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A Primavera Árabe vai promover os direitos das mulheres?

Jornalista egípcia-americana deixou em polvorosa mulheres no Oriente Médio com artigo sobre a difícil vida que elas levam. Apesar das várias verdades, há muitas simplificações

A capa da Foreign Policy e o ensaio interno, que trazia uma mulher nua com uma pintura preta que simulava um niqab, também causou polêmica
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Um artigo publicado pela jornalista egípcia-americana Mona Eltahawy na edição de maio/junho da revista Foreign Policy deixou em polvorosa mulheres no Oriente Médio e também em países ocidentais nesta semana. No texto, intitulado “Por que eles nos odeiam?”, Mona atribui a situação da mulher no Oriente Médio a uma “guerra” dos homens contra as mulheres, motivada pelo “ódio” e por uma “tóxica mistura entre religião e cultura”. Segundo ela, as mulheres precisam realizar sua revolução particular em meio à Primavera Árabe e este processo só estará completo quando os ditadores nas “mentes e nos quartos” da mulher árabe forem também derrubados. Entre ofensas pessoais virulentas à autora e respostas ponderadas, o artigo levantou uma questão importante: o embrião de democracia produzido pela Primavera Árabe fará florescer no Oriente Médio os direitos das mulheres?

Em seu artigo, Mona tenta comprovar a misoginia no mundo árabe com uma série de exemplos de violações cometidas contra as mulheres. Ela cita, por exemplo, a proibição de as mulheres dirigirem na Arábia Saudita. Debate leis de países coniventes com violência doméstica contra as mulheres em “casos especiais”, e lembra que o assédio sexual é uma prática endêmica na região. Mona cita outras violações ainda mais atrozes, como a mutilação genital, proibida, mas ainda muito comum no Egito; os “testes de virgindade”, também realizados no Egito; as permissões de casamentos entre homens adultos e meninas de 10 ou 11 anos no Iêmen e na Arábia Saudita; ou de casamentos entre vítimas de estupros e seus algozes. Todos esses fatos, sem dúvida terríveis, servem para provar como é lastimável a situação de muitas mulheres no Oriente Médio, mas eles não conseguem sustentar os outros argumentos de Mona.

Os erros da autora são as generalizações. A primeira delas é considerar a existência de uma entidade monolítica chamada “mulher árabe”. Os países da região possuem suas próprias peculiaridades e, com as populações, não é diferente. Nos países do Golfo Pérsico há muitas mulheres altamente educadas e com vidas dignas, enquanto milhões de outras em países mais pobres vivem na miséria. Ambas sofrem discriminações, mas de formas e intensidades bem diferentes. Não necessariamente a milionária saudita proibida de dirigir em Riad se preocupa com a egípcia mendigando nas ruas do Cairo. Seus dramas são diferentes. A mutilação genital, por exemplo, é mais frequente no Egito pois é uma prática altamente difundida na África. No Golfo Pérsico, os números desta prática, talvez a mais extrema forma de discriminação de gênero, são muito menores.

A segunda generalização de Mona é a respeito dos homens árabes. Muitas das violações contra as mulheres citadas pela autora são patrocinadas pelos governos da região. Os mesmos governos ditatoriais cujas forças de segurança exploram, torturam e abusam sexualmente de milhões de homens. Se há homens odiando as mulheres, há também quem as proteja e se indigne com os suplícios aos quais elas são submetidas. No Egito, durante os protestos contra Mubarak, grupos de homens protegiam mulheres manifestantes. Ao generalizar, Mona reforça os estereótipos difundidos no Ocidente: o homem árabe é um bárbaro e a mulher árabe é uma coitada.

O maior erro de Mona é atribuir a situação inferior das mulheres à cultura árabe e à religião muçulmana. Mais uma vez, é uma aproximação da autora com preconceitos ocidentais. Talvez justamente por isso seu artigo tenha sido mais elogiado nos Estados Unidos e na Europa, enquanto muitas críticas foram escritas por mulheres árabes. Ao fazer tal generalização, Mona ignora como o mundo árabe chegou a sua condição atual. Como lembra o jornalista Max Fisher na revista The Atlantic, os povos árabes foram, por séculos, dominados por otomanos, franceses e britânicos. Todos esses colonizadores deram a minorias locais, em troca de apoio, o direito de submeter as mulheres a suas vontades. Assim, fizeram ascender ao poder os setores mais sexistas da sociedade. Da mesma forma, o Islã foi interpretado de forma patriarcal. Isso fez surgir a versão fundamentalista da religião que ganhou espaço nas últimas décadas aproveitando o vácuo institucional criado pelo fracasso dos estados árabes.

Tudo isso não é para minimizar o drama das mulheres no Oriente Médio. Como afirmou recentemente a escritora barenita Amal al-Malki, nos primeiros meses da Primavera Árabe a participação das mulheres nas manifestações democráticas foi “romantizada”, mas hoje elas perderam a voz novamente. Este cenário só vai mudar conforme o processo de democratização se consolidar no Oriente Médio. Por um simples motivo: a história da democratização do mundo é a história da equiparação dos direitos das mulheres aos dos homens. Esta batalha nunca foi, e não será, simples ou rápida. Ela será feita de avanços, retrocessos e obstáculos. Neste ponto, o exemplo do Brasil é esclarecedor. Em 2010, o Brasil elegeu sua primeira mulher presidente da República, mas entre 2003 e 2011 viu aumentar a diferença salarial entre homens e mulheres. Mesmo as grandes vitórias para as mulheres não se dão de forma tranquila. A aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, e a autorização do aborto de fetos anencéfalos, neste ano, foram acompanhadas de uma onda de críticas de conservadores, muitos deles religiosos, os mesmos setores que, no Oriente Médio, tentam impedir o avanço dos direitos das mulheres. Obstáculos também criam algumas mulheres. Nas eleições legislativas do Egito, milhões de egípcias, votando pela primeira vez de forma livre, escolheram candidatos salafitas, os defensores da versão mais radical do Islã. No Brasil, a ex-apresentadora Mara Maravilha deu recentemente uma entrevista na qual defende a “submissão” das mulheres.

No Egito, no Brasil, na Europa ou no Japão, a histeria e a criação de uma guerra de gêneros contribui pouco para equiparar mulheres e homens. A única maneira de fazer isso de forma duradoura, em qualquer país do mundo, é institucionalizar os direitos das mulheres e colocá-los sob a proteção de estados democráticos, longe dos ataques de quem pretende fazer a sociedade, qualquer sociedade, retroceder.

Um artigo publicado pela jornalista egípcia-americana Mona Eltahawy na edição de maio/junho da revista Foreign Policy deixou em polvorosa mulheres no Oriente Médio e também em países ocidentais nesta semana. No texto, intitulado “Por que eles nos odeiam?”, Mona atribui a situação da mulher no Oriente Médio a uma “guerra” dos homens contra as mulheres, motivada pelo “ódio” e por uma “tóxica mistura entre religião e cultura”. Segundo ela, as mulheres precisam realizar sua revolução particular em meio à Primavera Árabe e este processo só estará completo quando os ditadores nas “mentes e nos quartos” da mulher árabe forem também derrubados. Entre ofensas pessoais virulentas à autora e respostas ponderadas, o artigo levantou uma questão importante: o embrião de democracia produzido pela Primavera Árabe fará florescer no Oriente Médio os direitos das mulheres?

Em seu artigo, Mona tenta comprovar a misoginia no mundo árabe com uma série de exemplos de violações cometidas contra as mulheres. Ela cita, por exemplo, a proibição de as mulheres dirigirem na Arábia Saudita. Debate leis de países coniventes com violência doméstica contra as mulheres em “casos especiais”, e lembra que o assédio sexual é uma prática endêmica na região. Mona cita outras violações ainda mais atrozes, como a mutilação genital, proibida, mas ainda muito comum no Egito; os “testes de virgindade”, também realizados no Egito; as permissões de casamentos entre homens adultos e meninas de 10 ou 11 anos no Iêmen e na Arábia Saudita; ou de casamentos entre vítimas de estupros e seus algozes. Todos esses fatos, sem dúvida terríveis, servem para provar como é lastimável a situação de muitas mulheres no Oriente Médio, mas eles não conseguem sustentar os outros argumentos de Mona.

Os erros da autora são as generalizações. A primeira delas é considerar a existência de uma entidade monolítica chamada “mulher árabe”. Os países da região possuem suas próprias peculiaridades e, com as populações, não é diferente. Nos países do Golfo Pérsico há muitas mulheres altamente educadas e com vidas dignas, enquanto milhões de outras em países mais pobres vivem na miséria. Ambas sofrem discriminações, mas de formas e intensidades bem diferentes. Não necessariamente a milionária saudita proibida de dirigir em Riad se preocupa com a egípcia mendigando nas ruas do Cairo. Seus dramas são diferentes. A mutilação genital, por exemplo, é mais frequente no Egito pois é uma prática altamente difundida na África. No Golfo Pérsico, os números desta prática, talvez a mais extrema forma de discriminação de gênero, são muito menores.

A segunda generalização de Mona é a respeito dos homens árabes. Muitas das violações contra as mulheres citadas pela autora são patrocinadas pelos governos da região. Os mesmos governos ditatoriais cujas forças de segurança exploram, torturam e abusam sexualmente de milhões de homens. Se há homens odiando as mulheres, há também quem as proteja e se indigne com os suplícios aos quais elas são submetidas. No Egito, durante os protestos contra Mubarak, grupos de homens protegiam mulheres manifestantes. Ao generalizar, Mona reforça os estereótipos difundidos no Ocidente: o homem árabe é um bárbaro e a mulher árabe é uma coitada.

O maior erro de Mona é atribuir a situação inferior das mulheres à cultura árabe e à religião muçulmana. Mais uma vez, é uma aproximação da autora com preconceitos ocidentais. Talvez justamente por isso seu artigo tenha sido mais elogiado nos Estados Unidos e na Europa, enquanto muitas críticas foram escritas por mulheres árabes. Ao fazer tal generalização, Mona ignora como o mundo árabe chegou a sua condição atual. Como lembra o jornalista Max Fisher na revista The Atlantic, os povos árabes foram, por séculos, dominados por otomanos, franceses e britânicos. Todos esses colonizadores deram a minorias locais, em troca de apoio, o direito de submeter as mulheres a suas vontades. Assim, fizeram ascender ao poder os setores mais sexistas da sociedade. Da mesma forma, o Islã foi interpretado de forma patriarcal. Isso fez surgir a versão fundamentalista da religião que ganhou espaço nas últimas décadas aproveitando o vácuo institucional criado pelo fracasso dos estados árabes.

Tudo isso não é para minimizar o drama das mulheres no Oriente Médio. Como afirmou recentemente a escritora barenita Amal al-Malki, nos primeiros meses da Primavera Árabe a participação das mulheres nas manifestações democráticas foi “romantizada”, mas hoje elas perderam a voz novamente. Este cenário só vai mudar conforme o processo de democratização se consolidar no Oriente Médio. Por um simples motivo: a história da democratização do mundo é a história da equiparação dos direitos das mulheres aos dos homens. Esta batalha nunca foi, e não será, simples ou rápida. Ela será feita de avanços, retrocessos e obstáculos. Neste ponto, o exemplo do Brasil é esclarecedor. Em 2010, o Brasil elegeu sua primeira mulher presidente da República, mas entre 2003 e 2011 viu aumentar a diferença salarial entre homens e mulheres. Mesmo as grandes vitórias para as mulheres não se dão de forma tranquila. A aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, e a autorização do aborto de fetos anencéfalos, neste ano, foram acompanhadas de uma onda de críticas de conservadores, muitos deles religiosos, os mesmos setores que, no Oriente Médio, tentam impedir o avanço dos direitos das mulheres. Obstáculos também criam algumas mulheres. Nas eleições legislativas do Egito, milhões de egípcias, votando pela primeira vez de forma livre, escolheram candidatos salafitas, os defensores da versão mais radical do Islã. No Brasil, a ex-apresentadora Mara Maravilha deu recentemente uma entrevista na qual defende a “submissão” das mulheres.

No Egito, no Brasil, na Europa ou no Japão, a histeria e a criação de uma guerra de gêneros contribui pouco para equiparar mulheres e homens. A única maneira de fazer isso de forma duradoura, em qualquer país do mundo, é institucionalizar os direitos das mulheres e colocá-los sob a proteção de estados democráticos, longe dos ataques de quem pretende fazer a sociedade, qualquer sociedade, retroceder.

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