Cultura

Em ‘Amour’, a maldade cai bem a Isabelle Huppert

A atriz olha o lado sombrio da humanidade, mesmo cativa dele

Desconforto como opção: Isabella Huppert como Thèrése Bourgoine, em Captive, personagem testada até o limite
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Sobre sua predileção em trabalhar com Isabelle Huppert, o cineasta francês Claude Chabrol certa vez pontuou uma definição jocosa: “Sua maldade me convém”. Referia-se a uma postura sempre disposta da intérprete em assumir no cinema mulheres de personalidade de alguma maneira conturbada. Chabrol morreu em 2010, o que deu fim a uma parceria de longa data com a atriz, mas a fama prevalece. Outros diretores, poucos, também consumaram uma preferência, caso do alemão Michael Haneke. Huppert acaba de completar seu terceiro filme com ele, Amour. Ela não acredita, porém, que se repetirá a condição fetichista entre um realizador e sua musa como aconteceu com Chabrol. “Eu nunca soube por que ele me amava, mas sei que era assim. Ele me deu várias demonstrações disso com seus filmes”, disse num discurso emocionado durante homenagens no funeral do diretor.

Huppert, 58 anos, desde então cumpre uma rara trajetória de renovação de carreira com filiação a diretores novatos ou em ascensão. O desafio não ocorre propriamente pela escolha do nome, mas se o projeto a impulsiona a algum território de sua vocação que ela desconhece. Foi assim recentemente com Hong Sang-soo, nome do novo cinema coreano já efetivado por prêmios nos principais festivais internacionais. É o caso ainda de Brillante Mendoza, o filipino que tem frequentado com assiduidade Cannes, Veneza e Berlim. Na edição atual desse último, de número 62, encerrado dia 19, ele apresentou Captive, protagonizado pela francesa. Diretor e atriz se conheceram durante o Festival de Cannes, quando Mendoza foi premiado por Kinatay, mas ele a convidou para o filme em São Paulo, durante sua retrospectiva.

Em ambos os projetos, Huppert atende ao perfil de uma estrangeira obrigada a lidar com um universo local. Em Mendoza, ela testa seus limites como a missionária cristã raptada juntamente com um grupo de turistas nas Filipinas pela facção muçulmana radical Abu Sayyaf. A esse episódio real que a partir de 2001 perdurou por quase um ano nas selvas do país, a atriz confere ao personagem coragem e uma boa dose de adaptação para sobreviver.

Conhecia os filmes mais recentes de Mendoza, como Kinatay e Lola, e sabia da condição fundamental das mulheres em seus filmes”, aponta a CartaCapital na entrevista que reuniu um grupo de jornalistas durante a Berlinale. “Minha escolha foi mais em trabalhar com ele do que pelo papel.” A explicação confere mais força ao meio habitualmente sombrio e brutal da cinematografia do filipino e, nesse caso, nem tanto à sua interpretação contida. “Meu personagem não poderia sobressair tanto porque é todo um grupo que sofre as mesmas consequências e se desespera. Éramos um conjunto.” De todo modo, mais uma vez se apresentava a ela uma história de contornos desconfortáveis, a exemplo de tantas outras anteriores. “Pode parecer assim ao público, mas para um ator os lugares não confortáveis são precisamente os melhores para se estar.”

Ninguém duvidará quando repassar a folha corrida de contribuições da atriz a tramas que não buscam a simpatia imediata do espectador. Um de seus primeiros filmes a que temos acesso, responsável por prêmios de atriz revelação, é Um Amor Tão Frágil, direção do suíço Claude Goretta, em 1977, lançado em DVD pela Lume Filmes há um ano. Pouco permite supor na cabeleireira de Paris em viagem a um balneário, onde conhecerá um jovem rico e -intelectual, o traço da radicalidade ainda por vir. Mas além do talento visível, a condição modesta e de inferioridade de Beatrice, que a faz se aniquilar como pessoa de fato, oferece a Huppert a oportunidade de criar um contraste com o aprendizado que a personagem experimentará.

Quem sabe foi esse desprendimento com as regras sociais sugerido no filme que Chabrol enxergou ao convidá-la para Violeta Nozière no ano seguinte, inaugurando o duradouro casamento artístico. A adolescente que na Paris dos anos 1930 se entrega a vários homens como escape antecipava a moral relativa da esposa e mãe que praticava abortos para sobreviver em Um Assunto de Mulheres. Chabrol dramatizava a vida da última mulher condenada à guilhotina na França. A partir daí teria início uma vertente de filmes de suspense com o recorrente conflito de classes sociais que interessava ao diretor francês, de Mulheres Diabólicas a A Teia de Chocolate.

A essa altura, Michael Haneke surgiu para mostrar que personalidades -doentias não eram exclusividade do colega fundador da Nouvelle Vague. Com A Professora de Piano, Huppert renovou sua disposição para figuras controversas. Ela não as enxerga dessa forma. “São as pessoas mais interessantes a se estudar, a se tentar compreender em -suas zonas sombrias, que todos temos em algum grau. Para um ator, se não há um confronto com as ideias, os pensamentos já estabelecidos, não tem graça.”

A atriz rechaça também a ideia de certa natureza espontânea com o trabalho de preparação para um papel. “Quando não é possível se ater a elementos reais, uma notícia, um depoimento, lança-se mão de algo aproximado.” É o caso, ela exemplifica, de sua Thèrése Bourgoine, de Captive. Enquanto filmava nas selvas filipinas, sem saber o roteiro do dia seguinte conforme determinação de Mendoza, ela lia o livro de memórias de Ingrid Betancourt, a senadora colombiana prisioneira das Farc entre 2002 e 2008. “Não há muitas maneiras de saber a pressão que uma pessoa sequestrada passa.” Diz não ser caso pensado a expectativa criada em torno de seus trabalhos quando se exercita com variado grau de maldade, e diverte-se ao ser lembrada como é difícil não convir que sua mãe em Copacabana faz por merecer o desprezo da filha e a raiva dos colegas de trabalho.

É seu mais recente filme exibido no Brasil e integrou uma seção paralela do Festival de Cannes em 2011, assim como My Little Princess, drama autobiográfico da diretora estreante Eva Ionesco, que deu o que falar na França. Mais uma vez, Huppert estava no centro da polêmica no papel de uma mãe que faz fotos pornográficas da filha adolescente para vendê-las. Ela renova-se com sangue de realizadores debutantes, mas considera inevitável que a essa altura a vejam por outro prisma que não aquele referido há 20 anos por Chabrol. Diz não se importar. A vaidade também lhe convém.

Sobre sua predileção em trabalhar com Isabelle Huppert, o cineasta francês Claude Chabrol certa vez pontuou uma definição jocosa: “Sua maldade me convém”. Referia-se a uma postura sempre disposta da intérprete em assumir no cinema mulheres de personalidade de alguma maneira conturbada. Chabrol morreu em 2010, o que deu fim a uma parceria de longa data com a atriz, mas a fama prevalece. Outros diretores, poucos, também consumaram uma preferência, caso do alemão Michael Haneke. Huppert acaba de completar seu terceiro filme com ele, Amour. Ela não acredita, porém, que se repetirá a condição fetichista entre um realizador e sua musa como aconteceu com Chabrol. “Eu nunca soube por que ele me amava, mas sei que era assim. Ele me deu várias demonstrações disso com seus filmes”, disse num discurso emocionado durante homenagens no funeral do diretor.

Huppert, 58 anos, desde então cumpre uma rara trajetória de renovação de carreira com filiação a diretores novatos ou em ascensão. O desafio não ocorre propriamente pela escolha do nome, mas se o projeto a impulsiona a algum território de sua vocação que ela desconhece. Foi assim recentemente com Hong Sang-soo, nome do novo cinema coreano já efetivado por prêmios nos principais festivais internacionais. É o caso ainda de Brillante Mendoza, o filipino que tem frequentado com assiduidade Cannes, Veneza e Berlim. Na edição atual desse último, de número 62, encerrado dia 19, ele apresentou Captive, protagonizado pela francesa. Diretor e atriz se conheceram durante o Festival de Cannes, quando Mendoza foi premiado por Kinatay, mas ele a convidou para o filme em São Paulo, durante sua retrospectiva.

Em ambos os projetos, Huppert atende ao perfil de uma estrangeira obrigada a lidar com um universo local. Em Mendoza, ela testa seus limites como a missionária cristã raptada juntamente com um grupo de turistas nas Filipinas pela facção muçulmana radical Abu Sayyaf. A esse episódio real que a partir de 2001 perdurou por quase um ano nas selvas do país, a atriz confere ao personagem coragem e uma boa dose de adaptação para sobreviver.

Conhecia os filmes mais recentes de Mendoza, como Kinatay e Lola, e sabia da condição fundamental das mulheres em seus filmes”, aponta a CartaCapital na entrevista que reuniu um grupo de jornalistas durante a Berlinale. “Minha escolha foi mais em trabalhar com ele do que pelo papel.” A explicação confere mais força ao meio habitualmente sombrio e brutal da cinematografia do filipino e, nesse caso, nem tanto à sua interpretação contida. “Meu personagem não poderia sobressair tanto porque é todo um grupo que sofre as mesmas consequências e se desespera. Éramos um conjunto.” De todo modo, mais uma vez se apresentava a ela uma história de contornos desconfortáveis, a exemplo de tantas outras anteriores. “Pode parecer assim ao público, mas para um ator os lugares não confortáveis são precisamente os melhores para se estar.”

Ninguém duvidará quando repassar a folha corrida de contribuições da atriz a tramas que não buscam a simpatia imediata do espectador. Um de seus primeiros filmes a que temos acesso, responsável por prêmios de atriz revelação, é Um Amor Tão Frágil, direção do suíço Claude Goretta, em 1977, lançado em DVD pela Lume Filmes há um ano. Pouco permite supor na cabeleireira de Paris em viagem a um balneário, onde conhecerá um jovem rico e -intelectual, o traço da radicalidade ainda por vir. Mas além do talento visível, a condição modesta e de inferioridade de Beatrice, que a faz se aniquilar como pessoa de fato, oferece a Huppert a oportunidade de criar um contraste com o aprendizado que a personagem experimentará.

Quem sabe foi esse desprendimento com as regras sociais sugerido no filme que Chabrol enxergou ao convidá-la para Violeta Nozière no ano seguinte, inaugurando o duradouro casamento artístico. A adolescente que na Paris dos anos 1930 se entrega a vários homens como escape antecipava a moral relativa da esposa e mãe que praticava abortos para sobreviver em Um Assunto de Mulheres. Chabrol dramatizava a vida da última mulher condenada à guilhotina na França. A partir daí teria início uma vertente de filmes de suspense com o recorrente conflito de classes sociais que interessava ao diretor francês, de Mulheres Diabólicas a A Teia de Chocolate.

A essa altura, Michael Haneke surgiu para mostrar que personalidades -doentias não eram exclusividade do colega fundador da Nouvelle Vague. Com A Professora de Piano, Huppert renovou sua disposição para figuras controversas. Ela não as enxerga dessa forma. “São as pessoas mais interessantes a se estudar, a se tentar compreender em -suas zonas sombrias, que todos temos em algum grau. Para um ator, se não há um confronto com as ideias, os pensamentos já estabelecidos, não tem graça.”

A atriz rechaça também a ideia de certa natureza espontânea com o trabalho de preparação para um papel. “Quando não é possível se ater a elementos reais, uma notícia, um depoimento, lança-se mão de algo aproximado.” É o caso, ela exemplifica, de sua Thèrése Bourgoine, de Captive. Enquanto filmava nas selvas filipinas, sem saber o roteiro do dia seguinte conforme determinação de Mendoza, ela lia o livro de memórias de Ingrid Betancourt, a senadora colombiana prisioneira das Farc entre 2002 e 2008. “Não há muitas maneiras de saber a pressão que uma pessoa sequestrada passa.” Diz não ser caso pensado a expectativa criada em torno de seus trabalhos quando se exercita com variado grau de maldade, e diverte-se ao ser lembrada como é difícil não convir que sua mãe em Copacabana faz por merecer o desprezo da filha e a raiva dos colegas de trabalho.

É seu mais recente filme exibido no Brasil e integrou uma seção paralela do Festival de Cannes em 2011, assim como My Little Princess, drama autobiográfico da diretora estreante Eva Ionesco, que deu o que falar na França. Mais uma vez, Huppert estava no centro da polêmica no papel de uma mãe que faz fotos pornográficas da filha adolescente para vendê-las. Ela renova-se com sangue de realizadores debutantes, mas considera inevitável que a essa altura a vejam por outro prisma que não aquele referido há 20 anos por Chabrol. Diz não se importar. A vaidade também lhe convém.

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