Cultura

No apocalipse, ainda restará a arte?

Uma reflexão sobre o livro “Estação Onze” e por que precisamos da arte em momentos de ruptura e embrutecimento

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“Sobreviver não é o suficiente”: alguém disse isso em algum episódio da série Star Trek: Voyager, mas essa é apenas uma lembrança distante para o grupo de artistas que escolheu a frase como mote da Sinfonia Itinerante, que leva peças de Shakespeare de cidade em cidade, num mundo pós-apocalíptico em que a humanidade quase acabou por conta de uma epidemia avassaladora.

Distopias pós-apocalípticas são bons pretextos para exercícios especulativos sobre questões como: o que levaria nosso mundo a acabar? Seríamos um dos sobreviventes? Será que nos daríamos melhor com uma espada ou com um arco-e-flecha?

Porque claro, gostamos de nos imaginar como o sobrevivente do apocalipse que anda sempre armado e sabe exatamente o que fazer em situações de perigo, ainda que na vida real tenhamos dificuldade até para puxar o papel toalha do banheiro público sem desperdiçar umas cinco folhas pelo menos.

Essas histórias podem trazer zumbis, epidemias ou grandes guerras, mas são, essencialmente, sobre sobrevivência. A principal motivação dos personagens é sobreviver e como conseguir se virar em um mundo sem Snapchat, memes ou burocracia.

É fácil cair em clichês e fórmulas prontas nesse tipo de história, mas alguns autores de cenários pós-apocalípticos conseguem surpreender, como é o caso de Emily St. John Mendel. Ela escreveu Estação Onze, um dos melhores livros apocalípticos que já pude ler – e o mote “sobreviver não é o suficiente” tem tudo a ver com isso.

A história é sobre uma epidemia que faz um grande estrago na população mundial e em como as pessoas levavam suas vidinhas até então. Neste cenário, não há mais Internet, nem redes sociais, nem eletricidade, nem governo, nem promoções de passagens aéreas. Os poucos sobreviventes se reorganizam em pequenas cidades, na tentativa de reerguer a humanidade depois da grande Gripe.

Estação Onze foge um pouco das narrativas tradicionais de sobrevivência no apocalipse ao estruturar o eixo da história ao redor da Sinfonia de Itinerante e de histórias cruzadas de uma das atrizes do grupo, Kirsten, que era uma criança quando a epidemia começou.

Ela atuava como atriz mirim numa peça protagonizada por um ex-astro de cinema, que morre no palco, durante a apresentação, vítima de um infarto fulminante – apenas um dia antes de toda a merda apocalíptica explodir.

O livro vai e volta no tempo, mostrando o mundo antes e depois da pandemia, explorando principalmente as relações de Arthur, o ator que morre no palco e não vê seu mundo se reduzir a ruínas.

É assim que a arte ganha protagonismo na trama, ao trazer outros personagens ligados a Arthur, como sua ex-mulher Miranda, que criava uma história em quadrinhos de ficção científica sobre uma estação espacial – a Estação Onze, que dá nome ao livro.

Vemos Miranda desenhando, escrevendo e reescrevendo os diálogos de Dr. Onze e seus outros personagens numa história em quadrinhos; acompanhamos Kirsten interpretando Cordélia em uma montagem itinerante da peça Rei Lear; antes ou depois do fim do mundo, a arte está lá.

E isso numa história sobre sobrevivência, num gênero de histórias em que a arte é um aspecto negligenciado ou totalmente inexistente, é algo bastante significativo.

Não que seja um problema criar um cenário distópico em que não haja espaço para a arte; é apenas uma questão de escolha sob qual prisma observar um hipotético apocalipse. Mas na escolha de Emily reside um questionamento importante: o mundo como conhecemos não existe mais; mas a arte sobreviveu. Por quê?

Em um dos capítulos, acompanhamos o processo criativo de Miranda: ela desenha uma cena em que Dr. Onze está de pé sobre um rochedo observando o pôr-do-sol, com seu cachorro ao lado. Ela tenta imaginar qual é a linha de pensamento que cabe melhor para aquela cena, escrevendo e reescrevendo várias vezes até chegar à frase que julgou satisfatória: “Contemplei meu lar defeituoso e tentei esquecer a doçura da vida na Terra”.

Muitos anos depois, quando a sociedade tenta juntar os caquinhos do que sobrou depois da grande Gripe, a jovem atriz Kirsten relê um exemplar de uma antiga história em quadrinhos que guarda com muito cuidado. “Contemplei meu lar defeituoso e tentei esquecer a doçura da vida na Terra”, pensa o Dr. Onze. E aquela frase, escrita em outro mundo, consegue se encaixar perfeitamente no mundo em que Kirsten vive agora.

Porque ela conheceu “a doçura da vida na Terra”, antes da humanidade quase acabar; e agora contempla seu novo lar, um mundo “defeituoso” por suas ausências e lacunas, tentando se esquecer do que aquele lugar foi um dia. É uma frase emblemática, por conseguir transcender ao tempo e dialogar com uma realidade completamente diferente daquela em que foi criada.

Em outro momento do livro, conhecemos mais sobre a Sinfonia Itinerante da qual Kirsten faz parte. Há um trecho que conta que eles, no início, até apresentavam algumas montagens mais modernas, mas as que faziam sucesso eram sempre peças de Shakespeare. Com o tempo, eles passaram a apresentar apenas peças shakespearianas, porque eles se deram conta: “as pessoas querem o que houve de melhor no mundo”.

Nos dois exemplos, a arte funciona como uma ponte para uma outra realidade, como um canal de conexão com um mundo que não existe mais. A arte é uma atividade criadora de conexões e de sentido.

Com ela, significamos o mundo ao nosso redor; e se agarrar a ela em um cenário em que não nos resta mais nada talvez seja tão importante para a sobrevivência quanto aprender a manejar facas de combate ou a encontrar alimentos.

Li Estação Onze faz um tempo, mas lembrei da história recentemente, porque me fez pensar sobre o papel da arte – e se ainda há espaço para ela mesmo com o conservadorismo e o ódio dominando tantos territórios, em um mundo que parece estar desmoronando ao nosso redor.

Mas talvez seja exatamente nesses momentos em que precisemos mais da arte. Não só para conseguirmos sobreviver, mas também porque só sobreviver não é o suficiente.

Apesar de constantemente subvalorizada, vista como algo supérfluo ou até inútil, a arte é o pilar que sustenta o que há de humano em nós: nossa expressão, nosso olhar do mundo, nosso impulso em nos conectar com o outro, ainda que seja um “outro” fictício, ou um “outro” que reside em nós mesmos mas que só conseguimos acessar através da arte.

Não precisamos esperar por um cenário apocalíptico para tentar buscar na arte um refúgio, uma fonte de sentido em meio ao caos; o absurdo cotidiano em que estamos imersos já pede por uma ressignificação, ou uma fuga para estações espaciais imaginárias onde podemos contemplar, com distanciamento, nosso lar defeituoso.

Precisamos da arte – e precisamos de quem se dedique a criá-la – especialmente em momentos de ruptura. Quando as coisas parecem perder o rumo. Quando as pessoas atingem níveis preocupantes de embrutecimento.

E precisamos porque é tênue a linha que nos separa de corpos que apodrecem aos poucos enquanto caminham sem direção pela Terra – e talvez seja a possibilidade da arte que risque essa linha no chão.

Pode parecer distante a ideia de ver nosso mundo acabar; mas a verdade é que nosso mundo está constantemente acabando para dar lugar a outro. Só podemos esperar o que vier em seguida – e com alento imaginar que, ainda que não sobre nada, ainda restará arte. 

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