Cultura

Liberdade condicional

Filme com Juliette Binoche escancara bandeiras feministas e crava na jugular de quem sonha em ‘padecer no paraíso’

Anne, personagem de Juliette Binoche em 'Elles'
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Como a maioria das crianças da minha rua, passei a maior parte da infância na companhia de minha mãe. Não só da minha, mas de toda a vizinhança. Era a mãe quem acordava antes de todo mundo. Quando eu pensava em abrir os olhos, o café estava pronto, à mesa. Às vezes era ela quem nos levava até a escola, às vezes era a mãe de alguém. Lotávamos o carro e, dali em diante, onde quer que se olhasse, haveria sempre uma mãe ao nosso lado até o fim do dia. Quando uma cruzava com a outra, era o terror; elas passavam longos e longos minutos em conversas sobre assuntos não muito variados: os filhos que estavam com dor de ouvido, os maridos que haviam adorado a receita do último bolo, a liquidação das lojas de sapato.

Quase nunca falavam das próprias aventuras – ao menos não em voz alta ou perto dos filhos. De vez em quando elas se reuniam em casa para colocar os papos em dia e eu ficava só espiando. Não deviam estar distantes da raia dos 40 anos, mas pareciam envelhecidas ou cansadas; no ambiente familiar, usavam chinelos de dedos, batom era coisa rara, e os cabelos estavam sempre presos. As mães da minha infância tinham as feições mais parecidas com dona Florinda do que com Sarah Jessica Parker.

Apesar de passar 90% do meu tempo ao lado da mãe, ou das outras mães da rua, vinham de meu pai as grandes influências. Era dele a coleção de livros, CDs e LPs – os que sobravam. Entrar no quarto de som e TV era entrar num mundo criado e administrado à imagem e semelhança dos homens da casa (a novela talvez fosse o único programa para todos os gostos; os outros eram apreciados em horários diferentes, incompatíveis). Os homens de nossa rua ouviam Beatles; as mulheres, Roberto Carlos ou músicas da igreja.

Um dos raros pontos de intersecção entre os dois mundos aconteceu certa vez em que o aparelho de som tocou Woman, a música-homenagem de John Lennon a Yoko Ono. Estava sozinho naquele quarto inviolável quando uma vizinha abandonou a conversa com minha mãe na sala de estar e se sentou do meu lado, em silêncio. Ela ouviu a música inteira como se contivesse um choro. No fim, disse não ter palavras para contar o quanto amava aquela música – na qual o eu-lírico agradecia as mulheres, todas as mulheres, por terem lhe ensinado o significado da palavra “sucesso” (naquele tempo ainda rezava a lenda odiosa de que por trás de um grande homem havia sempre uma grande mulher).

 

A entrada da vizinha naquele quarto era quase uma invasão. Apesar do tema da música, feita aparentemente em celebração a uma mulher, estava acostumado a ver somente os amigos homens do meu pai se interessar por aquelas canções. Pelo menos na nossa rua. Pelo menos naquele tempo. Das mulheres o que eu ouvia quase sempre eram lamúrias sobre a vida naquelas casas – grandes, bem planejadas, arejadas, mas tomadas de tarefas diárias. Eu sei que havia um mundo fora daquela rua, um mundo de batalhas, de conquistas, de afirmação. Mas no interior as novidades sempre chegam com anos de atraso.

Pois foi naquele tempo que aprendi a ouvir frequentemente uma frase que, por sorte, hoje parece ter caído em desuso: “ser mãe é padecer no paraíso”.

Não sabia bem o que era padecer. Mas imaginava que doía muito – e o dicionário me confirmaria isso algum tempo depois. O paraíso eu sabia bem o que era: um imperativo quase moral. Algo como: “não importa o que te façam, vire sempre a outra face”; “não importa o quanto sofra, esteja sempre sorrindo”. A obrigação de sorrir e estar sempre feliz parecia ser sempre toda delas.

Como em todas as casas da nossa rua, o paraíso começava e terminava na porta do lar; dali em diante era o abismo, um abismo que só os homens tinham acesso. Eles então saíam à caça, as mulheres passavam os dias varrendo a tenda, cuidando dos filhos e eram premiadas ao fim da tarde com um beijo na testa e uma presa recém-capturada e prestes a ser esfolada, depenada, desossada e cozinhada por ela. Ao fim do jantar, os homens iam para a sacada fumar e as mulheres corriam para a pia.

Algo que soaria como um escárnio nos dias de hoje. O tempo que levei para sair de casa e ter a minha própria deitou ao chão as divisórias por gênero da divisão social do trabalho – e teve impacto direto na vida dentro de casa. Por isso me parecia estranha a temática de Elles, o filme de Malgorzata Szumowska estrelado por Juliette Binoche. Vi o trailer pelo menos quatro vezes. Nas quatro fiquei atraído e desconfiado com a sinopse: uma jornalista de meia idade vivendo uma crise de questionamentos após entrevistar duas jovens prostitutas.

Eram dois riscos para um mesmo filme. O primeiro, claro, desmistificar a vida das prostitutas sem romantizar nem carregar na tinta do drama juvenil. O drible no campo minado parecia certo quando algumas cenas foram pinçadas logo no trailer. Numa delas, Anne, a personagem de Binoche, ouve com estranhamento as descrições quase pirotécnicas da primeira noite de uma das meninas. “E você gosta de fazer tudo isso?”, questiona a repórter. “E você, não gosta?”, rebate a menina. Em outro diálogo, Anne pergunta à outra menina se ela não se sentia sozinha em razão da vida que escolhera. A resposta, por meio de outra pergunta, é um balaço na testa: “quem é que não está sozinho hoje em dia?”. Como quem passou a vida numa redoma, Anne se surpreende com a firmeza das respostas e com os relatos sobre os clientes das meninas: pessoas normais em busca de um pouco de atenção e que passam boa parte do programa falando da família, do trabalho, dos sonhos…

É aí que o segundo desafio do filme é assumido. Anne é uma mulher aparentemente libertada: ela é culta, interessante, bonita, bem-sucedida e talentosa. Escreve para a revista Elle e briga por seu espaço na revista (chega a falar alto com os editores quando sugerem reduzir o espaço do texto). Mais: tem a liberdade de escrever de casa, um belo apartamento em Paris – e em certo momento ela engole a careta ao ouvir uma das meninas dizer que se considera uma pessoa de sorte por ter conseguido comprar sua própria casa com um mês de programas.

A convivência com as prostitutas vai aos poucos anulando o asco pré-concebido da jornalista. No filme, há dois enfoques brutais em seu rosto: quando ela ouve os relatos e quando está em casa, sozinha a escrever sua reportagem. O primeiro olhar é um olhar materno, de quem quer rir ou chorar e se contém. Não é um olhar de pena nem admiração – ou é muito dos dois. É um olhar de quem parece cantar para si: “essas moças, pobres moças, se soubessem o que eu sei…” Sabe que, de alguma forma, elas também estão condenadas e ainda não perceberam.

O segundo olhar é o olhar em casa, quando está só e é insistentemente golpeada pelas lembranças dos relatos. Diante do espelho e envolta com sua jornada dupla, Anne percebe que em pelo menos um ponto as meninas têm razão: ninguém está imune à solidão; ela passa o tempo entre o texto e os exercícios para emagrecer, as funções do lar, o jantar, o cuidado com os filhos mimados e sem sal (quando algo dá errado, o marido a cobra: você não sabe cuidar deles). E passa o dia atônita com o jantar encomendado pelo marido e que será oferecido aos chefes e mulheres dos chefes. Anne prevê uma noite modorrenta com assuntos lamentáveis: a vida dos filhos, as aflições no trabalho, as viagens, os gastos…a descrição, enfim, da mais desinteressante rotina burguesa, bem comportada e anti-séptica.

Naquela casa, Anne parece parte da paisagem: suas roupas muito brancas cobrem seus braços e rosto muito pálidos, sem batom e sem vaidade, como se ela estivesse sido absorvida por aquele meio. Anne padece no paraíso.

Há uma legítima bandeira feminista erguida ali. Uma bandeira cravada na garganta de quem mantém de pé uma estrutura rudimentar remanescente de outras eras: um mundo feito por homens e para os homens. Dentro ou fora de casa. É como se a penetração nestes redutos (o mercado, a política, a lei, a produção artística) fosse uma conquista encaminhada, mas longe de ser definitiva. Nesse sentido, Anne parece encarnar a transição entre dois mundos, um ainda latente, e outro respirando por aparelhos. Esses dois mundos parecem conflitantes, mas ainda se encontram quase sempre numa mesma sala de jantar.

Como a maioria das crianças da minha rua, passei a maior parte da infância na companhia de minha mãe. Não só da minha, mas de toda a vizinhança. Era a mãe quem acordava antes de todo mundo. Quando eu pensava em abrir os olhos, o café estava pronto, à mesa. Às vezes era ela quem nos levava até a escola, às vezes era a mãe de alguém. Lotávamos o carro e, dali em diante, onde quer que se olhasse, haveria sempre uma mãe ao nosso lado até o fim do dia. Quando uma cruzava com a outra, era o terror; elas passavam longos e longos minutos em conversas sobre assuntos não muito variados: os filhos que estavam com dor de ouvido, os maridos que haviam adorado a receita do último bolo, a liquidação das lojas de sapato.

Quase nunca falavam das próprias aventuras – ao menos não em voz alta ou perto dos filhos. De vez em quando elas se reuniam em casa para colocar os papos em dia e eu ficava só espiando. Não deviam estar distantes da raia dos 40 anos, mas pareciam envelhecidas ou cansadas; no ambiente familiar, usavam chinelos de dedos, batom era coisa rara, e os cabelos estavam sempre presos. As mães da minha infância tinham as feições mais parecidas com dona Florinda do que com Sarah Jessica Parker.

Apesar de passar 90% do meu tempo ao lado da mãe, ou das outras mães da rua, vinham de meu pai as grandes influências. Era dele a coleção de livros, CDs e LPs – os que sobravam. Entrar no quarto de som e TV era entrar num mundo criado e administrado à imagem e semelhança dos homens da casa (a novela talvez fosse o único programa para todos os gostos; os outros eram apreciados em horários diferentes, incompatíveis). Os homens de nossa rua ouviam Beatles; as mulheres, Roberto Carlos ou músicas da igreja.

Um dos raros pontos de intersecção entre os dois mundos aconteceu certa vez em que o aparelho de som tocou Woman, a música-homenagem de John Lennon a Yoko Ono. Estava sozinho naquele quarto inviolável quando uma vizinha abandonou a conversa com minha mãe na sala de estar e se sentou do meu lado, em silêncio. Ela ouviu a música inteira como se contivesse um choro. No fim, disse não ter palavras para contar o quanto amava aquela música – na qual o eu-lírico agradecia as mulheres, todas as mulheres, por terem lhe ensinado o significado da palavra “sucesso” (naquele tempo ainda rezava a lenda odiosa de que por trás de um grande homem havia sempre uma grande mulher).

 

A entrada da vizinha naquele quarto era quase uma invasão. Apesar do tema da música, feita aparentemente em celebração a uma mulher, estava acostumado a ver somente os amigos homens do meu pai se interessar por aquelas canções. Pelo menos na nossa rua. Pelo menos naquele tempo. Das mulheres o que eu ouvia quase sempre eram lamúrias sobre a vida naquelas casas – grandes, bem planejadas, arejadas, mas tomadas de tarefas diárias. Eu sei que havia um mundo fora daquela rua, um mundo de batalhas, de conquistas, de afirmação. Mas no interior as novidades sempre chegam com anos de atraso.

Pois foi naquele tempo que aprendi a ouvir frequentemente uma frase que, por sorte, hoje parece ter caído em desuso: “ser mãe é padecer no paraíso”.

Não sabia bem o que era padecer. Mas imaginava que doía muito – e o dicionário me confirmaria isso algum tempo depois. O paraíso eu sabia bem o que era: um imperativo quase moral. Algo como: “não importa o que te façam, vire sempre a outra face”; “não importa o quanto sofra, esteja sempre sorrindo”. A obrigação de sorrir e estar sempre feliz parecia ser sempre toda delas.

Como em todas as casas da nossa rua, o paraíso começava e terminava na porta do lar; dali em diante era o abismo, um abismo que só os homens tinham acesso. Eles então saíam à caça, as mulheres passavam os dias varrendo a tenda, cuidando dos filhos e eram premiadas ao fim da tarde com um beijo na testa e uma presa recém-capturada e prestes a ser esfolada, depenada, desossada e cozinhada por ela. Ao fim do jantar, os homens iam para a sacada fumar e as mulheres corriam para a pia.

Algo que soaria como um escárnio nos dias de hoje. O tempo que levei para sair de casa e ter a minha própria deitou ao chão as divisórias por gênero da divisão social do trabalho – e teve impacto direto na vida dentro de casa. Por isso me parecia estranha a temática de Elles, o filme de Malgorzata Szumowska estrelado por Juliette Binoche. Vi o trailer pelo menos quatro vezes. Nas quatro fiquei atraído e desconfiado com a sinopse: uma jornalista de meia idade vivendo uma crise de questionamentos após entrevistar duas jovens prostitutas.

Eram dois riscos para um mesmo filme. O primeiro, claro, desmistificar a vida das prostitutas sem romantizar nem carregar na tinta do drama juvenil. O drible no campo minado parecia certo quando algumas cenas foram pinçadas logo no trailer. Numa delas, Anne, a personagem de Binoche, ouve com estranhamento as descrições quase pirotécnicas da primeira noite de uma das meninas. “E você gosta de fazer tudo isso?”, questiona a repórter. “E você, não gosta?”, rebate a menina. Em outro diálogo, Anne pergunta à outra menina se ela não se sentia sozinha em razão da vida que escolhera. A resposta, por meio de outra pergunta, é um balaço na testa: “quem é que não está sozinho hoje em dia?”. Como quem passou a vida numa redoma, Anne se surpreende com a firmeza das respostas e com os relatos sobre os clientes das meninas: pessoas normais em busca de um pouco de atenção e que passam boa parte do programa falando da família, do trabalho, dos sonhos…

É aí que o segundo desafio do filme é assumido. Anne é uma mulher aparentemente libertada: ela é culta, interessante, bonita, bem-sucedida e talentosa. Escreve para a revista Elle e briga por seu espaço na revista (chega a falar alto com os editores quando sugerem reduzir o espaço do texto). Mais: tem a liberdade de escrever de casa, um belo apartamento em Paris – e em certo momento ela engole a careta ao ouvir uma das meninas dizer que se considera uma pessoa de sorte por ter conseguido comprar sua própria casa com um mês de programas.

A convivência com as prostitutas vai aos poucos anulando o asco pré-concebido da jornalista. No filme, há dois enfoques brutais em seu rosto: quando ela ouve os relatos e quando está em casa, sozinha a escrever sua reportagem. O primeiro olhar é um olhar materno, de quem quer rir ou chorar e se contém. Não é um olhar de pena nem admiração – ou é muito dos dois. É um olhar de quem parece cantar para si: “essas moças, pobres moças, se soubessem o que eu sei…” Sabe que, de alguma forma, elas também estão condenadas e ainda não perceberam.

O segundo olhar é o olhar em casa, quando está só e é insistentemente golpeada pelas lembranças dos relatos. Diante do espelho e envolta com sua jornada dupla, Anne percebe que em pelo menos um ponto as meninas têm razão: ninguém está imune à solidão; ela passa o tempo entre o texto e os exercícios para emagrecer, as funções do lar, o jantar, o cuidado com os filhos mimados e sem sal (quando algo dá errado, o marido a cobra: você não sabe cuidar deles). E passa o dia atônita com o jantar encomendado pelo marido e que será oferecido aos chefes e mulheres dos chefes. Anne prevê uma noite modorrenta com assuntos lamentáveis: a vida dos filhos, as aflições no trabalho, as viagens, os gastos…a descrição, enfim, da mais desinteressante rotina burguesa, bem comportada e anti-séptica.

Naquela casa, Anne parece parte da paisagem: suas roupas muito brancas cobrem seus braços e rosto muito pálidos, sem batom e sem vaidade, como se ela estivesse sido absorvida por aquele meio. Anne padece no paraíso.

Há uma legítima bandeira feminista erguida ali. Uma bandeira cravada na garganta de quem mantém de pé uma estrutura rudimentar remanescente de outras eras: um mundo feito por homens e para os homens. Dentro ou fora de casa. É como se a penetração nestes redutos (o mercado, a política, a lei, a produção artística) fosse uma conquista encaminhada, mas longe de ser definitiva. Nesse sentido, Anne parece encarnar a transição entre dois mundos, um ainda latente, e outro respirando por aparelhos. Esses dois mundos parecem conflitantes, mas ainda se encontram quase sempre numa mesma sala de jantar.

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