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A guetoização de Jerusalém

Milhares de árabes israelenses vivem no campo de refugiados de Shufat devido aos altos preços de imóveis

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De Jerusalém

Segunda-feira 21, checkpoint de Shufat, campo de refugiados 5 quilômetros ao norte do centro de Jerusalém. Os três militares olham com desdém o passaporte e a carteira de imprensa deste repórter emitida pelo centro de imprensa israelense que, pelo menos em tese, autoriza a passagem por checkpoints, inclusive os da Cisjordânia e de Gaza.

“É preciso dar a volta”, diz a militar com arrogância ao árabe israelense Basim, este ao volante do automóvel.

Ele fecha a janela e dá meia-volta para a entrada do checkpoint, onde recuperamos os documentos de outro soldado, ele também com cara de poucos amigos.

Teremos, anuncia Basim, de dirigir 20 minutos rumo ao sul de Shufat e sair pela Cisjordânia. Em miúdos, esse residente do campo de refugiados pode entrar e sair dessa verdadeira prisão onde vivem 70 mil almas. No entanto, com um estrangeiro, fica difícil sair. Donde o passeio forçado.

“Mas o que eu posso fazer?”, indaga Basim, de 54 anos e funcionário de uma pequena loja de celulares ao lado da Cidade Antiga de Jerusalém. “Os soldados me conhecem, e, portanto, não posso confrontá-los.”

Todos os finais de tarde, jovens de Shufat vão até o checkpoint e jogam pedras nos soldados. Os confrontos sempre deixam feridos.

“Você tem de escolher a hora certa para entrar e sair de Shufat.”

Basim emenda: “Pelo menos agora você verá a pior parte deste inferno em que vivemos”.

E põe inferno nisso.

Em um muro lê-se: “Odiamos Israel”. De contêineres de lixo por todas as partes saltam gatos. Móveis abandonados nas ruelas de barro dificultam a passagem de pedestres e automóveis, o que explica o trânsito e a sinfonia de buzinas. Casas decadentes lembram aquelas das favelas brasileiras.

Mesmo assim, Basim saúda, sorriso nos lábios, várias pessoas.

Na verdade, Shufat é um campo econômico de refugiados. As milhares de pessoas que aqui residem não têm meios para viver no centro de Jerusalém. Se até a classe média israelense manifestou contra os altos preços de imóveis, o elevado custo de vida e salários baixos – imagine a situação financeira de Basim. Para se ter uma ideia, sob o governo do primeiro-ministro conservador Benjamin Netanyahu, os preços de imóveis subiram 40%.

Shufat, situada em Jerusalém, passou a ser a única opção para árabes israelenses cujos salários são inferiores aos dos judeus. Mas a situação se tornou ainda menos digna para os residentes árabes quando, dois anos atrás, o governo de Netanyahu ergueu muros devidamente controlados pelos soldados armados até os dentes do checkpoint.

O gueto Shufat é conveniente para a política de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Leste de Netanyahu. Em 2009, é verdade, Netanyahu assinou um documento no qual se comprometia a negociar a criação de dois Estados, um Israelense, o outro Palestino.

Mas ele chegou a acreditar nessa fórmula?

“Netanyahu nunca foi favorável à solução de ‘dois Estados’”, rebate Gal Levy, professor de Ciências Políticas da Open University, em Tel-Aviv. “Seu objetivo é sempre postergar decisões e não fazer nada a respeito.”

De fato, assentamentos têm sido erguidos em uma zona batizada de E1, entre Jerusalém e Maale Adumin, na Cisjordânia. Essa zona representa um ponto de passagem crucial entre o norte e o sul da Cisjordânia em direção a Jerusalém Leste. O objetivo de Netanyahu é límpido: colocar um fim na criação de um Estado palestino em área contígua. Nesse contexto, Jerusalém jamais será a capital da Palestina.

O quadro para os 1.5 milhão de cristãos e muçulmanos palestinos com cidadania israelense piorou quando, no final de novembro, a Palestina foi reconhecida como Estado observador pela Organização das Nações Unidas. Tratou-se de um passo crucial para a sonhada, ao menos do lado palestino, solução dos “dois Estados” baseados nas fronteiras de 1967 e com capital em Jerusalém.

Após a decisão da ONU, o premier israelense revidou ao anunciar a construção de 3 mil novas casas na Cisjordânia e em Jerusalém Leste, ou seja nos territórios ocupados da Palestina.

A estratégia pareceu funcionar às vésperas de eleições legislativas na terça-feira 22. Essa busca pelo voto extremista se deve, em grande parte, aos reacionários a integrar agremiação de Netanyahu, Likud-Beitenu. Um deles sugeriu uma soma de 500 mil dólares para famílias palestinas dispostas a emigrar da Cisjordânia.

E, é claro, a guinada para a extrema-direita de Netanyahu também se deve ao sucesso nas pesquisas de intenções de voto de Naftali Bennett, líder da Casa Judaica, outra legenda da direita religiosa israelense. Bennett, que poderá fazer parte da coalizão de Netanyahu, quer anexar 60% da Cisjordânia a Israel.

“É a cultura do ódio”, resumiu Basim enquanto rumávamos para a saída na Cisjordânia para voltar a Jerusalém.

Antes de sermos barrados no checkpoint, visitei o apartamento de Basim. Na parede principal jaz um quadro no qual vemos a Cidade Antiga de Jerusalém, onde nasceu Basim. “Meus pais ainda vivem lá, na casa onde nasci”, observa. “Eu amo Jerusalém.”

Basim tem seis filhos, entre 11 e 29. As três mais jovens ainda vivem no apartamento de 65 metros quadrados de Shufat, localizado na área nobre do campo de refugiados e considerado confortável para a área. No apartamento não falta eletricidade e nem água.

No entanto, Ale, a filha de 22 anos que acaba de se formar em Direito pela Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, tem vergonha de morar em um centro de refugiados. “Ela ganhou uma bolsa para fazer doutorado em Dubai, subiu na vida”, diz, orgulhoso, o pai. “Ela vai sair daqui. E tem razão.”

Na cozinha, Shwekar, a sorridente mulher de Basim, logo serve uma deliciosa sopa de lentilhas, babaganuche, húmus, pão sírio e azeitonas, água e café turco. As filhas de 11 e 16 anos observam. Todos se viram bem na língua inglesa.

Por que, indago, as meninas não usam véu como a mãe? “Elas preferem não usá-los, e eu acredito na livre escolha”, retruca Basim, que é muçulmano praticante.

Em quem ele vai votar nas legislativas?

Basim desaparece e volta com um passaporte da Jordânia. Quando nasceu, em 1959, Jerusalém fazia parte da Jordânia, e, portanto, ele não é cidadão israelense. Ele pode trabalhar em Israel porque tem documento israelense.

“Mas certamente eu não votaria no Netanyahu porque ele não quer saber de paz”, pondera Basim.

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