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O confisco do petróleo é resposta apropriada ao capitalismo desenfreado

A medida de Cristina Kirchner foi populista e desajeitada, mas perfeitamente compreensível

O governo de Cristina Kirchner não é, nem de longe, pioneiro nessa batalha contra a concentração e, muito especialmente, contra o Clarín. Foto: AFP
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Por Will Hutton

Suponha que o governo britânico soubesse que um importante acionista da Centrica, a última grande companhia energética da Grã-Bretanha e dona da British Gás, fosse vender sua participação para a Gazprom, assim tornando inevitável que a propriedade passasse ao Estado russo. Espero que nesse cenário o governo ampliasse o dispositivo da Lei de Empresas que permite que a Grã-Bretanha bloqueie aquisições que vão contra o interesse nacional para incluir o gás e a energia nuclear. (A lei atualmente se limita a defesa, serviços financeiros e mídia.) Tenho quase certeza de que o presidente da Centrica, sir Roger Carr, também presidente da CBI, compartilha essa opinião. Nenhum país pode ser indiferente à propriedade de bens estratégicos, e portanto ao uso que deles se possa fazer. Sua primeira obrigação é com o bem-estar de seus cidadãos.

O governo argentino enfrentou exatamente esse dilema na semana passada. A YPF é sua companhia nacional de petróleo e gás, que o país vendeu para a empresa espanhola de petróleo Repsol por US$ 15 bilhões em 1999, como parte de sua política de privatizações. Não foi um grande negócio para nenhum dos lados. A produção de petróleo e gás argentina decaiu, a exploração de novas reservas foi interrompida e esse país rico em petróleo hoje importa o produto, enquanto a Repsol é acusada de saquear a empresa e trair suas obrigações.

A desculpa da Repsol é que os controles de preços na Argentina são absurdamente duros. Ela quer vender sua participação há algum tempo, e em julho passado finalmente encontrou um potencial comprador: a companhia de petróleo estatal chinesa Sinopec. Na segunda-feira (16), temendo que o negócio estivesse para ser concluído, o governo argentino confiscou a parte do leão das ações da Repsol, para obter seu controle majoritário. É melhor que a YPF seja propriedade do governo argentino do que do Partido Comunista Chinês, é seu raciocínio.

Muitos governos teriam feito o mesmo. A propriedade importa. Mas a Argentina foi redondamente condenada — EUA, Espanha, México e até a Grã-Bretanha entraram no coro. A Economist esbraveja que a estripulia da presidente Kirchner não pode ficar sem punição; a nacionalização é um pecado além da redenção. A inferência é que a Repsol deveria ter liberdade para dispor de suas ações para qualquer comprador e ao melhor preço que pudesse alcançar. A Argentina e seus cidadãos não têm o direito de intervir.

Kirchner certamente foi arrogante e muito arbitrária. Ela apenas confiscou ações suficientes da Repsol para garantir 51% do controle e ainda precisa dizer quanto o Estado pagará de indenização; os outros acionistas são observadores infelizes, com seu investimento dilacerado. Existe mais que um sopro de populismo descarado em seus atos. Mas retratar a Repsol como um inocente ferido cujos direitos naturais foram injustamente infringidos é falsear a realidade econômica e política.

Durante muito tempo as empresas e os ricos de todo o mundo, incitados pelos republicanos americanos e os tories britânicos, exploraram desavergonhadamente a tese de que só existe um relacionamento adequado entre eles e a sociedade: eles fazem o que querem em seus próprios termos. E a sociedade deve aceitar isso porque é o único caminho para a “geração de riqueza”. O capital existe acima do Estado e da sociedade.

Os atos de Cristina Kirchner, embora desajeitados e parciais em sua execução, fazem parte de uma crescente reação mundial aos excessos que essa tese acarretou. A Repsol não tem e não tinha um direito atribuído por Deus de vender o controle da YPF para quem bem entendesse, enquanto os interesses da Argentina não importam. Ela existe em um relacionamento simbiótico com a sociedade em que atua. O direito ao comércio e à propriedade são privilégios que vêm com obrigações recíprocas, como a Comissão de Propriedade, que eu presidi, argumentou no início deste ano. Eles não podem existir no vácuo, porque os atos das companhias têm efeitos profundos.

Além disso, as empresas, especialmente as energéticas, precisam dos órgãos públicos para ajudar a mitigar o risco de realizar grandes investimentos em um mundo cujo futuro é uma incógnita. Em todo o globo, as empresas e os ricos insistem em negar essas verdades elementares. Agora eles estão sofrendo o redemoinho enquanto uma reação hostil ganha força em todo o mundo. Os autointitulados guardiães do capitalismo tornaram-se seus piores inimigos.

É a força motora por trás do Movimento Ocupem. É por isso que o candidato presidencial francês de esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, teve uma campanha eleitoral tão bem-sucedida. E é por isso que muitos governos estão coordenando sua investigação da Amazon, a companhia que paga impostos desprezíveis sobre seus lucros globais. É por isso que o presidente Obama adotou o imposto Buffet sobre milionários, uma parte popular de sua campanha à reeleição. É por isso que George Osborne sentiu que devia equilibrar sua redução de altos riscos na faixa superior do imposto de renda para 45% com uma apaixonada declaração de guerra aos ricos que fogem dos impostos.

A reação está muito atrasada e produz algumas correções há muito necessárias. Por exemplo, somente nas últimas duas semanas, Lloyd Blankfein do Goldman Sachs, Bob Diamond do Barclays e Vikram Pandit do Citibank enfrentaram acionistas irritados, respondendo ao novo clima, protestando contra a extravagância de seus bônus comparada com o desempenho insignificante de suas instituições. Eles estão sendo obrigados a aceitar menos. A proporcionalidade nos altos honorários começa a ser restaurada, embora ainda esteja muito fora de curso.

Mas o clima precisa ser canalizado. A Argentina pode ter prestado um serviço a todo o mundo ao lembrar forçosamente as empresas globais que há consequências desagradáveis por negligenciar as responsabilidades econômicas e sociais, mas a nacionalização sumária sem indenização dificilmente é um modelo sólido para o futuro. É um precursor do governo arbitrário no estilo chinês; um afastamento do capitalismo amigo para o estatismo amigo. Está na hora de reafirmar que embora o capitalismo possa ser um caminho comprovado para a prosperidade, só funciona em uma complexa interdependência com o Estado e a sociedade. Precisa haver regras em casa e no exterior para criar um mundo desejável de fronteiras abertas, livre comércio e livre funcionamento das empresas. Os impostos têm de ser pagos, e não sonegados. O pagamento tem de ser proporcional à contribuição. O líder trabalhista Ed Miliband foi universalmente criticado como um esquerdista inocente há apenas sete meses, quando diferenciou entre bom e mau capitalismo; hoje ele parece extraordinariamente previdente.

Se outros de seu partido — especialmente o gabinete paralelo — aderirem a sua causa, existe uma oportunidade política fenomenal. O clima está mudando. Precisa ser canalizado: a criação de um novo e diferente pacto com as empresas, as finanças e os ricos. É o que os eleitores de todo o mundo querem ver. A presidente Kirchner, à sua maneira canhestra, entrou no clima global.

Por Will Hutton

Suponha que o governo britânico soubesse que um importante acionista da Centrica, a última grande companhia energética da Grã-Bretanha e dona da British Gás, fosse vender sua participação para a Gazprom, assim tornando inevitável que a propriedade passasse ao Estado russo. Espero que nesse cenário o governo ampliasse o dispositivo da Lei de Empresas que permite que a Grã-Bretanha bloqueie aquisições que vão contra o interesse nacional para incluir o gás e a energia nuclear. (A lei atualmente se limita a defesa, serviços financeiros e mídia.) Tenho quase certeza de que o presidente da Centrica, sir Roger Carr, também presidente da CBI, compartilha essa opinião. Nenhum país pode ser indiferente à propriedade de bens estratégicos, e portanto ao uso que deles se possa fazer. Sua primeira obrigação é com o bem-estar de seus cidadãos.

O governo argentino enfrentou exatamente esse dilema na semana passada. A YPF é sua companhia nacional de petróleo e gás, que o país vendeu para a empresa espanhola de petróleo Repsol por US$ 15 bilhões em 1999, como parte de sua política de privatizações. Não foi um grande negócio para nenhum dos lados. A produção de petróleo e gás argentina decaiu, a exploração de novas reservas foi interrompida e esse país rico em petróleo hoje importa o produto, enquanto a Repsol é acusada de saquear a empresa e trair suas obrigações.

A desculpa da Repsol é que os controles de preços na Argentina são absurdamente duros. Ela quer vender sua participação há algum tempo, e em julho passado finalmente encontrou um potencial comprador: a companhia de petróleo estatal chinesa Sinopec. Na segunda-feira (16), temendo que o negócio estivesse para ser concluído, o governo argentino confiscou a parte do leão das ações da Repsol, para obter seu controle majoritário. É melhor que a YPF seja propriedade do governo argentino do que do Partido Comunista Chinês, é seu raciocínio.

Muitos governos teriam feito o mesmo. A propriedade importa. Mas a Argentina foi redondamente condenada — EUA, Espanha, México e até a Grã-Bretanha entraram no coro. A Economist esbraveja que a estripulia da presidente Kirchner não pode ficar sem punição; a nacionalização é um pecado além da redenção. A inferência é que a Repsol deveria ter liberdade para dispor de suas ações para qualquer comprador e ao melhor preço que pudesse alcançar. A Argentina e seus cidadãos não têm o direito de intervir.

Kirchner certamente foi arrogante e muito arbitrária. Ela apenas confiscou ações suficientes da Repsol para garantir 51% do controle e ainda precisa dizer quanto o Estado pagará de indenização; os outros acionistas são observadores infelizes, com seu investimento dilacerado. Existe mais que um sopro de populismo descarado em seus atos. Mas retratar a Repsol como um inocente ferido cujos direitos naturais foram injustamente infringidos é falsear a realidade econômica e política.

Durante muito tempo as empresas e os ricos de todo o mundo, incitados pelos republicanos americanos e os tories britânicos, exploraram desavergonhadamente a tese de que só existe um relacionamento adequado entre eles e a sociedade: eles fazem o que querem em seus próprios termos. E a sociedade deve aceitar isso porque é o único caminho para a “geração de riqueza”. O capital existe acima do Estado e da sociedade.

Os atos de Cristina Kirchner, embora desajeitados e parciais em sua execução, fazem parte de uma crescente reação mundial aos excessos que essa tese acarretou. A Repsol não tem e não tinha um direito atribuído por Deus de vender o controle da YPF para quem bem entendesse, enquanto os interesses da Argentina não importam. Ela existe em um relacionamento simbiótico com a sociedade em que atua. O direito ao comércio e à propriedade são privilégios que vêm com obrigações recíprocas, como a Comissão de Propriedade, que eu presidi, argumentou no início deste ano. Eles não podem existir no vácuo, porque os atos das companhias têm efeitos profundos.

Além disso, as empresas, especialmente as energéticas, precisam dos órgãos públicos para ajudar a mitigar o risco de realizar grandes investimentos em um mundo cujo futuro é uma incógnita. Em todo o globo, as empresas e os ricos insistem em negar essas verdades elementares. Agora eles estão sofrendo o redemoinho enquanto uma reação hostil ganha força em todo o mundo. Os autointitulados guardiães do capitalismo tornaram-se seus piores inimigos.

É a força motora por trás do Movimento Ocupem. É por isso que o candidato presidencial francês de esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, teve uma campanha eleitoral tão bem-sucedida. E é por isso que muitos governos estão coordenando sua investigação da Amazon, a companhia que paga impostos desprezíveis sobre seus lucros globais. É por isso que o presidente Obama adotou o imposto Buffet sobre milionários, uma parte popular de sua campanha à reeleição. É por isso que George Osborne sentiu que devia equilibrar sua redução de altos riscos na faixa superior do imposto de renda para 45% com uma apaixonada declaração de guerra aos ricos que fogem dos impostos.

A reação está muito atrasada e produz algumas correções há muito necessárias. Por exemplo, somente nas últimas duas semanas, Lloyd Blankfein do Goldman Sachs, Bob Diamond do Barclays e Vikram Pandit do Citibank enfrentaram acionistas irritados, respondendo ao novo clima, protestando contra a extravagância de seus bônus comparada com o desempenho insignificante de suas instituições. Eles estão sendo obrigados a aceitar menos. A proporcionalidade nos altos honorários começa a ser restaurada, embora ainda esteja muito fora de curso.

Mas o clima precisa ser canalizado. A Argentina pode ter prestado um serviço a todo o mundo ao lembrar forçosamente as empresas globais que há consequências desagradáveis por negligenciar as responsabilidades econômicas e sociais, mas a nacionalização sumária sem indenização dificilmente é um modelo sólido para o futuro. É um precursor do governo arbitrário no estilo chinês; um afastamento do capitalismo amigo para o estatismo amigo. Está na hora de reafirmar que embora o capitalismo possa ser um caminho comprovado para a prosperidade, só funciona em uma complexa interdependência com o Estado e a sociedade. Precisa haver regras em casa e no exterior para criar um mundo desejável de fronteiras abertas, livre comércio e livre funcionamento das empresas. Os impostos têm de ser pagos, e não sonegados. O pagamento tem de ser proporcional à contribuição. O líder trabalhista Ed Miliband foi universalmente criticado como um esquerdista inocente há apenas sete meses, quando diferenciou entre bom e mau capitalismo; hoje ele parece extraordinariamente previdente.

Se outros de seu partido — especialmente o gabinete paralelo — aderirem a sua causa, existe uma oportunidade política fenomenal. O clima está mudando. Precisa ser canalizado: a criação de um novo e diferente pacto com as empresas, as finanças e os ricos. É o que os eleitores de todo o mundo querem ver. A presidente Kirchner, à sua maneira canhestra, entrou no clima global.

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