Cultura

Não morri de tédio

Estou no interior há vinte e cinco anos e não morri de tédio, escreve Menalton Braff

Foto: Galeria de raphaelstrada/Flickr
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Eu disse que me ia embora para o interior, e todos, entre incrédulos e surpresos, pararam para me examinar com mais atenção. O fim do ano estava próximo, eu estava cansado, os colegas ficaram atônitos. Estávamos na sala dos professores de uma faculdade em São Paulo, e, para descansar, jogávamos conversa fora durante o intervalo entre as aulas.

Suportei o silêncio e os olhares pesados. Em volta da imensa mesa no meio da sala, todos me olhavam um pouco abismados porque eu havia dito que com tanta correria a vida acabava passando sem ser notada. Eu queria mais tempo para mim, para fazer um monte de coisas ou apenas para não fazer nada, mas um tempo que fosse meu, porque o tempo, segundo filósofos menos aparelhados que Bérgson para falar do assunto, o tempo é a medida da vida. De onde posso concluir que na verdade era uma parte maior de minha própria vida que eu reivindicava.

Uma colega me olhou penalizada como se eu fosse merecedor de sua misericórdia. Ah, não, não faça isso. Então nos contou que já tivera sua experiência de fuga para o interior. Foram cinco anos, ela repetia com alguns traços de histeria na voz distorcida na medida em que desenvolvia seu pensamento. Contou-nos que nas duas primeiras semanas sentiu-se encantada com a vida simples e livre do interior. Nas duas e apenas nas duas primeiras semanas. Fora disso, ela me ameaçou, fora disso foram cinco anos de um tédio insuportável. A vida era uma estrada de terra com vento levantando poeira.

A cigarra, no corredor, interrompeu a discussão, e fui ainda alvo de comentários que me advertiam ou me consolavam. A sala esvaziou-se, e as últimas aulas me viram distraído, sem muita convicção de que tomava o caminho certo.

A cena acima me veio à memória hoje de manhã, quando levantei pensando que teria o dia todo disponível para não fazer nada. Isso não me acontecia há vários meses, em que andei de agenda lotada todos os dias. Depois do café, entrei no Outlook, não fosse algum maluco ter enviado um emeil em plena madrugada. Não é frequente, mas acontece, porque tenho alguns amigos que de vez em quando são atacados pela insônia. Como estivesse com umas fotos recentes sobre a bancada, resolvi escanear duas ou três, que me pareceram merecer uma viagem eletrônica.

Só então voltei ao Saramago que estivera lendo até a meia-noite. Em companhia da senhora morte, com seus problemas insolúveis, como a necessidade de matar um violoncelista, fiquei até perto do almoço. Almoçado, resolvi ouvir novamente um oratório de Bach, cujo quarto movimento é uma das páginas mais tristes e mais belas de toda a música universal. Ach, bleibe doch, mein liebstes leben. Sem aquelas maiúsculas deles, que usam para substantivos, mas se não sei alemão, como saber quais são os substantivos?

Estou no interior há vinte e cinco anos e não morri de tédio. Gostaria de saber como estão vivendo meus colegas, a quem tanta lástima causou meu destino de trânsfuga. Ah, sim, e uma reflexão final: morre-se de tédio em qualquer lugar, porque ele não está fora, mas dentro de cada um.

Eu disse que me ia embora para o interior, e todos, entre incrédulos e surpresos, pararam para me examinar com mais atenção. O fim do ano estava próximo, eu estava cansado, os colegas ficaram atônitos. Estávamos na sala dos professores de uma faculdade em São Paulo, e, para descansar, jogávamos conversa fora durante o intervalo entre as aulas.

Suportei o silêncio e os olhares pesados. Em volta da imensa mesa no meio da sala, todos me olhavam um pouco abismados porque eu havia dito que com tanta correria a vida acabava passando sem ser notada. Eu queria mais tempo para mim, para fazer um monte de coisas ou apenas para não fazer nada, mas um tempo que fosse meu, porque o tempo, segundo filósofos menos aparelhados que Bérgson para falar do assunto, o tempo é a medida da vida. De onde posso concluir que na verdade era uma parte maior de minha própria vida que eu reivindicava.

Uma colega me olhou penalizada como se eu fosse merecedor de sua misericórdia. Ah, não, não faça isso. Então nos contou que já tivera sua experiência de fuga para o interior. Foram cinco anos, ela repetia com alguns traços de histeria na voz distorcida na medida em que desenvolvia seu pensamento. Contou-nos que nas duas primeiras semanas sentiu-se encantada com a vida simples e livre do interior. Nas duas e apenas nas duas primeiras semanas. Fora disso, ela me ameaçou, fora disso foram cinco anos de um tédio insuportável. A vida era uma estrada de terra com vento levantando poeira.

A cigarra, no corredor, interrompeu a discussão, e fui ainda alvo de comentários que me advertiam ou me consolavam. A sala esvaziou-se, e as últimas aulas me viram distraído, sem muita convicção de que tomava o caminho certo.

A cena acima me veio à memória hoje de manhã, quando levantei pensando que teria o dia todo disponível para não fazer nada. Isso não me acontecia há vários meses, em que andei de agenda lotada todos os dias. Depois do café, entrei no Outlook, não fosse algum maluco ter enviado um emeil em plena madrugada. Não é frequente, mas acontece, porque tenho alguns amigos que de vez em quando são atacados pela insônia. Como estivesse com umas fotos recentes sobre a bancada, resolvi escanear duas ou três, que me pareceram merecer uma viagem eletrônica.

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