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Jogo sujo

Derrotados em licitação, os Estados Unidos querem melar a produção dos caças suecos Gripen no Brasil

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Vantagem. Ao contrário dos concorrentes americanos e franceses, a Saab se dispôs a transferir tecnologia para o Brasil – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Divulgada na quinta-feira 10, a notícia de que a fabricante sueca de aeronaves ­Saab recebeu intimação do ­Departamento de Justiça dos EUA para prestar informações sobre a compra, pelo Brasil, de 36 caças militares Gripen, disparou os alarmes em Brasília quanto ao incômodo provocado em Washington pela retomada do protagonismo do País no cenário mundial. As informações solicitadas referem-se ao contrato de aquisição dos caças suecos fechado com o governo brasileiro em 2014 e à denúncia, na Operação Zelotes, de suposto tráfico de influência de Lula no negócio. O inquérito foi arquivado em 2022 por Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, atual ministro da Justiça, por inconsistência absoluta de provas e indícios abundantes de manipulação política por parte de procuradores, que chegaram a admitir, em diálogos, serem inaproveitáveis os elementos comprobatórios por eles apresentados.

Lula classificou a ação dos EUA como “interferência indevida” e o advogado-geral da União, Jorge Messias, repeliu os “interesses escusos” de Washington. Os interesses apontados por Messias são o inconformismo do governo norte-americano com a derrota da Boeing na concorrência para a aquisição dos caças e a tentativa de virar o jogo por meio do Departamento de Justiça, como se fez na operação Lava Jato, instrumento utilizado para fulminar o mundialmente competitivo setor nacional de empreiteiras e abalar a Petrobras, uma das grandes petroleiras globais.

A empresa americana inscreveu o caça Super Hornet na concorrência e a francesa Dassault, o avião Rafale. Em nenhum desses casos haveria transferência tecnológica, questão central do ponto de vista do governo, comprometido com o desenvolvimento e o aumento da autonomia do País. A Saab, ao contrário, concordou em compartilhar tecnologia e cooperar para o Brasil adquirir também autonomia operacional.

Mais uma vez, a lei anticorrupção de Washington é instrumentalizada para prejudicar concorrentes das empresas de lá

A ação dos EUA contra a concorrência de outros fabricantes no mercado brasileiro intensifica-se no momento em que o País retoma o crescimento econômico, a projeção externa e se prepara para receber, no próximo mês, Xi Jinping, encontro esperado para firmar parcerias que por certo baterão de frente com os interesses dos EUA no continente. O líder chinês deverá trazer na bagagem uma proposta de participação do Brasil na Nova Rota da Seda, o maior projeto de investimento em infraestrutura e logística do planeta, motivo de grande apreensão comercial e política em Washington.

A ação dos EUA “é mais um capítulo de lawfare geopolítico, é evidente”, dispara Rafael Valim, sócio da Warde Advogados e coautor do livro Lawfare: Uma Introdução (Editora ContraCorrente). “Mais uma vez, o Foreign Corrupt ­Practices Act é instrumentalizado para afetar concorrentes das empresas estadunidenses”, sublinha o advogado, referindo-se ao abuso daquele dispositivo na Operação Lava Jato, por meio de relação espúria entre funcionários estadunidenses e procuradores brasileiros. O FCPA é a lei anticorrupção dos EUA, que outorga a esse país jurisdição universal para investigar compras do Brasil e de outros países.

A interpelação extemporânea da Saab pelo Departamento de Justiça tem relação com interesses comerciais mais amplos ameaçados pela competitiva indústria aeronáutica brasileira. “A ação tem a ver com a insatisfação dos EUA diante do sucesso do avião cargueiro KC-390, da Embraer, que está tomando o lugar do ­Lockheed C-130 Hercules no mercado mundial. É uma jogada de mercado”, ressalta o advogado e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. De modo semelhante, a Lava Jato visou eliminar concorrentes como a Odebrecht, que vencia com facilidade concorrências para grandes obras no mercado estadunidense, como a expansão do aeroporto de Miami.

“O KC-390 brasileiro está ganhando concorrências internacionais, inclusive na Otan. A Turquia está interessada num grande lote, sem falar da Índia, que deseja comprar 40 unidades”. Ao contrário da Lockheed e da Boeing, “a Embraer dispõe-se a transferir tecnologia em troca de outras tecnologias de aviação”, diz Aragão. Foi nesse contexto de avanço do cargueiro KC-390 que os americanos acionaram a FCPA. “Para a Suécia, é intimidador, porque ela acabou de entrar na Otan e a pressão dos EUA é para valer.”

Competição. O sucesso do cargueiro KC-390 da Embraer e a contratação da Odebrecht para expandir o aeroporto de Miami foram mal digeridos pelos EUA – Imagem: Sgt. Muller Marin/FAB e iStockphoto

É pouco provável ressuscitarem a Zelotes e instalarem uma nova Lava Jato, acrescenta Aragão, porque a Procuradoria-Geral da República “está escaldada”. A cooperação internacional direta está quase paralisada. Tudo tem de ser feito através do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, do Ministério da Justiça. “Mas que os americanos vão tentar, isso é bem possível. Estão desconfortáveis com a posição do Brasil no conflito com China e Rússia. A notícia de que a Latam Brasil está para comprar aviões C919 chineses, em vez dos tradicionais A320, acendeu a luz amarela”, alerta Aragão. “A briga é grande.”

Descartar tanto os caças Super Hornet quanto os Rafale e optar pelos Gripen foi melhor para o Brasil, ressalta o economista Marcos José Barbieri Ferreira, coordenador do Laboratório de Estudos das Indústrias Aeroespaciais e de Defesa da Unicamp. “Tudo indicava que, do ponto de vista de transferência de tecnologia e de autonomia tecnológica, o Gripen era o melhor avião. Porque ainda estava em desenvolvimento, e as empresas brasileiras participantes entraram para atuar nesse processo”, diz Ferreira. A primeira empresa foi a Akaer, na fase de engenharia. Depois ingressou a Embraer, como integradora, e principal empresa. A terceira foi a AEL Sistemas, de Porto Alegre, subsidiária da Elbit Systems, de Israel.

A Força Aérea não quis depender dos sistemas produzidos pela Rockwell Collins dos EUA, optou pelos da Elbit Systems, israelense. A AEL desenvolve no Brasil uma parte importante da aviônica, dos sistemas da cabine. Depois começou-se a produzir peças e fez-se todo um sistema de codesenvolvimento formado pela Embraer e pela Saab. “O projeto do Gripen, de certa maneira, é também brasileiro. Entramos no final do jogo, mas é também uma aeronave verde-amarela. É a parte positiva”, avalia Ferreira.

O Rafale e o Super Hornet são robustos, mas de operação cara, por terem duas turbinas, enquanto o Gripen possui apenas uma. Em qualidade, os três correspondem às exigências. O plano inicial era adquirir três lotes com 36 aeronaves cada um, o suficiente para atender ao projeto estratégico de Defesa, que estabelece a necessidade de cerca de cem aeronaves. Com a recessão de 2015, seguida de longos anos de baixo crescimento, o desenvolvimento do projeto e a aquisição de unidades foram postergados por falta de recursos. Apenas oito aviões montados foram entregues até hoje, para substituição dos F-5M, de fabricação americana, que operam desde 1975. Dos 36 caças do primeiro lote, 21 vieram ou virão da Suécia e 15 serão fabricados aqui.

O projeto de produção de ­caças ­Gripen no Brasil é “um exemplo ­notável de cooperação internacional, ­transferência de tecnologia e desenvolvimento industrial”, ressalta o economista Paulo Gala, professor da FGV. A parceria firmada entre a Saab e a Embraer visa não apenas a produção dos caças, mas também “a criação de uma base industrial e tecnológica robusta no País”. De acordo com o contrato, 50% dos componentes e da produção dos caças Gripen devem ocorrer em solo brasileiro. A montagem final de grande parte das aeronaves é realizada nas instalações da Embraer em Gavião Peixoto, interior de São Paulo.

Para a Suécia, é intimidador porque ela acabou de entrar na Otan e a pressão dos EUA é para valer

O Brasil é o segundo país-alvo de ­lawfare geopolítico, segundo Arthur Pinheiro de Azevedo Banzatto, professor de Relações Internacionais da UFGD. “Há uma grande incidência de aplicação das normas do Foreign ­Corrupt ­Practices Act pelo Departamento de Justiça dos EUA direcionada contra países do Sul Global, sobretudo aqueles que compõem originalmente os BRICS. Nesse ranking, o Brasil é o segundo alvo, com 24 ações, ficando somente atrás da China, com 43 ações”, mostra o professor em alentada tese de doutorado intitulada “Hegemonia Estadunidense e o Combate à Corrupção no Brasil: O Caso da Operação Lava Jato”, defendida na UFSC.

Segundo dados da Universidade ­Stanford atualizados até 2023 e apurados por Banzatto, as sanções impostas na Lava Jato à Odebrecht e à Petrobras correspondem, respectivamente, à primeira e à quarta maior punição aplicada no âmbito da FCPA contra grupos empresariais ao longo da história. Entre aqueles que aparecem no ranking das dez maiores sanções, apenas o Goldman Sachs é estadunidense, os demais são todos estrangeiros. As multas aplicadas contra empresas brasileiras, como a Petrobras, de 1,78 bilhão de dólares, e a Odebrecht-Braskem, de 3,6 bilhões de dólares, ultrapassam desproporcionalmente o valor médio das multas, estimado na faixa de 150 milhões de dólares entre 2010 e 2021.

A intenção persecutória de integrantes do Ministério Público em relação a Lula é tão flagrante quanto seu intuito de favorecer o interesse dos EUA, aponta a decisão de Lewandowski pelo arquivamento da ação dos caças Gripen. “Os integrantes da Lava Jato sabiam que não havia qualquer ilegalidade em relação à situação analisada”, ressalta um trecho do documento. Fica evidente, em diálogos entre “inúmeros procuradores da força-tarefa, que a intenção da operação era a de construir novas acusações contra Lula, inclusive na perspectiva de atender ao ‘interesse americano’, ainda na expectativa de uma atuação formal daquele país com base no fato de uma empresa americana ter sido prejudicada na concorrência, referindo-se ao grupo norte-americano Boeing, que foi preterido na licitação a partir de análises técnicas, inclusive da Força Aérea Brasileira”. •

Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogo sujo’

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