Cultura

A origem dos poderosos

Documentários desvendam a força de heróis criadores de quadrinhos

Origens. O Gato do Rabino, olhar amoroso de Sfar
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Houve um tempo em que gato e rato eram os rivais ingênuos do imaginário popular propagado pela tevê e pelos quadrinhos. Então veio Art Spiegelman e os recolocou sob a sombra do totalitarismo, numa interpretação condizente com o instinto natural dos animais. Menos lúgubre, mas eficaz na defesa da convivência de pensamentos, Joann Sfar tomou apenas o felino e o fez símbolo do questionamento, da crítica debochada e inteligência filosófica. Souberam, dessa forma, dar ao público uma revisão atemporal justa no momento certo, talvez uma das poucas condições em comum com um colega de geração anterior. A Stan Lee coube atender uma nação sedenta de heróis em período de guerra. Logrou mais, os super-heróis. Assim como os outros, o fez a partir de suas origens.

Esse contexto se torna revelador ao assistir a quatro documentários reunidos no 16º Festival de Cinema Judaico, que acontece em São Paulo entre 6 e 12 de agosto. Nos depoimentos dos três profissionais dos quadrinhos é sintomática a referência ao tempo da infância e, no caso do americano nascido na Suécia Spiegelman e do francês de origem argelina Sfar, a convivência com a história da família de forte vínculo com o judaísmo. Para registrar o personagem, o filme Joann Sfar – Desenhos da Memória, de Sam Ball , aborda o desenhista em Nice, onde parte do clã se radicou ao deixar a Argélia. Filho de mãe ucraniana de tradição asquenaze e pai sefaradita, o autor não poderia passar incólume às influências e usou o humor característico judeu da primeira em Professor Belle e do segundo em O Gato do Rabino.

Trata-se de um dos trabalhos mais populares e premiados de Sfar, que dirigiu no cinema Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres. O Gato do Rabino, publicado em cinco volumes entre 2002 e 2006, também tornou-se um longa animado que integra o festival e tem estreia em circuito prevista para 24 de agosto, com cópias em 3D. Adaptada por ele e Antoine Deslevaux, a história sintetiza em muito o universo familiar e a temática predileta do francês a partir do protagonista do título que engole um papagaio e põe-se a falar, expressando sua vontade de conversão ao judaísmo. Estamos na Casbah da capital argelina, a cidadela onde vive o rabino Sfar, referência ao avô culto e estudioso de religião do cartunista, e sua filha. Na proposta de discutir a convivência possível entre diferentes credos, irão se juntar ao núcleo personagens adeptos do cristianismo, muçulmanos, sufistas e um pintor russo fugido de um pogrom que remete a Marc Chagall, influência assumida de Sfar.

Todos observados pelo irreverente gato, que os acompanhará numa viagem em busca de uma hipotética Jerusalém negra, expediente de descoberta utilizado pelo autor também em Klezmer, outra de suas famosas séries. Numa citação da própria escrita para O Gato do Rabino, Sfar expõe sua escolha. “Os judeus preferem os gatos porque cansaram de ser perseguidos por tanto tempo; cachorros vão correr atrás de você, latir e te morder”, escreve, para então complementar no depoimento. “Me disseram que O Gato do Rabino é minha maneira de criticar a religião sem ferir meu pai; é um pouco verdade, pois quis olhar essa origem de modo crítico e amoroso.”

À maneira também de um relato familiar do passado, Spiegelman fez uma revisão de vida e histórica ao buscar as memórias do pai, sobrevivente do Holocausto, e retratar o desespero dele, da mulher e dos irmãos em Maus. “Eu nunca pensei que ele estivesse disposto a lembrar tudo, mas começamos a conversar e depois de muitos encontros num parque perto de casa o livro ganhava formato”, relembra no documentário A Arte de Spiegelman, de Clara Kuperberg e Joelle Oosterlinck.

Publicada entre 1980 e 1991 na antologia em forma de revista Raw, a série foi a primeira do gênero de quadrinhos a vencer o Prêmio Pulitzer. Mais do que o reconhecimento, Maus provocou uma renovação no universo pelo conteúdo sombrio e especialmente por contar com gatos na representação dos nazistas e ratos como judeus.

O que depreendemos da conversa no filme é que não apenas em Maus Spiegelman se debruça sobre seus acertos com as passagens trágicas da família, a exemplo de um irmão envenenado por uma tia para evitar o campo de concentração e as complexas relações com o pai e a morte da mãe, também sobrevivente do extermínio nazista. Esta se suicidou em 1968, quando o filho tinha 20 anos. Sofria de problemas nervosos, mesma condição que atingiria anos depois o cartunista.

Em um de seus primeiros trabalhos, publicado quando baseado em Nova York, Spiegelman tratou do tema. Breakdowns surgiu em 1977 em parceria com a mulher, Françoise Mouly, editora de arte na revista The New Yorker. Nesse aspecto do impacto do passado familiar o autor se aproxima de seu colega Robert Crumb, com quem dividiu o cenário nos anos 1960 e 1970 das publicações alternativas em São Francisco.

Sfar e Spiegelman confrontam o mesmo tema por abordagens distintas, o primeiro mais leve, fazendo uso do humor judaico, o outro soturno. Mas dessa fonte de origens familiar e religiosa não há referência evidente em Stan Lee – Mutantes, Monstros e Quadrinhos, o documentário de Scott Zakarin que tem o diretor Kevin Smith como anfitrião. O diretor de O Balconista é a primeira evidência de que estamos num bate-papo entre fã e o ídolo Stanley Martin Lieber, ou Stan Lee.

O filme é de 2002, momento no qual uma de suas maiores criações em parceria, Homem-Aranha, estreava na primeira adaptação ao cinema. O super-herói merece atenção e descrição mais detalhada na primeira parte, de como o editor Lee imaginou-o a partir de um personagem detetive chamado O Aranha, popular na época, e contou com a colaboração do autor de quadrinhos e desenhista Steve Ditko para dar-lhe a forma final. “Queria evitar o personagem que voava ou pulava entre prédios e a ideia da teia que se gruda e sustenta o herói foi perfeita”, lembra.

Homem-Aranha estreou em 1962 nos álbuns Amazing Fantasy, quando Lee já tinha a carreira engrossada por outras criações. A primeira foi Capitão América duas décadas antes ainda na Timely Comics, futura Marvel, e dá noção dos interesses do jovem de 18 anos, nova-iorquino filho de judeus romenos. Lee servia no Exército, onde acabou por cuidar de textos e publicações, nas quais desenhava, habilidade apoiada por um tio. “Queria ser um herói, me via ganhando guerras e por isso me alistei”, brinca.

Houve um tempo em que gato e rato eram os rivais ingênuos do imaginário popular propagado pela tevê e pelos quadrinhos. Então veio Art Spiegelman e os recolocou sob a sombra do totalitarismo, numa interpretação condizente com o instinto natural dos animais. Menos lúgubre, mas eficaz na defesa da convivência de pensamentos, Joann Sfar tomou apenas o felino e o fez símbolo do questionamento, da crítica debochada e inteligência filosófica. Souberam, dessa forma, dar ao público uma revisão atemporal justa no momento certo, talvez uma das poucas condições em comum com um colega de geração anterior. A Stan Lee coube atender uma nação sedenta de heróis em período de guerra. Logrou mais, os super-heróis. Assim como os outros, o fez a partir de suas origens.

Esse contexto se torna revelador ao assistir a quatro documentários reunidos no 16º Festival de Cinema Judaico, que acontece em São Paulo entre 6 e 12 de agosto. Nos depoimentos dos três profissionais dos quadrinhos é sintomática a referência ao tempo da infância e, no caso do americano nascido na Suécia Spiegelman e do francês de origem argelina Sfar, a convivência com a história da família de forte vínculo com o judaísmo. Para registrar o personagem, o filme Joann Sfar – Desenhos da Memória, de Sam Ball , aborda o desenhista em Nice, onde parte do clã se radicou ao deixar a Argélia. Filho de mãe ucraniana de tradição asquenaze e pai sefaradita, o autor não poderia passar incólume às influências e usou o humor característico judeu da primeira em Professor Belle e do segundo em O Gato do Rabino.

Trata-se de um dos trabalhos mais populares e premiados de Sfar, que dirigiu no cinema Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres. O Gato do Rabino, publicado em cinco volumes entre 2002 e 2006, também tornou-se um longa animado que integra o festival e tem estreia em circuito prevista para 24 de agosto, com cópias em 3D. Adaptada por ele e Antoine Deslevaux, a história sintetiza em muito o universo familiar e a temática predileta do francês a partir do protagonista do título que engole um papagaio e põe-se a falar, expressando sua vontade de conversão ao judaísmo. Estamos na Casbah da capital argelina, a cidadela onde vive o rabino Sfar, referência ao avô culto e estudioso de religião do cartunista, e sua filha. Na proposta de discutir a convivência possível entre diferentes credos, irão se juntar ao núcleo personagens adeptos do cristianismo, muçulmanos, sufistas e um pintor russo fugido de um pogrom que remete a Marc Chagall, influência assumida de Sfar.

Todos observados pelo irreverente gato, que os acompanhará numa viagem em busca de uma hipotética Jerusalém negra, expediente de descoberta utilizado pelo autor também em Klezmer, outra de suas famosas séries. Numa citação da própria escrita para O Gato do Rabino, Sfar expõe sua escolha. “Os judeus preferem os gatos porque cansaram de ser perseguidos por tanto tempo; cachorros vão correr atrás de você, latir e te morder”, escreve, para então complementar no depoimento. “Me disseram que O Gato do Rabino é minha maneira de criticar a religião sem ferir meu pai; é um pouco verdade, pois quis olhar essa origem de modo crítico e amoroso.”

À maneira também de um relato familiar do passado, Spiegelman fez uma revisão de vida e histórica ao buscar as memórias do pai, sobrevivente do Holocausto, e retratar o desespero dele, da mulher e dos irmãos em Maus. “Eu nunca pensei que ele estivesse disposto a lembrar tudo, mas começamos a conversar e depois de muitos encontros num parque perto de casa o livro ganhava formato”, relembra no documentário A Arte de Spiegelman, de Clara Kuperberg e Joelle Oosterlinck.

Publicada entre 1980 e 1991 na antologia em forma de revista Raw, a série foi a primeira do gênero de quadrinhos a vencer o Prêmio Pulitzer. Mais do que o reconhecimento, Maus provocou uma renovação no universo pelo conteúdo sombrio e especialmente por contar com gatos na representação dos nazistas e ratos como judeus.

O que depreendemos da conversa no filme é que não apenas em Maus Spiegelman se debruça sobre seus acertos com as passagens trágicas da família, a exemplo de um irmão envenenado por uma tia para evitar o campo de concentração e as complexas relações com o pai e a morte da mãe, também sobrevivente do extermínio nazista. Esta se suicidou em 1968, quando o filho tinha 20 anos. Sofria de problemas nervosos, mesma condição que atingiria anos depois o cartunista.

Em um de seus primeiros trabalhos, publicado quando baseado em Nova York, Spiegelman tratou do tema. Breakdowns surgiu em 1977 em parceria com a mulher, Françoise Mouly, editora de arte na revista The New Yorker. Nesse aspecto do impacto do passado familiar o autor se aproxima de seu colega Robert Crumb, com quem dividiu o cenário nos anos 1960 e 1970 das publicações alternativas em São Francisco.

Sfar e Spiegelman confrontam o mesmo tema por abordagens distintas, o primeiro mais leve, fazendo uso do humor judaico, o outro soturno. Mas dessa fonte de origens familiar e religiosa não há referência evidente em Stan Lee – Mutantes, Monstros e Quadrinhos, o documentário de Scott Zakarin que tem o diretor Kevin Smith como anfitrião. O diretor de O Balconista é a primeira evidência de que estamos num bate-papo entre fã e o ídolo Stanley Martin Lieber, ou Stan Lee.

O filme é de 2002, momento no qual uma de suas maiores criações em parceria, Homem-Aranha, estreava na primeira adaptação ao cinema. O super-herói merece atenção e descrição mais detalhada na primeira parte, de como o editor Lee imaginou-o a partir de um personagem detetive chamado O Aranha, popular na época, e contou com a colaboração do autor de quadrinhos e desenhista Steve Ditko para dar-lhe a forma final. “Queria evitar o personagem que voava ou pulava entre prédios e a ideia da teia que se gruda e sustenta o herói foi perfeita”, lembra.

Homem-Aranha estreou em 1962 nos álbuns Amazing Fantasy, quando Lee já tinha a carreira engrossada por outras criações. A primeira foi Capitão América duas décadas antes ainda na Timely Comics, futura Marvel, e dá noção dos interesses do jovem de 18 anos, nova-iorquino filho de judeus romenos. Lee servia no Exército, onde acabou por cuidar de textos e publicações, nas quais desenhava, habilidade apoiada por um tio. “Queria ser um herói, me via ganhando guerras e por isso me alistei”, brinca.

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