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O Brasil não vai cair na armadilha da polarização entre Estados Unidos e China, garante o ex-chanceler Celso Amorim

Atualização. A política externa incorporou novos temas, diz Amorim – Imagem: Casa de América
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Assessor especial da Presidência, o ex-chanceler­ ­Celso Amorim trocou, neste terceiro mandato, o Itamaraty por uma sala no Palácio do Planalto, mas manteve o papel de artífice da política externa do governo Lula. Apesar dos ruídos causados por certas declarações do presidente nestes nove meses, Amorim celebra a reinserção do Brasil no cenário internacional, rebate as críticas à suposta defasagem da agenda externa e reafirma o compromisso do ­País com a multipolaridade. “Queremos ser parceiros dos Estados Unidos e da China”, afirma na entrevista a seguir. Outros temas da conversa? G-20, BRICS, o acordo Mercosul-União Europeia e a transição sustentável da economia brasileira.

CartaCapital: Segundo os críticos, a diplomacia brasileira repete a mesma estratégia de 20 anos atrás, do primeiro mandato do presidente Lula, apesar de o mundo hoje ser outro. Como o senhor responde a essas análises?
Celso Amorim: Quem diz isso está totalmente enganado. Não é a mesma agenda. Um tema novo foi colocado no centro da política externa, a urgência climática. O presidente Lula elegeu o assunto mesmo antes da posse. Em novembro do ano passado, poucas semanas após ser eleito, ele participou da COP27, a conferência do clima das Nações Unidas realizada no Egito. Ali, Lula carregava a mensagem: o Brasil voltou ao debate internacional. Em agosto último, realizamos em Belém do Pará a cúpula dos países amazônicos. Pela primeira vez o encontro teve o propósito central e firme de unir esforços em prol da preservação da floresta. Houve outras ­cúpulas no passado, claro, mas a situação climática era uma das tantas questões, nunca a principal como desta vez. Nem de longe eu tinha visto algo nesse sentido. Não só. A reunião convocada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, para debater a reforma do sistema financeiro, da qual Lula foi um dos convidados, tratou de um assunto que não estava tão em voga duas décadas atrás. E há esta nova iniciativa que une o Brasil e os Estados Unidos, Lula e o presidente Joe Biden, no combate à precarização do trabalho. É algo muito importante, com a mesma dimensão, diria, do combate à fome do primeiro mandato, que possibilitou uma aliança com o então presidente francês Jacques Chirac.

CC: O que esperar de concreto da aliança entre Lula e Biden em defesa do trabalho?
CA: Em princípio, serve de motivação política para a própria Organização Internacional do Trabalho. Daqui em diante, imagino a formação de vários grupos com especialistas dos dois países para discutir, por exemplo, o impacto da Inteligência Artificial ou a discriminação de gênero e raça. Queríamos, tanto os EUA quanto o Brasil, aproveitar a Assembleia-Geral da ONU para dar maior repercussão à iniciativa.

Modelo ultrapassado. A reforma do Conselho de Segurança continua na pauta – Imagem: Loey Felipe/ONU

CC: O senhor ressaltou o peso do debate climático na política externa do terceiro mandato, mas, na abertura da Assembleia-Geral da ONU, o presidente Lula preferiu falar de desigualdade. Por quê?
CA: O presidente, de forma muito clara, afirmou que a desigualdade é transversal, como gosta de dizer a ministra Marina Silva, aos demais problemas. E precisa estar presente em todas as conversas, das finanças à segurança, das mudanças climáticas ao mundo do trabalho.

CC: O presidente do Paraguai, ­Santiago Peña, disse que, se o ­Mercosul não concluir as negociações com a União Europeia até dezembro, quando ele assume a presidência rotativa do bloco em substituição a Lula, o acordo de livre-comércio não sairá do papel. Há, de fato, esse prazo? É possível resolver as pendências no caso das exigências ambientais europeias e das compras governamentais?
CA: Não sei dizer se até dezembro as negociações estarão concluídas. O que o presidente Lula tem dito é que o acordo não pode mais ser tratado na esfera burocrática, cabe aos líderes políticos dos dois blocos decidirem se querem ou não. Para citar os críticos mencionados por você na primeira pergunta, o mundo mudou. A pandemia nos mostrou ser absolutamente fundamental para um país ter uma indústria farmacêutica desenvolvida. Para isso, é preciso manter o mecanismo de compras governamentais. Não há outras formas, as tarifas são muito baixas e serão mais baixas com a dinâmica dos acordos. Temos pela frente o compromisso da transição sustentável da economia e esta é uma oportunidade única para o Brasil se reindustrializar. A própria União Europeia aplica programas de apoio às indústrias locais, assim como os Estados Unidos. Os países desenvolvidos, além de políticas direcionadas, sempre se valeram dos gastos militares, que não estão sujeitos a limitações, para fazer política industrial. O Brasil não tem a mesma capacidade em proporção do PIB de investimentos nessa área. Não podemos querer ser os santinhos do livre-comércio quando os outros não praticam.

CC: Se o acordo com a União Europeia não for concluído, o Mercosul sobrevive? Qual o futuro do bloco?
CA: O Brasil quer o acordo com a União Europeia. Por muitos motivos, a começar pelo fato de ser bom para o Mercosul. Além disso, o tratado exerceria um peso no equilíbrio global. Não queremos o mundo da Guerra Fria, ou é Estados Unidos ou é China, ou mesmo uma Guerra Fria na área econômica. Desejamos um mundo multipolar e o acordo seria bom para alcançar esse objetivo. De qualquer maneira, o Mercosul continua a ser fundamental, para conversar com os EUA, com a China, com quem quiser. E é também fundamental para o Brasil. Lamento que em alguns casos não haja a percepção clara dessa importância.

Aliança. A união de Lula e Biden contra a precarização do trabalho é algo inovador – Imagem: Ricardo Stuckert/PR

CC: O problema do Mercosul resume-se à vontade dos integrantes de retomar a dinâmica do bloco ou existem questões estruturais mais profundas a ser resolvidas?
CA: A liderança do Brasil, pela presença e pelo tamanho do mercado, é fundamental. Quando um presidente brasileiro se mostra desinteressado, tenta destruir tudo, é péssimo para o Mercosul e acaba por se refletir na atitude dos demais integrantes. Lá atrás, o Uruguai era muito queixoso, como voltou a ser, porque dizia não ter benefícios com o bloco. O Uruguai tinha déficit comercial com o Brasil. Entre 2007 e 2009, fizemos um amplo programa de apoio e eles aumentaram as exportações para nós e passaram a ter superávit. Entendíamos que, no Mercosul, era preciso implantar uma espécie de ação afirmativa para as economias menores. Não são mecanismos automáticos, precisa olhar caso a caso. Antes da volta do presidente Lula, vivemos dois momentos. No período Temer, houve indiferença. No governo Bolsonaro, vigorou uma oposição aberta ao bloco. Queremos consolidar o Mercosul e um dos temas de grande interesse do governo, mas que depende do Congresso, é a inclusão da Bolívia, um país estratégico, ao mesmo tempo andino, amazônico e platino, com grandes reservas de lítio e disposto a ampliar a exploração do gás natural.

CC: Os meios de comunicação relataram nos últimos meses uma insatisfação de Washington, que foi fundamental no reconhecimento do resultado das eleições brasileiras, com a reaproximação com a China. Como o senhor definiria as atuais relações entre o Brasil e os Estados Unidos?
CA: Estão num ponto excelente. Vivemos uma nova fase no mundo, a do desenvolvimento da indústria verde, sustentável. Isso abre muitas oportunidades de investimento, de projetos conjuntos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, participou em Nova York, nos dias da Assembleia-Geral da ONU, de várias reuniões com investidores para apresentar as linhas gerais do programa de transição ecológica do País. Lula elogiou nas redes sociais a iniciativa de Biden de participar de uma manifestação de trabalhadores. Nunca tivemos um presidente norte-americano tão próximo das ideias trabalhistas. Reconhecemos a importância do apoio dos EUA ao resultado das eleições no Brasil. Agora, não queremos ser parceiros só de um. Somos parceiros dos Estados Unidos e somos parceiros da China. E da União Europeia e outros. Uma coisa não se contrapõe a outra. O presidente Lula esteve, a convite, na reunião do G-7 e na reunião dos BRICS. Temos sido muito procurados pelos interlocutores internacionais por sermos vistos como parceiros na busca de um mundo pacífico, sustentável e menos desigual.

Sobre as relações com os EUA: “Estão em um ponto excelente”

CC: Essa expansão dos BRICS interessa ao Brasil ou o grupo corre o risco de virar um apêndice da política externa chinesa?
CA: A ampliação é importante sobre vários aspectos. Permite um maior equilíbrio regional, vide o convite à Argentina. Além disso, alguns novos integrantes, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, têm grandes disponibilidades financeiras e são fundamentais, entre outros motivos, para a ideia de uma moeda comum. Para ter uma moeda comum é preciso ter lastro. E tudo em um ambiente pacífico, pois temos lado a lado a Arábia Saudita e o Irã, que até pouco tempo estavam diplomaticamente rompidos. O BRICS é fundamental para o equilíbrio mundial. No fundo, nos últimos anos, houve uma tentativa de voltar à geopolítica anterior à formação do BRICS e do G-20, de reconcentrar as decisões no G-7, que convidavam os países à la carte. A ampliação também provoca efeitos positivos no equilíbrio interno do grupo, pois o somatório dos novos integrantes atua como contrapeso.

CC: O senhor vê alguma solução de curto prazo para a guerra na Ucrânia?
CA: Enquanto um lado e outro acreditarem na vitória e na possibilidade de atingir todos os seus objetivos, não teremos paz. Infelizmente, é preciso chegar a um cansaço e, aparentemente, começam a surgir sinais desse cansaço. Qualquer proposta feita hoje seria bombardeada pela Rússia e pela Ucrânia, movidas pela ilusão de que podem ganhar. Embora seja uma agressão russa, e o Brasil condena a agressão, esta não é só uma questão entre Rússia e Ucrânia. É um embate entre Moscou e a Otan, aspecto crucial nesse contexto, pois é preciso levar em conta as preocupações de segurança de todos os envolvidos.

Impasse. Por ora, nem Rússia nem Ucrânia querem a paz – Imagem: Sergey Shestak/AFP

CC: Quais as prioridades da presidência rotatória do Brasil no G-20?
CA: São muitos pontos, não sei se é possível traçar um plano de metas. Em princípio, diria que o G-20 precisa voltar a ser o fórum dominante no debate econômico, com repercussões, obviamente, na parte política. É o espaço apropriado para conduzir os temas globais, não o G-7 ou o BRICS. O presidente Lula tem ressaltado o aspecto da governança global. E isso inclui a atualização da Organização Mundial do Comércio e a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Há um crescente reconhecimento da necessidade de mudança, o problema é que muitas vezes as propostas são paliativas.

CC: O mundo está mais complexo, até mais hostil, do que era nos dois primeiros mandatos de Lula?
CA: Mais complexo, certamente. Em relação ao Brasil, não vejo hostilidade. Temos sido mais procurados do que no passado. Antes, Lula era visto positivamente, mas havia um esforço para nos encaixar no que existia. Isso mudou. O presidente resumiu, de certa maneira, em relação ao clima, mas a frase se aplica a outras dimensões. Antigamente, o mundo falava sobre a Amazônia. Hoje, a Amazônia fala. •

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Diplomacia autônoma’

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