Economia

Crise econômica: como chegamos aqui e como superá-la

A recuperação prometida pelo governo Temer não se confirmou. A recessão brasileira é mais profunda e as medidas adotadas até agora não são a solução

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A decepção do empresariado brasileiro e do governo Temer com a continuidade da crise e a não confirmação das expectativas de uma recuperação imediata sugerem que se discuta em maior profundidade a sua natureza e o caráter peculiar das medidas necessárias para superá-la.

De início, é forçoso assinalar: vivemos uma crise comandada pelos estoques e não uma convencional determinada pelos fluxos. Vale dizer, uma recessão originada nos balanços. Entre 2011 e 2014, o movimento predominante é o da deterioração dos fluxos, como resultado da desaceleração do crescimento. No biênio posterior, 2015/2016, a característica essencial é a dos choques simultâneos, promovido pela política macroeconômica, a crise política e a consequente degradação dos balanços.

Iniciemos pela exceção, o setor externo, para o qual o ciclo de liquidez em declínio, mas ainda favorável, a sólida posição do setor público como credor líquido, em razão do volume de reservas de cerca de 380 bilhões de dólares e o mecanismo de autocorreção nas transações correntes evitaram a mudança de natureza da crise.

O desequilíbrio de fluxo, expresso em um déficit em transações correntes da ordem de 4,5% do PIB, no início de 2015, foi progressivamente corrigido pela recessão, chegando ao final de 2016 à marca de 1% do PIB. A conta financeira deteriorou-se, embora tenha sido suficiente para financiar o déficit corrente em declínio e importantes movimentos negativos dentro dela.

No setor privado, em particular na indústria, uma grande parte das empresas vivencia hoje uma situação Ponzi. Mais da metade delas, 55%, de acordo com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, não gera recursos suficientes para servir a dívida.

Isto resultou de um longo processo. Entre 2011 e 2104, crescimento do fluxo de caixa se reduz e as dívidas aumentam, mas ainda a uma velocidade moderada. Por quê? Enquanto a desvalorização do real empurra estas últimas para cima, a redução da Selic e dos spreads contêm seu crescimento.

O quadro é diferente a partir de 2015. Do lado corrente, a recessão, a desvalorização cambial e o tarifaço deterioram o fluxo de caixa. Mas, apesar de sua intensidade, este não é o efeito principal. O choque de juros e a depreciação do câmbio jogam o custo da dívida para níveis elevadíssimos. Em um ano, 2015, a relação fluxo de caixa bruto/despesa financeira, cai pela metade e passa de 1,53 para 0,78, indicando a situação Ponzi.

A situação das famílias, de acordo com os dados da Confederação Nacional do Comércio, é grave.  A percentagem com algum tipo de dívida, flutua em torno de 60%, entre 2011 e 2014. Em paralelo, a inadimplência lato senso declina, reduzindo-se tanto o número de famílias com contas em atraso quanto aquelas em default.

Esse quadro muda radicalmente após 2015 com o choque de juros e o aumento dos spreads. A percentagem de famílias endividadas dá um salto brusco para 67% e passa a cair, indicando que aquelas que podem começam a se livrar das dívidas. Ao mesmo tempo, a inadimplência aumenta substancialmente tanto em relação aos atrasos, de 18% para 25% de todas as famílias endividadas, quanto para o default, que avança de 5% para 10% do total.

A situação do setor público é similar. Entre 2011 e 2014, o saldo primário desaparece. Um superávit de 3,2% do PIB em 2011 vira um pequeno déficit de 0,5% em 2014. A despeito disso, a dívida pública declina na maior parte do período, sob o impacto da desvalorização do real e da queda da taxa de juros.

Apenas em 2014, as dívidas bruta e líquida aumentam levemente em cerca de três pontos percentuais do PIB. O quadro é completamente distinto em 2015 e 2016, biênio no qual a dívida bruta aumenta em vinte pontos percentuais do PIB, e a líquida, em doze. A despeito do crescimento do déficit primário para o patamar de 2%, ele tem muito menos relevância na explicação do aumento da dívida movida sobretudo pela carga de juros e, em menor escala, pelo custo dos swaps cambiais.

A análise anterior indica a dupla natureza da crise atual: o declínio dos fluxos de renda e o aumento intenso do endividamento. Este último se comporta como uma espécie de buraco negro, impedindo o efeito multiplicador do gasto. Diante desse quadro, se a evolução do setor externo permitir, a reativação da economia dependerá de dois tipos de medidas: o refinanciamento das dívidas, uma condição necessária, somada à reativação do circuito do gasto-renda, condição suficiente. A despeito de o setor público estar em situação financeira delicada, as iniciativas devem partir dele, em razão de seu tamanho e maior grau de liberdade.

No plano financeiro é necessária uma ampla renegociação das dívidas. Sua condição essencial é uma redução da taxa básica de juros, a Selic, e dos spreads bancários. Quanto à primeira, não só a queda da inflação, mas a taxa interna superior à externa permite sua redução. Os bancos públicos, que não tem a imperiosidade de obtenção de lucratividade semelhante aos privados, poderiam tomar a iniciativa de reduzir os spreads e renegociar as dívidas. A criação de incentivos para o setor bancário privado aderir à renegociação também é crucial.

A queda da Selic reduz a carga de juros e a pressão sobre a dívida pública, abrindo espaço fiscal para o aumento temporário do déficit primário. Este deveria financiar gastos com elevado multiplicador, como políticas sociais direcionadas às camadas de baixa renda e a retomada de obras de infraestrutura paralisadas.

Por outro lado, seria importante incentivar o investimento do setor privado, mormente na infraestrutura por meio de condições especiais de financiamento. A constituição de um pool de recursos postos à disposição dos bancos poderia dar conta desta tarefa. Esses recursos podem ter origem em mudanças na composição dos ativos do setor público, com impacto nulo sobre as dívidas. A securitização da dívida tributária do setor privado e o uso de parte das reservas internacionais seriam os dois candidatos mais imediatos a gerar os recursos desse fundo.

 * Professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e ex-diretor pelo Brasil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de julho de 2012 a junho de 2016.

 

 

 

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