Cultura

Fique mais em casa

O ânimo é baixo, a conta é alta, a mediocridade se instalou com pompa e arrogância no mundo da gastronomia

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Posso estar errado. O fato é: tenho sentido mais preocupação no mundo verde-amarelo da gastronomia do que entusiasmo. Sobre dinheiro muitos reclamam. Ouço demais a frase: a concorrência aumentou muito. Curiosa frase considerando que talvez ainda exista muito espaço para bons restaurantes. Para os muito caros talvez não. E para aqueles que nos servem um spaghetti com alguma sofisticação e nos cobram um preço que chega a ser engraçado eu diria que não vejo um vasto horizonte de céu azul.

As pessoas, como já disse, decidiram mesmo fazer contas. Acho sensacional que isso aconteça. A mediocridade se instalou com pompa e arrogância. Ter um ativo com forno e fogão foi um excelente negócio, mas parece que não é mais. Comer fora começa a deixar de ser algo tão trivial quanto abastecer o carro. Como disse uma amiga e aqui reproduzi: pagar uma grana alta para comer o que posso fazer em casa?

Estamos nos tornando mais seletivos. Bem, eu sinceramente adoraria acreditar nisso, mas não consigo fazê-lo piamente. Uma minoria talvez esteja.

E nesse clima de resmungos não vejo prosperar a arte, não vejo excitação.

Tendo ido com frequência a um dos mais celebrados restaurantes da cidade, confesso que nada me fez ficar de boca aberta, ansioso pela próxima bocada. Não faria uso de outro adjetivo: interessante. Ou seja, não se trata de estar alheio ao que rola. O que tem acontecido não tem me emocionado.

Continuo a ver o Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo, no Edifício Copan, bombando e recebendo cada vez mais turistas oriundos dos Jardins, famintos por uma comida simples, como se fazia em outros tempos, sem invenções. E os preços são bem razoáveis.

E, no tema invenção zero, estive a navegar pela internet à procura de receitas. Na paralela leio que aumenta o número de publicações gastronômicas. Acho ótimo que aconteça, mas não deixo de me surpreender. É muito difícil a competição entre uma receita escrita e uma filmada. Eu vou atrás dessas últimas. E nessa procura descobri um chef português, Henrique Sá Pessoa, quem sabe parente do Gomes e do Fernando, em um site que atende pelo nome de Ingrediente Secreto. Vá até o YouTube, digite Ingrediente Secreto, e vários vídeos se apresentarão.

E foi em uma das receitas de polvo que ele conta que esteve em algum lugar na Espanha com outro chef amigo, que preparou, para outros chefs, um polvo. Todos quiseram saber qual o segredo. Qual a técnica que havia sido utilizada? Vácuo? Baixa temperatura? Câmara de nêutrons? Reconstituição molecular atômica? Pois bem: cebola, tomate, ervas, muito azeite, tudo coberto por um papel-alumínio e forno a 200 graus durante duas horas.

Só? Só isso. E digo mais: o caldo que se forma na forma é espetacular. Irá, ainda nesta semana, incorporar-se a um arroz. Tenho dúvida se um arroz brasileirinho ou um italiano.

Algumas vezes já declarei por aqui minha predileção pelo brasileirinho, que é bem menos sofisticado e mais condescendente. Minha história cabocla e portuguesa me levou a isso. E, por falar nisso, mais uma confissão: adoro pegar nacos de arroz gelado no meio da noite. Coisa que o arroz italiano, feito risoto, não permite. Como diria meu analista, vamos tentar dar um fechamento à sessão.

Os restaurateurs estão preocupados e procurando saídas. O tal do capitalista parece ser a salvação do planeta. Até me vejo numa UTI, prestes a pegar o barco de Caronte, tentando fazer um acordo com um megagrupo. Se bem que minha alma de pouca serventia seria. Para um bom restaurante pode ser uma saída. A dúvida permanece: essa turma que sabe mexer com o “arame”, com a bufunfa, com o vil metal entende alguma coisa das comidas?

Sei não. O momento é estranho. O País está bem esquisitão, meus queridos e queridas. O ânimo é baixo, a conta é alta e eu recomendo com entusiasmo: fique mais em casa, acesse mais as receitas filmadas, divirta-se, evite aborrecimentos.

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