o opúsculo que em francês tem 30 páginas tinha vendido mais de 2 milhões de exemplares na França, e mais de 1 milhão mundo afora .

“As circunstâncias foram fortuitas”, diz Stéphane Hessel. “Estava com um grupo de amigos resistentes e proclamávamos a necessidade de preservar os valores da resistência francesa. Queríamos fazer repercutir nossas ideias, e Sylvie Crossman, minha editora, interessou-se pelo tema e publicou o livro.”

Com sua fala tranquila na entrevista telefônica a CartaCapital, despretensioso e coberto de carisma (eu já havia participado de uma coletiva à imprensa com ele em Paris), Hessel tem credibilidade de sobra para ser uma voz dissonante nesses tempos neoliberais. Nascido em Berlim, em 20 de outubro de 1917, e naturalizado francês em 1937, exilou-se em Londres com o general Charles de Gaulle de 1941 a 1944, em oposição ao regime de Vichy. De volta à França para uma missão, foi deportado para Buchenwald, de onde conseguiu fugir de uma sentença de pena de morte graças à usurpação de sua identidade organizada pela resistência interna do campo de concentração alemão.

Sua sentença não havia sido ajudada, claro, pelo fato de seu pai, Franz HessseI, ser um judeu-alemão, mesmo se convertido ao luteranismo. Tratava-se de um escritor e poeta capaz de traduzir Proust para o alemão. De fato, Franz e sua mulher francesa, Helene Grund, foram fontes de inspiração do romance Jules e Jim (1953), de Henri-Pierre Roché. François Truffaut fez o filme em 1962. Franz é o amante alemão Jules. Henri-Pierre é Jim, o amante francês. Catherine, casada com Jules, é Grund.

Encarnada por Jeanne Moreau, Catherine reencontra Jim em Paris, e logo depois do armistício Jules vai à capital francesa com os dois filhos. Forma-se então o triângulo amoroso anticonforrmista que marcaria os anos 1960.

Hessel formou-se em filosofia em Paris, e casou-se com Vitia Mirkine-Guetzévitch, jovem judia de origem russa. Em 1948, participou da elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Quando François Mitterrand se tornou presidente, em 1981, Hessel foi elevado ao posto de embaixador da França.

Antes disso, o diplomata Hessel havia servido em Saigon, Argel, Nova York e Genebra. Em junho do ano passado, após o ataque de Israel contra a flotilha de ajuda à Gaza, Hessel pediu boicote aos produtos israelenses. Em seguida, esteve com Ismael Haniyeh, líder do Hamas, legenda política armada que não reconhece o Estado de Israel.

Além de Indignez-vous!, Hessel escreveu Engagez-vous! (com Gilles Vanderpooten, Éditions de l’Aube, 2011, 112 págs., 7 euros) e Le Chemin de l’Ésperance (com Edgar Morin, Fayard, 2011, 64 págs., 6 euros). Um quarto livro, este uma nova biografia intitulada Tous Comptes Faits… ou Presque (Maren SeIl, 200 págs., 18 euros), acaba de ser publicado. “Eu já disse o que tinha de dizer”, finaliza Hessel do alto dos seus 94 anos. Mas o militante político tem mais o que dizer abaixo:

CartaCapital: Consta que o senhor ficou surpreso com o sucesso de seus três recentes livros, e em particular com o primeiro, Indignai-vos!

Stéphane Hessel: Fiquei surpreso porque escrevi o livro pensando na França e nos seus problemas. E da noite para o dia havia mais de 35 traduções desse pequeno texto de 30 páginas. Movimentos de indignados vieram à tona em diversos países, alguns inspirados pelo meu livro, outros não. Mesmo assim, existe um elo comum entre os movimentos: uma crescente mobilização de cidadania em reação aos problemas de nossa sociedade internacional.

CC: Existe, portanto, diferenças entre os movimentos de indignados da Espanha, Grécia e Nova York…

SH: Enormes diferenças. Ao mesmo tempo, há algo em comum. Isso é interessante. As diferenças decorrem do fato de que em cada país a situação – e por tabela os obstáculos – são diferentes. No Brasil, por exemplo, reina uma bela democracia, o País teve um maravilhoso chefe de Estado na pessoa de Lula (escassos meses atrás, em discurso na universidade de Colúmbia, Nova York, Hessel sugeriu Lula como o novo chefe das Nações Unidas, como reportado no site desta revista). E agora o Brasil tem uma boa presidenta, Dilma Rousseff. Portanto, o caso do Brasil é diferente do da Espanha. Da mesma forma, a Grécia tem outros entraves que a Tunísia ou o Egito.

CC: De fato, o senhor leva em conta essas diferenças entre cada país em Indignaivos!. O senhor escreveu: “Encontre um motivo de indignação”. No Brasil, fala-se muito em corrupção, fenômeno que ocorre, em diferentes níveis, em todos os países. Mas no Brasil existe um movimento estimulado por uma mídia conservadora que foca na corrupção do atual governo de esquerda – e essa mídia conservadora jamais alvejou a corrupção dos anteriores governos neoliberais. Além disso, no Brasil, há problemas sérios que são pifiamente abordados por essa mídia conservadora, como as desigualdades sociais, a reforma agrária…

SH: Há casos nos quais os cidadãos são desmobilizados, ou desencorajados. Esses cidadãos ignoram a situação na qual se encontram. Seria bom acordá-Ios. É importante dizer a eles: “Olhem à sua volta e vejam como há outras coisas inaceitáveis”. Se funcionar, os cidadãos não têm apenas de se indignar, mas também de se engajar para que seus objetivos sejam alcançados.

CC: O senhor diz que é preciso mudar de sistema econômico. Qual seria o sistema ideal?

SH: Precisamos de menos oligarquias e de mais vantagens democráticas para cidadãos mundo afora. Vivemos num sistema internacional no qual uma pequena elite segura os cordões do saco de dinheiro. Essa elite decide o que é preciso fazer. Decide nosso futuro. Enquanto isso, o povo, que deve ser consultado, não tem direito a participar das decisões. Em alguns países, participa, mas muito pouco. Dito de outra forma, a participação do povo é insuficiente.

CC: O senhor é favorável à adesão da Palestina à ONU…

SH: Sim, mas sou favorável à adesão de todos os países, porque todos os povos têm direito a um Estado. E apoio com todas as minhas forças a adesão de todos os países à Organização das Nações Unidas. A ONU, na verdade, tem de acolher todas as nações democráticas.

CC: Como o senhor reage às críticas de Israel em decorrência de sua defesa à existência de um Estado Palestino?

SH: Creio que tenho maior consideração por Israel e pelo seu futuro do que aqueles a me criticar. Acho que o futuro de Israel será solidamente garantido somente se ao lado daquele Estado exista outro, da Palestina. O Estado Palestino terá de ser soberano e dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas. Somente assim poderá reinar a paz entre as duas nações.

CC: O fato de o senhor ter sido deportado para um campo de concentração lhe dá maior autoridade para criticar a política israelense?

SH: Não, não. Nada me confere autoridade maior ou menor que os outros para criticar a política israelense. Minha ligação e engajamento no Oriente Médio decorrem também do seguinte fato: estou contente com a existência do Estado de Israel porque vivenciei o trágico massacre dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Estou feliz pela existência do Estado de Israel. Israel comporta-se como Estado legitimo, e obedece as regras das Nações Unidas e do Conselho de Segurança. Portanto, sou amigo de Israel. Sou, isso sim, adversário do atual governo israelense, porque viola os direitos internacionais.

CC: Qual o futuro da Primavera Árabe?

Leia também: Bolsonaro vai culpar Dilma Rousseff pela próxima recessão. Até quando?

SH: É preciso que o Islã, que é uma bela e grande religião, habitue-se a viver em países onde a religião não se confunda com a política. Atualmente, esse é o caso da Turquia e do Marrocos. Espero que o mesmo aconteça na Tunísia e no Egito. E também espero que a situação melhore na Síria, quando Bashar al-Assad compreender que tem de deixar aquele país.

CC: Não o inquieta o fato de os partidos islâmicos terem se saído vitoriosos em eleições no mundo árabe?

SH: Esta é a questão crucial. Legendas islâmicas venceram em pleitos na Tunísia, Marrocos, e Egito. Eles são muçulmanos, e respeito a religião deles como qualquer outra. Ademais, eles não são forçosamente islamitas, no sentido extremista do termo. Creio que viverão em paz e harmonia como acontece em países laicos, como na França, país com população em sua maior parte católica, como a do Brasil. Os países muçulmanos também podem evitar extremismos religiosos.

CC: Acredita que a Irmandade Muçulmana no Egito seja moderada, como diz, e aceitará regras democráticas?

SH: Sim, já fizeram progressos nesse sentido. Certamente ainda terão de progredir, porque terão de fazer alianças para governar o Egito. Resta ver, nesses meados de dezembro, como reagirá o exército egípcio à vitória da Irmandade Muçulmana. Perigosos são os salafitas. São extremistas. Mas o Partido Socialista também tem seu lugar no tablado político egípcio.

CC: Como vê Barack Obama no cenário mundial, e particularmente sua política no Oriente Médio para a criação de um Estado Palestino?

SH: Confesso que estou muito decepcionado. Quando o presidente Obama foi eleito tínhamos certeza de que ele tinha a capacidade de superar o problema e também lidar com as relações entre os Estados Unidos e o Islã. O discurso por ele pronunciado em 2010 no Cairo foi bonito. Em vários momentos falou sobre a importância de um Estado Palestino. Mas até agora não conseguiu resistir à forte propaganda do primeiro-ministro israelense (Benjamin) Netanyahu, e também dos judeus-americanos a apoiar Israel. Mesmo assim, espero que seja reeleito e que ganhe coragem para encontrar soluções àquilo que me parece o entrave mais importante: a relação de confiança entre as grandes culturas mundiais. É preciso que as culturas chinesa, indiana, sul-americana e islâmica estejam em harmonia.

CC: O senhor sempre foi um resistente, mas sempre foi contra a violência.

SH: O termo “resistência” significa não aceitar algo ao seu redor e engajar-se para eliminar esse entrave. Foi o caso da Segunda Guerra Mundial com o governo de Vichy. Era preciso manifestar-se contra aquele regime. Hoje, é preciso protestar contra tudo o que é contrário aos valores fundamentais da democracia. Não através da violência, mas com convicção e de maneira determinante.

CC: Charles de Gaulle deu exemplo de resistência…

SH: De Gaulle foi um verdadeiro resistente. Para ele, o armistício assinado por Pétain com a Alemanha nazista era inadmissível para a França, país independente e orgulhoso. Ele prestou enorme serviço ao seu país, porque se não estivesse presente no momento oportuno para brandir a bandeira da França ao lado dos Aliados e contra o fascismo e o nazismo, este país teria ficado desamparado. As consequências, por tabela, teriam sido trágicas. Ele salvou o país.

CC: Como era sua relação com De Gaulle?

SH: Ele teve a gentileza de me convidar para almoçar com ele e sua mulher algumas semanas após minha chegada em Londres. Encontrei um homem extremamente cortês, muito inteligente, que falava um francês admirável. Encontrei um homem fiel aos valores fundamentais da República Francesa. Ele não era um homem de direita, era um honrável democrata. E a prova está no fato de que quando perdeu um referendo, em 1969, De Gaulle deixou o poder. Portanto, respeito a atitude democrática de De Gaullle. Ele tinha, porém, posições ideológicas que não compartilho.

CC: Acha que os indignados são movidos também devido à escassez de líderes políticos capazes de tomar decisões?

SH: Creio que não devemos exagerar nessa busca de mulheres e homens políticos que seriam perfeitamente respeitados por todo mundo. Há, como sempre, as exceções. Lula, por exemplo, colocou o Brasil na ribalta. Isso é motivo para alegria. Mas a média das personagens políticas não é pior hoje do que em outros tempos. Dito isso, na Europa faltam personalidades mais carismáticas para conduzir o Velho Continente para realizações necessárias. Mas logo aparecerão novos líderes carismáticos.

CC: Acredita que o fim do euro poderia significar o fim da União Europeia?

SH: A Europa está numa situação muito difícil. Não conseguiu realizar sua unificação como poderia e deveria. Aqui ainda não existe uma verdadeira unidade política. É um momento ainda mais difícil porque as forças a dominar o Velho Continente são aquelas do mercado financeiro. Assim, os financistas impedem os dirigentes europeus de implementar programas para unir a Europa politicamente e economicamente. Mas estou convencido que isso acontecerá.

CC: O senhor não estaria sendo demasiadamente otimista?

SH: Não sou otimista no curto prazo. Mas sou otimista no longo prazo. Isso se deve à minha longa viagem. Vivi mais de 93 anos. Vivi momentos que pareciam insolúveis, como o stalinismo, que foi finalmente resolvido. Portanto, tenho confiança de que os cidadãos do mundo atual serão capazes de se comunicar entre eles para encontrar soluções para nossos problemas atuais.

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