Cultura

Uma comédia romântica entre o drama e o humor

‘Esperando Acordada’ é o primeiro longa-metragem da diretora francesa Marie Belhomme

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Levar o riso ao espectador enquanto o faz navegar pela existência tem constituído o incomum no cinema. Rara é uma diretora como a francesa Marie Belhomme, que, em seu primeiro longa, protagonizado pela extraordinária Isabelle Carré, equilibra uma situação dramática (um homem sofre acidente ao se assustar com a presença da protagonista) e o humor em torno da inadequação.

Esperando Acordada navega pelo estranho da vida e o torna palpável gradualmente, enquanto encena os fatos humorísticos no hospital, no retiro, na escola de música, na casa do professor que a personagem central machucou sem querer. Belhomme gosta de escrever diálogos, mas evita a armadilha das palavras excessivas. “Tudo o que é dito em vez de mostrado se perde para o público”, ensinou-lhe Hitchcock.

Vê-se a Bretanha francesa no filme, e por vezes é como se cheirássemos o campo onde a atriz exerce tão bem a comédia física, herdada do cinema mudo. “Mais que uma primeira opção, Carré foi uma evidência”, diz a cineasta a CartaCapital sobre essa profissional a quem atribui grande intuição e inteligência.

“Eu lhe pedi para interpretar uma mulher sem confiança em si mesma, além disso, desajeitada. E um dia Carré chegou ao almoço com o rosto um pouco avermelhada porque tinha confundido seu desodorante com o vaporizador de água. Inconscientemente, ela já era minha Pérrine!” A seu lado, no filme, está Carmen Maura, a fazer aquele contraponto de naturalidade irônica que marcou os primeiros filmes de Pedro Almodóvar.

A cada temporada, multiplicam-se as mulheres a fazer comédia na França, como Valérie Donzelli, Justine Triet ou Julie Delpy. Para Belhomme, trata-se de um gênero que aprecia como espectadora, necessário à sua apreensão da vida. “Assistir a uma boa comédia pode curar por algum tempo minhas angústias existenciais. Meus melhores curativos são Chaplin, Keaton, Lubitsch, Billy Wilder, Frank Capra, Mario Monicelli, Dino Risi, Woody Allen, Jaoui-Bacri, Patrice Leconte e Pierre Salvadori.”

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

CartaCapital: Esperando Acordada (Les Chaises Musicales), seu primeiro longa-metragem, é uma comédia romântica. Por que dirigir uma comédia, para começar?

Marie Belhomme : Tenho um grande carinho pela comédia. É um gênero de que eu gosto como espectadora, do qual tenho verdadeira necessidade para apreender a vida. Assistir a uma boa comédia pode me curar por algum tempo de muitas angústias existenciais. Meus melhores curativos são Chaplin, Keaton, Lubitsch, Wilder, Capra, Monicelli, Risi, Woody Allen… e os franceses Jaoui-Bacri, Patrice Leconte, Pierre Salvadori.

Quando desenvolvo uma ideia, naturalmente me inclino para esse gênero. Ao contrário do drama, a comédia permite dar um “passo lateral”. É assim que tenho vontade de contar histórias – e é assim que gosto de viver: dando um passo para o lado, a fim de encontrar uma boa distância para rir ou sorrir daquilo que, potencialmente, poderia ser trágico.

CC : Seu filme é delicado, embora forte, e às vezes um pouco surreal. Você parece gostar da comédia física que Isabelle Carré é perfeitamente capaz de fazer. Essa avaliação é correta? Essa atriz foi sua primeira opção para o filme?

MB : Sim, é totalmente verdade. Mais que uma primeira opção, Isabelle Carré foi uma evidência. E eu não sabia antes de encontrá-la a que ponto ela era próxima da personagem. Quando lemos juntas o roteiro pela primeira vez, fiquei muito impressionada por sua intuição e sua grande inteligência.

Entretanto, eu lhe pedi para fazer uma mulher que não tem confiança em si mesma, e que, além disso, é muito desajeitada. Nisso também Isabelle se aproximava da personagem na vida real: um dia ela chegou ao almoço com o rosto um pouco avermelhado porque tinha confundido seu desodorante com o vaporizador de água… Inconscientemente, ela já era minha Pérrine!

Pensei só em Isabelle para esse papel porque ela é capaz de ser ao mesmo tempo muito ancorada no real e completamente distante, em seu próprio mundo. Sabia também que ela seria tão comovente e precisa nas situações cômicas quanto nos momentos tristes ou mais intensos. Eu tinha certeza, aliás – e foi o que mais contou para mim -, de que ela faria nascer uma ligação emocional forte com meu espectador ideal.

CC : Carré evoca muitas estrelas cômicas do passado, como Giulietta Masina em La strada, por exemplo. (Uma inocência e uma sensação de estar deslocada.) Isso foi intencional?

MB : Mesmo eu tendo consciência ao escrever a personagem de Pérrine de que ela era um pouco fora do tempo, não pensei especialmente em figuras do passado. Eu não teria ousado fazer paralelo…

Mas quanto à mistura de inocência e defasagem, é verdade que Isabelle se aproxima das comediantes antigas. Eu não tinha pensado nisso, mas talvez seja por isso – também – que gosto tanto dela.

CC : Foi sua intenção prestar algum tipo de tributo à era do cinema mudo com esse filme? Que tipo de filme cômico do passado você prefere? Que estrelas? Pierre Étaix, Buster Keaton, Chaplin?

MB : Gosto muitíssimo de Étaix e Keaton, mas meu preferido continua sendo Chaplin. Luzes da cidade é simplesmente maravilhoso. Quando sabemos que Chaplin levou semanas para descobrir como a jovem cega poderia tomar Carlitos por um homem rico, temos de tirar lições.

Adoro a economia que o cinema mudo impunha. Muitas vezes me pergunto como Lubitsch ou Chaplin teriam feito para fazer compreender esta ou aquela emoção.

Paradoxalmente, eu gosto muito de escrever os diálogos, mas tenho consciência de que eles podem ser uma verdadeira armadilha. Sempre me lembro das palavras de Hitchcock: “Tudo o que é dito em vez de mostrado se perde para o público”.

CC : Você escreveu o papel de Lucie pensando em Carmen Maura? Ela aceitou o desafio imediatamente?

MB : Para falar totalmente a verdade, eu tinha encontrado antes Bernadette Lafont, que tinha aceitado o papel. Infelizmente, ela morreu pouco depois. Era uma atriz e uma mulher incrível.

Quando minha diretora de elenco falou em Carmen Maura, pensei que a atriz não aceitaria trabalhar no meu filme. Estava muito impressionada por sua carreira. Mas Carmen rapidamente disse sim. Quando a encontrei, senti-me à vontade porque ela é muito humana e positiva. E quando ensaiamos o texto juntas pela primeira vez fui conquistada por sua maneira de se apropriar do papel de Lucie.

Era difícil fazer acreditar naquela personagem com sotaque espanhol que vive no campo na Bretanha! E Carmen foi perfeita. Além do que ela traz para o filme, estou feliz por ter conhecido e trabalhado com Carmen. É uma atriz intuitiva e muito profissional.

CC : Você pretende continuar escrevendo roteiros cujas estrelas são mulheres?

MB : Quando escrevo, tento transmitir meu ponto de vista sobre a vida. Portanto, é naturalmente que coloco em cena personagens principais femininas. Escrever um papel principal de homem não seria um problema para mim. Mas cada vez que tentei fazer isso na semana seguinte ele se transformou em mulher…

CC : Por que tão poucas atrizes fazem comédia, na sua opinião? É um fenômeno que você também observa na França?

MB : Antes mesmo de falar em comédia, poucas mulheres fazem filmes. Dito isso, e é melhor assim, há cada vez mais. No que se refere ao gênero cômico, é portanto proporcional ao número de diretoras, mas lá também tenho a impressão de que na França há cada vez mais diretoras de comédias. (Valérie Donzelli, Justine Triet, Julie Delpy, Valeria Bruni-Tedeschi, Noémie Lvovsky, Baya Kasmi)… Mas é verdade que demoramos muito para chegar lá!

CC : Você gosta do trabalho feito por jovens atrizes americanas como Amy Schummer, Tina Fey ou Sarah Silvermann? Ou estrelas americanas que experimentaram o gênero, como Goldie Hawn, Teri Garr ou Meryl Streep?

MB : Gosto muito dessas atrizes, especialmente Tina Fey. Adorei sua série 30 Rock. Mas não penso em me situar nessa categoria. É um humor muito americano, com recursos cômicos que eu não domino obrigatoriamente. Se a crueza de sua linguagem muitas vezes me faz rir, eu mesma seria incapaz de escrever tais diálogos. Nesses pontos eu me sinto um pouco mais pudica.

CC : Que tipo de filme cômico você prefere? Gosta dos de Frank Capra?

MB : Gosto muito de Capra. Mas o diretor de que gosto acima de todos é Billy Wilder. Se meu apartamento falasse é um de meus filmes preferidos. Gosto em geral da mistura de humor e emoção, comédias à italiana: Nós que nos amávamos tantoSemeando a Ilusão, Os eternos desconhecidos são para mim obras-primas do gênero.

CC : O diretor Mario Monicelli disse que a comédia sempre foi amplamente desvalorizada pela crítica na Itália, embora ele e muitos outros artistas, como Pietro Germi e Dino Risi, tenham dirigido algumas obras-primas do gênero, entre divertidas e melancólicas, como Meus caros amigos, Divórcio à italiana ou Aquele que sabe viver. Você acha que isso também aconteceu na França? Ou ainda acontece?

MB : Estou totalmente de acordo com Monicelli. Acho que há um certo esnobismo, na França e em outros lugares, em relação ao gênero cômico. Para alguns, é preciso “arrancar as tripas” para ser considerado um verdadeiro autor.

Os diretores de comédias são muitas vezes considerados “despretensiosos”. Mas me parece que tentar fazer o público rir é muito audacioso. A comédia é para mim um gênero recatado, que não mostra tudo, mas pode esconder muitas tristezas.

É preciso, portanto, ser muito humilde para escrever uma comédia. Além das críticas condescendentes há sempre também o risco de que o que consideramos engraçado não funcione. No entanto, quando funciona e o sorriso ou o riso acontece, não há nada mais prazeroso.

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