Cultura

A fugidia intenção

Releia uma das últimas entrevistas concedidas pelo ator gaúcho em perfil publicado em outubro de 2012

Apoie Siga-nos no

 

O ator Walmor Chagas, morto na última sexta-feira, aos 82 anos, foi personagem de reportagem da edição 720 de CartaCapital. Releia o perfil do ator gaúcho, em uma de suas últimas entrevistas, publicado em outubro de 2012.

 


Walmor Chagas era um ator em início de carreira quando na saída do teatro foi abordado por uma cigana que sem solicitação ou constrangimento vaticinou: ele não passaria dos 35 anos. Até os 36 viveu na certeza do fim iminente. Vencido o prazo de validade da canhestra profecia, abriu uma garrafa de champanhe e celebrou. Transcorridos 44 anos do episódio, Walmor vive “uma boa solidão”, cercado pela natureza e bem distante do mundo de narcisos com o qual conviveu.

Há quase 20 anos ele se retirou para sua montanha mágica, de onde divisa o soberano relevo da Mantiqueira, escolha que atribui a um romantismo ao estilo do jovem Werther de Goethe e à gradativa intolerância ao ambiente por ele avaliado como hipócrita. “Não há amigos entre artistas”, assevera, de forma inapelável. “Os atores são tão egocêntricos que não podem gostar de ninguém. Eu não aguento. É uma classe horrorosa.”

Movido por uma sinceridade intrínseca que ganha o beneplácito de oito décadas de vida, Walmor não poupa ninguém. Nem a si. “Eu ajudei a americanizar o Brasil com o teatro”, diz, ao esquadrinhar o passado. “Não gostávamos dos autores nacionais. No último encontro que tive com Paulo Autran perguntei: ‘Você nunca fez Nelson Rodrigues?’ Ele disse ‘não, não gosto’. Eu também não. É grotesco, caricatural, não tem as sutilezas dos autores que estávamos acostumados a representar. São personagens movidos por primitivismo e isso para quem está habituado a interpretar Eugene O’Neill, Anton Chekcov, não tem graça.”

Walmor tinha 18 anos quando descobriu que precisava se exibir para justificar sua existência. Ele integrava o elenco de Antígone (adaptação de Jean Anouilh da peça de Sófocles), encenada em 1948 pelo Teatro do Estudante, em Porto Alegre, quando experienciou uma epifania. “Ao me ver no palco, aplaudido, entendi que era aquilo o que eu queria.”

Até os 40 anos Walmor viveu de e para o teatro. Gata em Teto de Zinco Quente, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, A Noite do Iguana, Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite. “Eu papei todos os grandes autores americanos”, enfatiza. Foi na montagem de Gata em Teto de Zinco Quente que ele e Cacilda Becker se enamoraram. Trabalhavam juntos, se conheciam bem, e de repente tudo mudou. “Quando se admira uma pessoa, já amamos essa pessoa. E nós nos admirávamos muito.”

Sentados na cama que serve de cenário ao drama de Tennessee Williams, ambos matavam o tempo no intervalo para o próximo espetáculo quando o toque entre as mãos se deu de forma diferente. Ficaram juntos 12 anos, “um período fundamental em nossas vidas”, tiveram uma filha, a cantora Clara Becker, até o trágico desfecho, em 1969. Entre o primeiro e o segundo ato de Esperando Godot, Cacilda sentiu-se mal. A atriz de 38 anos julgou que sofria um derrame. Era um aneurisma. Por 39 dias ficou inerte na cama do hospital, em coma. “Ela nunca mais voltou.”

A parceria que viveu com Cacilda na profissão e na vida jamais se repetiria. “Entrega só houve com ela. Cheguei a dividir casa com Lilian Lemmertz. Minha filha Clara e a dela, Julinha, eram pequenas e tinham necessidade de pai e mãe. Durou seis meses, a amizade permaneceu.”

A imensa dor da perda de Cacilda foi suportada sem o lenitivo de crença alguma. “Sou ateu. Li Jean-Paul Sartre e estudei em colégio de padres. Os sacerdotes têm esse poder de nos afastar da religião”, diz Walmor, sorriso a iluminar o semblante de linhas fortes e harmoniosas que tantas vezes emprestou aos papéis de galã. “Deus é uma coisa muito perigosa”, pontifica, o vozeirão a invadir a casa cuja varanda envidraçada emoldura seu mundo matizado de verde. A seus pés, Jade, a vira-lata, quase acorda do sono vespertino. Os bóxers Fred (Astaire) e Frida (Khalo) nem se abalam.

Homem de teatro, onde acredita se dê a verdadeira formação profissional e espaço em que o ator é dono de sua arte, em 1953 se uniu a Ítalo Rossi, Rubens de Falco e Carla Civelli e fundou o Teatro das Segundas-Feiras. Pouco depois o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) se interessou pelo intérprete recém-chegado de Porto Alegre. “Ziembinski me ofereceu um papel de figurante, que recusei. Três meses depois Adolfo Celi me chamou para um papel bom e minha carreira deslanchou.”

O ator e diretor polonês Zbigniew Ziembinski foi sua grande influência artística. “Ele mudou a arte de interpretar no Brasil ao trazer o método Stanislavski, que nos instigava a pensar antes de falar. Isso modificou tudo, criou-se uma psicanálise, nos associamos a Freud. Por isso o teatro não pode morrer, é saúde mental”, defende, embalado pelo entusiasmo dos grandes textos.


Entre as preferências cita Leon Tolstoi, Thomas Mann, Marcel Proust, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Honoré de Balzac, Henrik Ibsen, Machado de Assis, que interpretou no teatro (“no Brasil ninguém sabe que ele também escreveu peças”), e Fernando Pessoa (“li tanto que tenho tudo na cabeça”). Não gosta de José Saramago nem de João Ubaldo Ribeiro por uma questão de estilo. “Eles têm tanta facilidade que em vez de três escrevem 333 páginas para dizer a mesma coisa.”

Da dramaturgia atual nada interessa a Walmor. “O teatro está completamente sem graça, americanizado e despolitizado. Essa onda de musicais é um horror, não tem nada que ver com a gente, é uma coisa de opereta, é problema deles.”

De 1970 em diante, quando decidiu migrar para a tevê para ganhar dinheiro, o prazer com a atuação em novelas e minisséries passou a ter data: fim do mês, junto com o contracheque. “Televisão não é veículo, é um eletrodoméstico”, parafraseia Federico Fellini. Investiu tudo o que ganhou na construção de um teatro, Ziembinski, alugado para a Prefeitura do Rio de Janeiro por 3,4 mil reais mensais. Após 60 anos de trabalho, Walmor recebe 1,4 mil reais de aposentadoria.

Dos papéis no cinema, considera seu melhor o de protagonista em São Paulo, Sociedade Anônima (1965), clássico de Luís Sérgio Person. “Foi meu primeiro e mais importante filme.” Em cartaz no cinema, Walmor pode ser visto em Cara ou Coroa, de Ugo Giorgetti, no papel do general aposentado cuja neta acolhe dois “subversivos” no porão de casa, nos tempos ­plúmbeos da ditadura. “O personagem é um militar reformado que sabe muito bem o que está acontecendo, mas não tem mais condições de interferir. Tem uma ambiguidade.”

Coerente, o homem que não esperava viver além dos 30 não espera chegar aos 90. “Ficar velho é uma porcaria. O corpo se deteriora como uma carcaça de carro, é chatíssimo. Não tenho medo de morrer. Toda noite penso que se for a última está tudo bem.” Ouvido assim pode parecer que Walmor dê tudo por acabado. “Ainda não fiz coisas grandes”, diz, o advérbio a entregar a fugidia intenção. “A graça da vida da gente é atuar para aguentar tudo.”

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo