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Habemus nada

Pânico do papa de Nanni Moretti ao ser eleito é o melhor retrato da crise de lideranças em um mundo de incerteza e desconfianças

Filme de Nanni Moretti mostra um papa vacilante
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Há uma crise mundial fincando estacas mundo afora, e ela não é só econômica. A sensação é de desorientação, ainda que não faltem livros, ensaios em jornais ou entrevistas na tevê com especialistas dando explicações para tudo – dos malfeitos do subprime aos desastres naturais.

Nessa produção em escala industrial, uma coisa é certa: qualquer texto ou discurso sobre algo pretensamente sério vai esbarrar, em algum momento, na expressão “crise de confiança”. Passamos semanas esperando a aprovação de pacotes para um país periférico com potencial de arrastar o mundo para um buraco negro; e, quando a grana é liberada, tem sempre alguém dizendo que os mercados, os alemães e a população em geral ainda seguem sob desconfiança. Nunca se pagou tão caro por um pouco de crédito.

A pane de ideias é tão grande que a solução é repetir experiências malsucedidas de uma História recente. Hoje, o receituário colocado na goela de enforcados na Europa é o mesmo que desmoralizou economias e populações inteiras na América Latina nos não tão distantes anos 1990…(leia mais no instigante artigo do economista João Sicsú clicando ).

 

A coisa ficou tão complicada que, na hora que o bicho pega, não tem ninguém que pegue a bola, no fundo da rede, caminhe até o centro do campo e diga: “agora é comigo”.

Pelo contrário. Basta a coisa se complicar para que os líderes (dentro e fora de campo) desapareçam: governantes não têm coragem de bolar ideias novas, nem de chamar a responsabilidade por desastres anunciados; nas empresas as decisões são sempre terceirizadas até a culpa recair sobre o boy do café; nas escolas, os professores são orientados a não dar um passo além do que será cobrado no vestibular; em casa, as crianças já não aguentam mais dividir o boné e o playstation com os pais em plena síndrome de Peter Pan.

Mas nenhum episódio recente foi mais simbólico da turbulência dos tempos atuais do que o capitão que afundou o navio Costa Concórdia, na Itália, abandonou os passageiros à própria sorte para salvar a própria pele e se escondeu como um rato ao ser mandado de volta à embarcação (mais ). O mundo está povoado de Schettinos – e, pelas contas do diretor italiano Nanni Moretti, nem o Vaticano está salvo.

No magistral “Habemus Papam”, Moretti captou com precisão o momento de dispersão e amedrontamento que as crises de confiança e representatividade propiciam – em tempos recentes, talvez só Lars Von Trier, com seu “O Grande Chefe”, tenha chegado tão longe.

Para encarnar esses conflitos, ninguém melhor do que o papa, a única autoridade da Terra a quem foram entregues as chaves do Céu e a missão de fazer o meio-campo entre as nossas misérias e o mundo superior (e ainda dizer como, com quem, e em quais condições temos de viver em nossos vales de lágrimas terrenos).

O peso da chave do Céu é o peso do mundo – e se há quem renunciou a ser poeta de um mundo caduco, imagine o drama de Sua Santidade. O papa de Nanni Moretti, interpretado por Michel Piccoli, é a cara da confusão de um tempo disforme, contraditório, inexplicável.

No filme, ao ser escolhido pelo conclave (a reunião de cardeais sisudos e compenetrados), o novo papa entra em pânico. Vai até a janela e vê uma multidão devota, carente, com bandeiras, lágrimas e pelos ouriçados diante do milagre manifesto: a fumaça branca indicando que, a partir dali, não eram mais cordeiros desgarrados e órfãos, mas sim um povo bem encaminhado e instruído por um pastor e seu dom superior.

A esperança depositada nas mãos de um guia ungido tem um culpado. Conta a Bíblia que Salomão, ao se tornar rei de Israel, não pediu a Deus “riquezas nem bens nem honra nem a morte dos que odiava nem muitos dias de vida”. Pediu sabedoria. Desde então, todo mundo quer ter um rei Salomão quando crescer. (Em tempos de Bibi Netanyahu e outros líderes europeus seria ouro em pó). Mas, em “Habemus Papam”, não há sabedoria nem Deus que baixe na Terra que faça o papa se acalmar – nem o psicanalista, interpretado pelo próprio Moretti, convocado para cavar os traumas da primeira infância da Sua Santidade e localizar os motivos para tanto pânico. O resultado é um ateu, armado da ciência e da racionalidade, tentando encorajar um representante divino com ferramentas limitadas e cuidados para não cavar tão fundo as questões sobre dramas e sexualidade do Santo Padre. É um contra-senso: se o papa confessar algum desejo escondido pela mãe é o fim da Santa Sé.

De toda forma, a eficácia do tratamento coloca em xeque a capacidade de a ciência secular encontrar respostas para além de fórmulas aparentemente simplistas. O papa tem depressão ou déficit de atenção? Onde começa a alma e onde acaba o inconsciente?

O famoso debate entre o então cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo Jürgen Habermas, em janeiro de 2004, não levaria a discussão tão a fundo – nem o padre Sebastián Urrutia Lacroix, o narrador que ensinou marxismo ao general Augusto Pinochet em Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, correria tantos riscos.

Numa das sequências mais curiosas do filme, os cardeais, despidos da divindade, são flagrados em seus quartos, antes de dormir, com manias mundanas – um deles, em vez de rezar, enche a cara de remédio para conseguir pegar no sono.

De perto, ninguém parece normal, parece dizer Moretti. Nem capaz de mover montanhas com a própria fé. A desorientação é tão grande que até mesmo um especialista, chamado à televisão para destrinchar os significados da ausência do papa, acaba entrando em pânico e confessando: nem ele sabe mais o que dizer…

O papa foi escolhido, mas não mostrou o rosto para os fieis. É como se o sol deixasse de raiar pela manhã.

Enquanto seu líder não vem, do lado de fora do Vaticano a multidão segue pia e à espera de um sinal divino, um aceno que seja de Sua Santidade para poder tocar a vida em paz. Nem imaginam que o papa recém-eleito está longe de seus aposentos – e suas dúvidas e conflitos estão mais expostos do que se requer de uma líder espiritual, de quem se espera apenas coragem e confiança. Não importa: o papa que todos esperam não é real, mas a fé sobre ele, sim – e é nele que as pessoas querem acreditar. Porque o mito, como definiu Fernando Pessoa, é o nada que é tudo.

Hoje não tem rei Salomão e os responsáveis por dirigir os vagões da humanidade estão com a cabeça debaixo da terra como avestruz. É que os tempos são outros, de decisões negociadas, protestos sem lideranças formais, discussões interativas e horizontalizadas, descrença nas instituições e na política – muito de tudo graças às novas formas de relacionamento nascidas com a internet. O resultado é uma somatória de vetores apontados para todos os lados que, na melhor das hipóteses, não levam a lugar algum. Na pior, estamos diante de um vácuo de lideranças, propício para o surgimento de soluções mirabolantes e autoritárias ostentadas por grandes líderes de grandes nações. E estes fariam bem se permanecessem enterrados no século 20.

Há uma crise mundial fincando estacas mundo afora, e ela não é só econômica. A sensação é de desorientação, ainda que não faltem livros, ensaios em jornais ou entrevistas na tevê com especialistas dando explicações para tudo – dos malfeitos do subprime aos desastres naturais.

Nessa produção em escala industrial, uma coisa é certa: qualquer texto ou discurso sobre algo pretensamente sério vai esbarrar, em algum momento, na expressão “crise de confiança”. Passamos semanas esperando a aprovação de pacotes para um país periférico com potencial de arrastar o mundo para um buraco negro; e, quando a grana é liberada, tem sempre alguém dizendo que os mercados, os alemães e a população em geral ainda seguem sob desconfiança. Nunca se pagou tão caro por um pouco de crédito.

A pane de ideias é tão grande que a solução é repetir experiências malsucedidas de uma História recente. Hoje, o receituário colocado na goela de enforcados na Europa é o mesmo que desmoralizou economias e populações inteiras na América Latina nos não tão distantes anos 1990…(leia mais no instigante artigo do economista João Sicsú clicando ).

 

A coisa ficou tão complicada que, na hora que o bicho pega, não tem ninguém que pegue a bola, no fundo da rede, caminhe até o centro do campo e diga: “agora é comigo”.

Pelo contrário. Basta a coisa se complicar para que os líderes (dentro e fora de campo) desapareçam: governantes não têm coragem de bolar ideias novas, nem de chamar a responsabilidade por desastres anunciados; nas empresas as decisões são sempre terceirizadas até a culpa recair sobre o boy do café; nas escolas, os professores são orientados a não dar um passo além do que será cobrado no vestibular; em casa, as crianças já não aguentam mais dividir o boné e o playstation com os pais em plena síndrome de Peter Pan.

Mas nenhum episódio recente foi mais simbólico da turbulência dos tempos atuais do que o capitão que afundou o navio Costa Concórdia, na Itália, abandonou os passageiros à própria sorte para salvar a própria pele e se escondeu como um rato ao ser mandado de volta à embarcação (mais ). O mundo está povoado de Schettinos – e, pelas contas do diretor italiano Nanni Moretti, nem o Vaticano está salvo.

No magistral “Habemus Papam”, Moretti captou com precisão o momento de dispersão e amedrontamento que as crises de confiança e representatividade propiciam – em tempos recentes, talvez só Lars Von Trier, com seu “O Grande Chefe”, tenha chegado tão longe.

Para encarnar esses conflitos, ninguém melhor do que o papa, a única autoridade da Terra a quem foram entregues as chaves do Céu e a missão de fazer o meio-campo entre as nossas misérias e o mundo superior (e ainda dizer como, com quem, e em quais condições temos de viver em nossos vales de lágrimas terrenos).

O peso da chave do Céu é o peso do mundo – e se há quem renunciou a ser poeta de um mundo caduco, imagine o drama de Sua Santidade. O papa de Nanni Moretti, interpretado por Michel Piccoli, é a cara da confusão de um tempo disforme, contraditório, inexplicável.

No filme, ao ser escolhido pelo conclave (a reunião de cardeais sisudos e compenetrados), o novo papa entra em pânico. Vai até a janela e vê uma multidão devota, carente, com bandeiras, lágrimas e pelos ouriçados diante do milagre manifesto: a fumaça branca indicando que, a partir dali, não eram mais cordeiros desgarrados e órfãos, mas sim um povo bem encaminhado e instruído por um pastor e seu dom superior.

A esperança depositada nas mãos de um guia ungido tem um culpado. Conta a Bíblia que Salomão, ao se tornar rei de Israel, não pediu a Deus “riquezas nem bens nem honra nem a morte dos que odiava nem muitos dias de vida”. Pediu sabedoria. Desde então, todo mundo quer ter um rei Salomão quando crescer. (Em tempos de Bibi Netanyahu e outros líderes europeus seria ouro em pó). Mas, em “Habemus Papam”, não há sabedoria nem Deus que baixe na Terra que faça o papa se acalmar – nem o psicanalista, interpretado pelo próprio Moretti, convocado para cavar os traumas da primeira infância da Sua Santidade e localizar os motivos para tanto pânico. O resultado é um ateu, armado da ciência e da racionalidade, tentando encorajar um representante divino com ferramentas limitadas e cuidados para não cavar tão fundo as questões sobre dramas e sexualidade do Santo Padre. É um contra-senso: se o papa confessar algum desejo escondido pela mãe é o fim da Santa Sé.

De toda forma, a eficácia do tratamento coloca em xeque a capacidade de a ciência secular encontrar respostas para além de fórmulas aparentemente simplistas. O papa tem depressão ou déficit de atenção? Onde começa a alma e onde acaba o inconsciente?

O famoso debate entre o então cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo Jürgen Habermas, em janeiro de 2004, não levaria a discussão tão a fundo – nem o padre Sebastián Urrutia Lacroix, o narrador que ensinou marxismo ao general Augusto Pinochet em Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, correria tantos riscos.

Numa das sequências mais curiosas do filme, os cardeais, despidos da divindade, são flagrados em seus quartos, antes de dormir, com manias mundanas – um deles, em vez de rezar, enche a cara de remédio para conseguir pegar no sono.

De perto, ninguém parece normal, parece dizer Moretti. Nem capaz de mover montanhas com a própria fé. A desorientação é tão grande que até mesmo um especialista, chamado à televisão para destrinchar os significados da ausência do papa, acaba entrando em pânico e confessando: nem ele sabe mais o que dizer…

O papa foi escolhido, mas não mostrou o rosto para os fieis. É como se o sol deixasse de raiar pela manhã.

Enquanto seu líder não vem, do lado de fora do Vaticano a multidão segue pia e à espera de um sinal divino, um aceno que seja de Sua Santidade para poder tocar a vida em paz. Nem imaginam que o papa recém-eleito está longe de seus aposentos – e suas dúvidas e conflitos estão mais expostos do que se requer de uma líder espiritual, de quem se espera apenas coragem e confiança. Não importa: o papa que todos esperam não é real, mas a fé sobre ele, sim – e é nele que as pessoas querem acreditar. Porque o mito, como definiu Fernando Pessoa, é o nada que é tudo.

Hoje não tem rei Salomão e os responsáveis por dirigir os vagões da humanidade estão com a cabeça debaixo da terra como avestruz. É que os tempos são outros, de decisões negociadas, protestos sem lideranças formais, discussões interativas e horizontalizadas, descrença nas instituições e na política – muito de tudo graças às novas formas de relacionamento nascidas com a internet. O resultado é uma somatória de vetores apontados para todos os lados que, na melhor das hipóteses, não levam a lugar algum. Na pior, estamos diante de um vácuo de lideranças, propício para o surgimento de soluções mirabolantes e autoritárias ostentadas por grandes líderes de grandes nações. E estes fariam bem se permanecessem enterrados no século 20.

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