Cultura

Obsoletos

Como em “O Artista”, inovações transformaram ao longo da história os antigos ídolos, hábitos e modas em algo descartável, fora de esquadro

O que ontem era novo hoje é obsoleto. Foto: Blog do Milton Jung/Flick
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Dia desses, meu colega ao lado, Alberto Villas, escreveu sobre os sinais que recebe diariamente indicando a chegada da idade (Leia ). Entre os muitos sinais estavam a confusão entre o ato de “baixar uma música” com “diminuir” o volume da vitrola, a desconfiança de caixas eletrônicos e as lembranças dos anos 80 como memórias recentes.

Fato.

No meu caso, vejo que a idade chegou pelo estranhamento de pessoas nascidas depois de 1990 com coisas habituais aos que nasceram há quase 30 anos, como eu.

Nesta semana já fui perguntado num mesmo dia sobre quem era Whitney Houston e Pedro de Lara. Goonies, Mamonas Assassinas e Lucas Silva e Silva também são figuras da minha infância/adolescência que, vira e mexe, sou obrigado a explicar.

No esporte, a coisa engrossa ainda mais. Vira e mexe preciso parar algum relato sobre futebol para explicar quem é quem. Tonhão? Ézio? Gralak? Catê? Viola? Ferroviária na primeira divisão? Ah, se não fosse o YouTube…

A velocidade com que as coisas foram guardadas nas caixas do passado é espantosa. Há pouco mais dez anos, logo que vim a São Paulo, tinha um certo receio de usar o computador de uma tia com quem morei durante um tempo. Por isso, me comunicava com minha cidade por meio de cartas (e só fui ter meu primeiro celular no meio do ano). Criei uma conta de e-mail por irritante insistência de amigos, e ainda assim porque me deixavam usar o computador da biblioteca da faculdade. Naquela época, e já era o século atual, as fitas que eu mais gostava estavam todas ainda em VHS e boa parte das músicas, em K7. Pensar que meus livros favoritos um dia seriam achatados para caber numa tela fina era como pensar em andar num skate voador em “De Volta para o Futuro”.

Leia tamvém:

 

A cada inovação surgida era um batalhão de gente e funções que se tornavam obsoletos – do vendedor de bilhetes destacáveis à entrada do metrô, que rodou quando inventaram o bilhete eletrônico, à gigante Kodak, que foi à falência logo que as pessoas descobriram que o melhor intermediário entre uma máquina e o momento registrado era um cabo de computador.

Há muito, muito pouco tempo, o desmonte daquele império era impensável.

Para descer, basta subir, me explicaram certa vez – e para quem entrou no colegial escrevendo em papel almaço e se formou usando apresentações em Power Point, o conceito de velocidade ganha uma conotação extra.

Mas nada muda sem sua quota de estranhamento ou dor. Durante a semana, fui conferir o tão falado “O Artista”, filme de Michel Hazanavicius favorito a praticamente tudo no Oscar 2012. Com todo o mérito. Quase sem palavras, o filme mostra a decadência de uma estrela do cinema mudo após as inovações tecnológicas vividas por Hollywood no fim dos anos 1920. Com a chegada do cinema falado, em pouquíssimo tempo a estrela se apaga, em parte por teimosia própria de quem apostou que a mudança não vingaria; em parte por ingratidão de um público que esquece seus ídolos com a mesma velocidade com que os aceita.

Ao sair do filme, rodado em preto e branco em plena época do cinema 3D, tudo parecia uma grande coincidência. Ao meu lado estava minha mãe, que há exatos 18 anos não colocava os pés num cinema. A última vez havia sido em 1994, num fim de tarde frio em nossa cidade, quando deixamos nossa casa e fomos a pé a um cinema de rua assistir ao filme “Dênis, o Pimentinha” – baseado num desenho animado que hoje, fatalmente, poucos conhecem.

Daquele fim de tarde até ontem, os pés que voltavam ao cinema pareciam ter sido transportados a outro planeta. O velho cinema de rua faliu, virou cine pornô e, depois, igreja. Morreu junto com todos os outros cinemas de rua vitimados, no fim dos anos 90, pelas redes de shopping certer. Na época eu tinha só 12 anos, e achava que trabalharia, como meu pai, debruçado em máquinas de escrever – o escritório dele era lotado delas, mas hoje só tem uma, a dele.

Como ele, ninguém mais fuma em volta da máquina, nem do computador (naquele tempo, trocávamos de status conforme o prefixo dos PCs: 386, 486, 586). Disquete era tudo aquilo que você poderia carregar de importante numa mochila. Cheque ainda era a maneira mais genial de se transferir dinheiro sem sujar as mãos com um bolo de notas. E quando alguém tinha dúvida, consultava as enciclopédias – que mais tarde se tornaram CDs e, depois, foram parar no Google. A velha Barsa que fazia peso sobre as estantes simplesmente desapareceram. Junto com o fax, a secretária eletrônica, o apontador de lápis, o corretivo e os cinzeiros de escritório.

Na última vez que minha mãe entrou no cinema, o Brasil ainda não tinha conseguido seu quarto título mundial, e o Corinthians tinha só um campeonato brasileiro (o Palmeiras estava prestes a conquistar seu quarto e último torneio nacional; hoje o maior rival tem cinco). Romário era jogador, e não deputado, e a maior promessa era uma jovem revelação do Guarani chamada Amoroso – na época o time de Campinas era uma das principais forças do País.

Para ouvir música, ligávamos um aparelho que tomava parte da sala e distribuía o som em caixas enormes, ligadas por fios extensos. Hoje o som cabe em nossos bolsos.

Como George Valentin, o personagem de Jean Dujardin em “O Artista”, muitos ídolos (da música, da tevê, do esporte, da infância) nasceram, cresceram e foram esquecidos. Quando reconhecidos, ouvem tipos de desaforos tais como: “meu pai era um grande fã seu”. Para um ídolo eterno não deve haver maior ofensa. Alguns viraram piadas, como os antes adorados New Kids On The Block, os atores das novelas Vamp e  Quatro por Quatro, as dançarinas como Carla Perez e os atletas como Gilmar Fubá.

O som ficou velho, as tramas rejuvenesceram, a beldade perdeu a ginga. E foram parar no Canal Viva.

Sorte deles, que ainda viveriam para ver a era do YouTube e as festas estilo trash 80 ou 90. Mas pergunte ao meu avô se o Brasil soube cuidar do seu passado e ele vai levantar os dedos para o alto, perguntando onde estão as homenagens, estátuas, cadernos especiais em homenagem aos seus antigos ídolos, como Francisco Alves (“era o Rei da Voz”) e Vicente Celestino (“torneeeeeeeeei-me um ébrio e na bebida busco esquecer”). Como em “O Artista”, alguém pediu passagem para que a juventude passasse, e quem se deixou ficar, ficou. Estão até hoje presos na memória em preto e branco e à boa vontade de quem não mudou de moda, nem de ídolo, como mudou de camiseta.

Dia desses, meu colega ao lado, Alberto Villas, escreveu sobre os sinais que recebe diariamente indicando a chegada da idade (Leia ). Entre os muitos sinais estavam a confusão entre o ato de “baixar uma música” com “diminuir” o volume da vitrola, a desconfiança de caixas eletrônicos e as lembranças dos anos 80 como memórias recentes.

Fato.

No meu caso, vejo que a idade chegou pelo estranhamento de pessoas nascidas depois de 1990 com coisas habituais aos que nasceram há quase 30 anos, como eu.

Nesta semana já fui perguntado num mesmo dia sobre quem era Whitney Houston e Pedro de Lara. Goonies, Mamonas Assassinas e Lucas Silva e Silva também são figuras da minha infância/adolescência que, vira e mexe, sou obrigado a explicar.

No esporte, a coisa engrossa ainda mais. Vira e mexe preciso parar algum relato sobre futebol para explicar quem é quem. Tonhão? Ézio? Gralak? Catê? Viola? Ferroviária na primeira divisão? Ah, se não fosse o YouTube…

A velocidade com que as coisas foram guardadas nas caixas do passado é espantosa. Há pouco mais dez anos, logo que vim a São Paulo, tinha um certo receio de usar o computador de uma tia com quem morei durante um tempo. Por isso, me comunicava com minha cidade por meio de cartas (e só fui ter meu primeiro celular no meio do ano). Criei uma conta de e-mail por irritante insistência de amigos, e ainda assim porque me deixavam usar o computador da biblioteca da faculdade. Naquela época, e já era o século atual, as fitas que eu mais gostava estavam todas ainda em VHS e boa parte das músicas, em K7. Pensar que meus livros favoritos um dia seriam achatados para caber numa tela fina era como pensar em andar num skate voador em “De Volta para o Futuro”.

Leia tamvém:

 

A cada inovação surgida era um batalhão de gente e funções que se tornavam obsoletos – do vendedor de bilhetes destacáveis à entrada do metrô, que rodou quando inventaram o bilhete eletrônico, à gigante Kodak, que foi à falência logo que as pessoas descobriram que o melhor intermediário entre uma máquina e o momento registrado era um cabo de computador.

Há muito, muito pouco tempo, o desmonte daquele império era impensável.

Para descer, basta subir, me explicaram certa vez – e para quem entrou no colegial escrevendo em papel almaço e se formou usando apresentações em Power Point, o conceito de velocidade ganha uma conotação extra.

Mas nada muda sem sua quota de estranhamento ou dor. Durante a semana, fui conferir o tão falado “O Artista”, filme de Michel Hazanavicius favorito a praticamente tudo no Oscar 2012. Com todo o mérito. Quase sem palavras, o filme mostra a decadência de uma estrela do cinema mudo após as inovações tecnológicas vividas por Hollywood no fim dos anos 1920. Com a chegada do cinema falado, em pouquíssimo tempo a estrela se apaga, em parte por teimosia própria de quem apostou que a mudança não vingaria; em parte por ingratidão de um público que esquece seus ídolos com a mesma velocidade com que os aceita.

Ao sair do filme, rodado em preto e branco em plena época do cinema 3D, tudo parecia uma grande coincidência. Ao meu lado estava minha mãe, que há exatos 18 anos não colocava os pés num cinema. A última vez havia sido em 1994, num fim de tarde frio em nossa cidade, quando deixamos nossa casa e fomos a pé a um cinema de rua assistir ao filme “Dênis, o Pimentinha” – baseado num desenho animado que hoje, fatalmente, poucos conhecem.

Daquele fim de tarde até ontem, os pés que voltavam ao cinema pareciam ter sido transportados a outro planeta. O velho cinema de rua faliu, virou cine pornô e, depois, igreja. Morreu junto com todos os outros cinemas de rua vitimados, no fim dos anos 90, pelas redes de shopping certer. Na época eu tinha só 12 anos, e achava que trabalharia, como meu pai, debruçado em máquinas de escrever – o escritório dele era lotado delas, mas hoje só tem uma, a dele.

Como ele, ninguém mais fuma em volta da máquina, nem do computador (naquele tempo, trocávamos de status conforme o prefixo dos PCs: 386, 486, 586). Disquete era tudo aquilo que você poderia carregar de importante numa mochila. Cheque ainda era a maneira mais genial de se transferir dinheiro sem sujar as mãos com um bolo de notas. E quando alguém tinha dúvida, consultava as enciclopédias – que mais tarde se tornaram CDs e, depois, foram parar no Google. A velha Barsa que fazia peso sobre as estantes simplesmente desapareceram. Junto com o fax, a secretária eletrônica, o apontador de lápis, o corretivo e os cinzeiros de escritório.

Na última vez que minha mãe entrou no cinema, o Brasil ainda não tinha conseguido seu quarto título mundial, e o Corinthians tinha só um campeonato brasileiro (o Palmeiras estava prestes a conquistar seu quarto e último torneio nacional; hoje o maior rival tem cinco). Romário era jogador, e não deputado, e a maior promessa era uma jovem revelação do Guarani chamada Amoroso – na época o time de Campinas era uma das principais forças do País.

Para ouvir música, ligávamos um aparelho que tomava parte da sala e distribuía o som em caixas enormes, ligadas por fios extensos. Hoje o som cabe em nossos bolsos.

Como George Valentin, o personagem de Jean Dujardin em “O Artista”, muitos ídolos (da música, da tevê, do esporte, da infância) nasceram, cresceram e foram esquecidos. Quando reconhecidos, ouvem tipos de desaforos tais como: “meu pai era um grande fã seu”. Para um ídolo eterno não deve haver maior ofensa. Alguns viraram piadas, como os antes adorados New Kids On The Block, os atores das novelas Vamp e  Quatro por Quatro, as dançarinas como Carla Perez e os atletas como Gilmar Fubá.

O som ficou velho, as tramas rejuvenesceram, a beldade perdeu a ginga. E foram parar no Canal Viva.

Sorte deles, que ainda viveriam para ver a era do YouTube e as festas estilo trash 80 ou 90. Mas pergunte ao meu avô se o Brasil soube cuidar do seu passado e ele vai levantar os dedos para o alto, perguntando onde estão as homenagens, estátuas, cadernos especiais em homenagem aos seus antigos ídolos, como Francisco Alves (“era o Rei da Voz”) e Vicente Celestino (“torneeeeeeeeei-me um ébrio e na bebida busco esquecer”). Como em “O Artista”, alguém pediu passagem para que a juventude passasse, e quem se deixou ficar, ficou. Estão até hoje presos na memória em preto e branco e à boa vontade de quem não mudou de moda, nem de ídolo, como mudou de camiseta.

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