Cultura

Orgulho e preconceito

Autora de “Cem Homens em Um Ano” conta como driblou o machismo e a violência para transformar seus casos em livro

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A história curta é assim: a advogada e jornalista Nádia Lapa, 33 anos, estava dirigindo para casa depois de um encontro, em fevereiro de 2011. Rindo, percebeu que havia já se relacionado com oito homens diferentes em dois meses. Considerando que um ano tem 52 semanas, chegaria a 104 homens em um ano se mantivesse o mesmo ritmo. Do insight nasceu a ideia de se abrir mais para as investidas e, de quebra, contar as histórias dos encontros sexuais em um blog, inicialmente anônimo e depois assinado com o pseudônimo de Letícia Fernandez. Como ela mesma definiu, era simples e divertido: ao fim do encontro, ela escrevia. As histórias dos encontros eram diretas, com um toque de “a vida como ela é”, sem muita idealização. Uma mulher normal transando com homens normais. De lá para cá, o blog foi hospedado no portal de uma grande revista feminina, ganhou leitores, holofotes, e virou o livro Cem Homens em Um ano – As aventuras sexuais de uma mulher bem resolvida.

 

No meio da história, porém, Nádia topou com reações raivosas e inesperadas. E, em pleno século 21, precisou lidar com a percepção de que o sexo é algo sujo e pecaminoso, especialmente se é a mulher quem faz (e gosta). “Ouvi xingamentos sobre a minha vida sexual, sobre a minha aparência e até sobre os meus textos”, lembra Nádia, bebendo refrigerante em um bar da Avenida Paulista. Nascida em Manaus, no Amazonas, e criada no Rio de Janeiro, Nádia vive em São Paulo há cinco anos. Não é a imagem de uma sex-symbol tradicional: se veste com simplicidade e ostenta uma tatuagem no braço direito que é um desenho estilizado de uma vagina . No punho esquerdo, tatuou o símbolo do feminismo.

O blog, que começou de maneira despretensiosa, começou a chamar atenção. Na esteira do aumento da popularidade, foi chamada de “a nova Bruna Surfistinha” por um portal de notícias. Ao contrário da autora de O Doce Veneno do Escorpião, porém, Nádia não era prostituta e não cobrava pelos encontros. Apenas escrevia sobre a sua própria vida sexual. Em um dia, recebeu 400 mil acessos. Ao mesmo tempo em que ganhava novos leitores, uma enxurrada de comentários furiosos de homens e mulheres lotaram o blog e a caixa de entrada do e-mail. A escritora também chegou a receber ameaças de morte e de agressão. “Rogavam pragas, diziam que eu era um poço de DST e que eu envergonhava as mulheres”, conta. Além disso, passou a receber propostas e fotos de “voluntários” interessados em passar uma noite com ela. “É uma coisa completamente incontrolável. Naquele momento, pensei em parar com o blog. Nunca achei o que eu fazia errado, mas comecei a pensar que talvez a exposição não fosse uma coisa boa”, pondera.

Além das agressões e grosserias, também não faltaram analistas de plantão tentando explicar os motivos pelos quais ela narrava sua vida sexual em um blog. “Diziam que era necessidade de atenção, que eu tentava preencher o vazio dentro de mim com relações sexuais”, conta. Outras pessoas aceitavam o comportamento, mas não endossavam a exposição. “Muita gente falou que, no momento que eu comecei a publicar, precisava aceitar as consequências disso. Mas eu nunca achei que teria tamanha repercussão, achei que seria só mais um blog, como tantos outros”.

Apesar da pressão, Nádia não desistiu. A noção de que os agressores precisavam ser responsabilizados acabou fazendo com a que a blogueira abandonasse a personagem Letícia e revelasse sua verdadeira identidade. “Enquanto eu era uma personagem, era uma coisa. Agora todo mundo sabe quem eu sou”. Diante da pessoa de carne e osso, os xingamentos diminuíram.

O foco do blog também mudou com o tempo. Como forma de proteger os parceiros (e ela mesma) da superexposição, hoje raramente são publicados posts que tratem de um encontro sexual específico. Outro motivo para a mudança foi que Nádia passou a ser cobrada pelos leitores para atingir a “meta” dos cem homens em um ano. “Se eu ficasse em casa no sábado à noite, já recebia mensagens no Twitter dizendo ‘assim você não vai chegar nos cem’”.

Naturalmente, os relatos foram abrindo espaço para discussões sobre sexo, comportamento e feminismo. Muitas ideias surgem de e-mails e comentários de leitores com dúvidas, muitas delas básicas. Para Nádia, muito da desinformação vem do machismo e da falta de naturalidade na hora de falar sobre sexo. “Ainda se tem muito na cabeça que mulher não gosta de sexo. Poucas mulheres que você encontra no dia-a-dia admitem que gostam e que sentem tesão de se imaginarem transando com dois caras. A imprensa também dificilmente retrata a mulher como uma pessoa empoderada, é sempre a mulher na sombra do cara, em busca de um amor, fazendo alguma coisa para agradar. As pessoas simplesmente aceitam isso como verdade”, opina.

No livro, lançado no final de 2012 pela editora Matrix, Nádia descreve 35 encontros sexuais com amigos, conhecidos, desconhecidos e até com um taxista estrangeiro. Não chegou aos 100 homens que pretendia, mas conta que passou a se descobrir mais e pensar o sexo de forma diferente. Quanto ao choque que causa uma mulher falando de sexo, Nádia lembra que faz pouco tempo que as mulheres conquistaram diretos básicos. “É um processo. Isso choca porque choca a mulher falando palavrão, trabalhando fora, não querendo se casar ou ter filhos. Criaram uma ideia de mulher e querem que 3,5 bilhões de mulheres no mundo dancem conforme essa música. Mas algumas de nós querem dançar outras músicas”, conclui.

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