Cultura

A alma da música brasileira

Um projeto multimídia na internet abriga a obra completa de Ernesto Nazareth, com peças inéditas e raridades

Criador inspirado e exímio na técnica, Nazareth fazia a ponte entre o erudito e o popular. Foto: Acervo pessoal de Alexandre Dias
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Sempre que os Monteiro decidiam dar uma festa em seu palacete na Rua Mata Cavalos, no Rio de Janeiro, contratavam uma pequena orquestra. Num desses costumeiros bailes, o pianista habitual adoeceu. Ao notar o substituto, muito retraído, a dona da casa quis saber de quem se tratava. Era Ernesto Nazareth. O talento do jovem impressionou de tal forma que passou a ser ele o eleito para animar os famosos saraus. Frequentador habitual dos encontros literários também ali promovidos, um taciturno senhor sempre que podia se achegava ao pianista e lhe pedia que tocasse algo de Schumann. Logo que a melodia invadia a sala, cruzava as pernas e punha-se a sacudir o pé. Não no compasso da música, mas a indicar uma emoção raramente nele exibida. O convidado que rivalizava com Nazareth na timidez se chamava Machado de Assis.

A deliciosa história, narrada por Célio Monteiro, neto da dama do palacete, em carta até agora inédita, é uma das preciosidades a que o público passa a ter acesso com o lançamento do site www.ernestonazareth150anos.com.br. Iniciativa do Instituto Moreira Salles, guardião do acervo do músico, o endereço na internet -propõe-se a ser um alicerce para quem busca saber mais sobre o compositor, que na definição de Heitor Villa-Lobos foi a verdadeira encarnação da alma musical brasileira.

Nos bastidores dessa empreitada musical estão três apaixonados pelo personagem nascido em 1863 no Morro do Nheco, hoje o bairro carioca de São Cristóvão. Especialista na obra de Ernesto Nazareth e coordenador do site, o pianista e pesquisador Alexandre Dias acredita que o compositor ainda precisa ser descoberto pelo grande público. “Todo mundo conhece Odeon, mas nem todos sabem quem é o autor.” Para Paulo Aragão, violonista, arranjador e idealizador do portal, trata-se da chance de reunir toda a obra de Nazareth. “Nos espanta ainda haver composições inéditas, completamente esquecidas, algumas jamais gravadas. Vamos oferecer a obra original, acesso às 211 partituras, na versão melodia e cifra, para consulta e down-load. Um só lugar reunirá manuscritos, informações biográficas, textos exclusivos sobre cada composição e documentos. Todas as gravações de obras de Nazareth já feitas no mundo estarão disponíveis.”

Bia Paes Leme, coordenadora do acervo musical do Instituto Moreira Salles, frisa que o portal, que conta com a parceria do endereço www.musicabrasilis.org.br, iniciativa da cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, já parte de um rico material. Mas amplia a iniciativa. “Queremos incentivar o intercâmbio, ser um lugar em que tanto o músico quanto o curioso se sintam à vontade. Vimos concebendo esse sonho há tempos e por isso resolvemos antecipar o lançamento do sesquicentenário. É nossa contagem regressiva.”

O terceiro “pai” do portal é Luiz Antonio de Almeida, há 36 anos a se debruçar sobre seu personagem. Na gaveta, tem pronta Ernesto Nazareth, Vida e Obra, alentada biografia à espera de editora. Almeida -ocupa lugar privilegiado entre os “devotos” de Nazareth: é herdeiro honorário do acervo de seu biografado. Seu interesse pelo compositor brotou ao acompanhar pela tevê, nos anos 1970, a trajetória da pianista Eudóxia de Barros num concurso de perguntas sobre o compositor. “Foi o canto da sereia. Me identifiquei muito com aquela música, fui atrás de partituras e comecei a pesquisar.” Em 1976, numa visita ao Museu da Imagem e do Som, no Rio, conheceu a figura que lhe abriria muitos caminhos: Almirante, compositor, cantor, radialista e preservador da memória musical brasileira.

Nos anos 1980, Almeida tornou-se amigo de Diniz, um dos quatro filhos que Nazareth teve com Theodora Amália Leal de Meirelles (os outros foram Eulina, Maria de Lourdes e Ernestinho). “Quando o conheci, Diniz tinha 90 anos. Ele e Julita, sobrinha do compositor, moravam num subúrbio do Rio. Após a morte de Diniz, e na ausência de netos, ela me nomeou herdeiro de todo o acervo.” O pesquisador ficou responsável por imagens, documentos, manuscritos e objetos, entre os quais o piano em que Nazareth compôs Brejeiro e Apanhei-te Cavaquinho.

Para o estudioso, um dos grandes méritos de Nazareth é transitar tão bem entre o clássico e o popular. Alexandre Dias concorda e complementa: “Ele é um criador de melodias inspiradíssimas, técnica composicional apurada e músicas muito bem acabadas do ponto de vista pianístico. Nazareth explorava o potencial do instrumento de maneira excepcional. Uma dádiva para os pianistas”.

Exímio leitor de partituras e grande intérprete, o filho do despachante aduaneiro Vasco Lourenço da Silva Nazareth e de Carolina Augusta da Cunha Nazareth compôs sua primeira peça aos 14 anos, Você Bem Sabe, uma polca-lundu. Em seguida veio a polca Não Caio noutra. As mãos grandes a lhe favorecer o ofício paradoxalmente imprimiam um toque suave às teclas. Admirador de seu grande talento, Villa-Lobos dedicou ao amigo o Choro Número 1. Em retribuição, ganhou Improviso, um estudo de concerto. A amizade uniu os músicos nos palcos diversas vezes. Em 1917, tocaram juntos no Cine Odeon, onde tantas vezes o compositor encantara a elegante clientela. Coube a Villa-Lobos a última homenagem, na missa de sétimo dia de Nazareth, morto aos 70 anos em condições trágicas nunca plenamente esclarecidas. Com a sanidade mental abalada por causa de sífilis, fugiu da Colônia Juliano Moreira e morreu afogado numa represa.

A grandiosidade de Nazareth não passou despercebida a Mário de Andrade, para quem sua obra se tornara tão familiar que as pessoas se referiam a ele quase como um parente distante. Numa época de efervescência de ritmos importados, o músico que ensinava a tocar Chopin e Beethoven dobrou-se a gêneros da moda como polcas, valsas e tangos. Mas sua refinada palheta musical ia além. “Nazareth gostava de considerar suas peças desafios a ser vencidos pelos pianistas”, pontua Dias. Muito antes de o tango virar mito na Argentina, Nazareth compunha tangos brasileiros (em torno de 90 entre suas 211 composições), mais para o final de sua vida chamados de choro. “Ele e Chiquinha Gonzaga são pioneiros nesse estilo, até que um grande mestre como Pixinguinha vem e dá o ponto final ao definir o gênero”, analisa Almeida.

O Nazareth cultuador de Chopin e gênio da alquimia musical remete ao personagem do conto machadiano Um Homem Célebre, em que um compositor de polcas buliçosas sonha com o reconhecimento nos salões de concerto. Mas nosso homem célebre frequentou com igual prestígio tanto as lojas em que demonstrava pianos quanto ambientes de culto à música clássica, como o Teatro Municipal de São Paulo, onde tocou como convidado, em 1926. “Nazareth não caiu na perdição de Pestana (o personagem do conto), transcendeu isso. Ele tinha talento para compor o que quisesse, peças eruditas de autêntico valor”, afirma Dias.

Entre cobras e lagartos

Sempre que os Monteiro decidiam dar uma festa em seu palacete na Rua Mata Cavalos, no Rio de Janeiro, contratavam uma pequena orquestra. Num desses costumeiros bailes, o pianista habitual adoeceu. Ao notar o substituto, muito retraído, a dona da casa quis saber de quem se tratava. Era Ernesto Nazareth. O talento do jovem impressionou de tal forma que passou a ser ele o eleito para animar os famosos saraus. Frequentador habitual dos encontros literários também ali promovidos, um taciturno senhor sempre que podia se achegava ao pianista e lhe pedia que tocasse algo de Schumann. Logo que a melodia invadia a sala, cruzava as pernas e punha-se a sacudir o pé. Não no compasso da música, mas a indicar uma emoção raramente nele exibida. O convidado que rivalizava com Nazareth na timidez se chamava Machado de Assis.

A deliciosa história, narrada por Célio Monteiro, neto da dama do palacete, em carta até agora inédita, é uma das preciosidades a que o público passa a ter acesso com o lançamento do site www.ernestonazareth150anos.com.br. Iniciativa do Instituto Moreira Salles, guardião do acervo do músico, o endereço na internet -propõe-se a ser um alicerce para quem busca saber mais sobre o compositor, que na definição de Heitor Villa-Lobos foi a verdadeira encarnação da alma musical brasileira.

Nos bastidores dessa empreitada musical estão três apaixonados pelo personagem nascido em 1863 no Morro do Nheco, hoje o bairro carioca de São Cristóvão. Especialista na obra de Ernesto Nazareth e coordenador do site, o pianista e pesquisador Alexandre Dias acredita que o compositor ainda precisa ser descoberto pelo grande público. “Todo mundo conhece Odeon, mas nem todos sabem quem é o autor.” Para Paulo Aragão, violonista, arranjador e idealizador do portal, trata-se da chance de reunir toda a obra de Nazareth. “Nos espanta ainda haver composições inéditas, completamente esquecidas, algumas jamais gravadas. Vamos oferecer a obra original, acesso às 211 partituras, na versão melodia e cifra, para consulta e down-load. Um só lugar reunirá manuscritos, informações biográficas, textos exclusivos sobre cada composição e documentos. Todas as gravações de obras de Nazareth já feitas no mundo estarão disponíveis.”

Bia Paes Leme, coordenadora do acervo musical do Instituto Moreira Salles, frisa que o portal, que conta com a parceria do endereço www.musicabrasilis.org.br, iniciativa da cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, já parte de um rico material. Mas amplia a iniciativa. “Queremos incentivar o intercâmbio, ser um lugar em que tanto o músico quanto o curioso se sintam à vontade. Vimos concebendo esse sonho há tempos e por isso resolvemos antecipar o lançamento do sesquicentenário. É nossa contagem regressiva.”

O terceiro “pai” do portal é Luiz Antonio de Almeida, há 36 anos a se debruçar sobre seu personagem. Na gaveta, tem pronta Ernesto Nazareth, Vida e Obra, alentada biografia à espera de editora. Almeida -ocupa lugar privilegiado entre os “devotos” de Nazareth: é herdeiro honorário do acervo de seu biografado. Seu interesse pelo compositor brotou ao acompanhar pela tevê, nos anos 1970, a trajetória da pianista Eudóxia de Barros num concurso de perguntas sobre o compositor. “Foi o canto da sereia. Me identifiquei muito com aquela música, fui atrás de partituras e comecei a pesquisar.” Em 1976, numa visita ao Museu da Imagem e do Som, no Rio, conheceu a figura que lhe abriria muitos caminhos: Almirante, compositor, cantor, radialista e preservador da memória musical brasileira.

Nos anos 1980, Almeida tornou-se amigo de Diniz, um dos quatro filhos que Nazareth teve com Theodora Amália Leal de Meirelles (os outros foram Eulina, Maria de Lourdes e Ernestinho). “Quando o conheci, Diniz tinha 90 anos. Ele e Julita, sobrinha do compositor, moravam num subúrbio do Rio. Após a morte de Diniz, e na ausência de netos, ela me nomeou herdeiro de todo o acervo.” O pesquisador ficou responsável por imagens, documentos, manuscritos e objetos, entre os quais o piano em que Nazareth compôs Brejeiro e Apanhei-te Cavaquinho.

Para o estudioso, um dos grandes méritos de Nazareth é transitar tão bem entre o clássico e o popular. Alexandre Dias concorda e complementa: “Ele é um criador de melodias inspiradíssimas, técnica composicional apurada e músicas muito bem acabadas do ponto de vista pianístico. Nazareth explorava o potencial do instrumento de maneira excepcional. Uma dádiva para os pianistas”.

Exímio leitor de partituras e grande intérprete, o filho do despachante aduaneiro Vasco Lourenço da Silva Nazareth e de Carolina Augusta da Cunha Nazareth compôs sua primeira peça aos 14 anos, Você Bem Sabe, uma polca-lundu. Em seguida veio a polca Não Caio noutra. As mãos grandes a lhe favorecer o ofício paradoxalmente imprimiam um toque suave às teclas. Admirador de seu grande talento, Villa-Lobos dedicou ao amigo o Choro Número 1. Em retribuição, ganhou Improviso, um estudo de concerto. A amizade uniu os músicos nos palcos diversas vezes. Em 1917, tocaram juntos no Cine Odeon, onde tantas vezes o compositor encantara a elegante clientela. Coube a Villa-Lobos a última homenagem, na missa de sétimo dia de Nazareth, morto aos 70 anos em condições trágicas nunca plenamente esclarecidas. Com a sanidade mental abalada por causa de sífilis, fugiu da Colônia Juliano Moreira e morreu afogado numa represa.

A grandiosidade de Nazareth não passou despercebida a Mário de Andrade, para quem sua obra se tornara tão familiar que as pessoas se referiam a ele quase como um parente distante. Numa época de efervescência de ritmos importados, o músico que ensinava a tocar Chopin e Beethoven dobrou-se a gêneros da moda como polcas, valsas e tangos. Mas sua refinada palheta musical ia além. “Nazareth gostava de considerar suas peças desafios a ser vencidos pelos pianistas”, pontua Dias. Muito antes de o tango virar mito na Argentina, Nazareth compunha tangos brasileiros (em torno de 90 entre suas 211 composições), mais para o final de sua vida chamados de choro. “Ele e Chiquinha Gonzaga são pioneiros nesse estilo, até que um grande mestre como Pixinguinha vem e dá o ponto final ao definir o gênero”, analisa Almeida.

O Nazareth cultuador de Chopin e gênio da alquimia musical remete ao personagem do conto machadiano Um Homem Célebre, em que um compositor de polcas buliçosas sonha com o reconhecimento nos salões de concerto. Mas nosso homem célebre frequentou com igual prestígio tanto as lojas em que demonstrava pianos quanto ambientes de culto à música clássica, como o Teatro Municipal de São Paulo, onde tocou como convidado, em 1926. “Nazareth não caiu na perdição de Pestana (o personagem do conto), transcendeu isso. Ele tinha talento para compor o que quisesse, peças eruditas de autêntico valor”, afirma Dias.

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