Vanguardas do Conhecimento

Previdência não serve para ajuste de curto prazo

O povo e sua economia sofrerão, mas militares continuarão privilegiados

Marcelo Caetano: ele seguiu a lógica do governo Temer
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As políticas públicas do governo Temer, por incrível que pareça, são bastante coerentes. O objetivo delas é muito claro: cortar despesas a qualquer custo, mas sem piorar a situação de grupos chaves para sua manutenção no poder, como instituições financeiras, outros plutocratas e militares.

A PEC 55, dentre os muitos limites de despesas que poderiam ter sido desenhados pela criatividade do Ministério da Fazenda, está entre os piores possíveis. É uma medida inteligente para os fins pretendidos, sem dúvida, mas, se não for mudada até 2019, irá causar provavelmente diversos problemas já tratados em textos passados.

Com a reforma da Previdência não é muito diferente. Ela é bem desenhada para os fins que quer atingir. O competente secretário da Previdência, Marcelo Caetano, que claramente é um dos mais preparados do País no assunto, deixou isso muito claro na entrevista que concedeu ao Roda Viva no último dia 12 de dezembro.

Inúmeras reformas poderiam ter sido desenhadas, e Caetano mostrou na entrevista que tem competência para desenhar uma proposta mais preocupada com a classe trabalhadora. Como expert no assunto, ele certamente sabe que alívio de pobreza e proteção das expectativas são objetivos centrais de qualquer reforma previdenciária, nenhum dos dois prestigiados pela proposta do governo Temer.

As críticas aqui realizadas são, portanto, direcionadas à proposta, que precisou manter coerência com a política do seu governo, e não ao técnico Caetano, a quem coube desenhá-la.

A primeira pergunta realizada no programa disse respeito ao momento em que a reforma entraria em vigor. Caetano deseja que isso aconteça no início do segundo semestre de 2017 ou no final do primeiro semestre.

Ele sustentou, em seguida, que os direitos adquiridos não serão feridos, até mesmo os daqueles que completarem os requisitos para aposentadoria durante a tramitação. Isso não pode ser tido como uma parte boa da proposta, pois é o óbvio.

Juridicamente, direitos adquiridos não podem ser atingidos, pois são direitos constitucionais fundamentais (art. 5o, XXXVI, CF/88) e quem tiver completado os requisitos durante a tramitação terá direito adquirido. Uma nova previdência não poderia voltar para o passado, evidentemente. Então, não há nada especial para comemorar aí.

A segunda pergunta disse respeito à previdência dos militares e se, ao não reformá-la, não ficaria parecendo que o esforço de ajuste fiscal não é coletivo. Caetano não respondeu à pergunta, pois disse que a sua ideia era que houvesse o máximo de uniformização nas regras e que a proposta já estaria fazendo isso. Bom, e os militares?

Em resposta posterior, assim como tinha feito em entrevista concedida à GloboNews, Caetano disse que os militares seriam tratados em uma lei no futuro, sem definir prazo, sem dar qualquer outra informação concreta. A realidade é que a previdência dos militares não foi alvo de proposta de reforma, deliberadamente, por algum receio político do governo, talvez por medo de um golpe militar ou coisa que o valha.

Se essa assertiva estiver errada, o projeto de lei para reforma da previdência dos militares será apresentado nas próxima semanas – bem antes da aprovação da reforma geral, que precisa ser longamente discutida – e colocado para votação com a mesma urgência que outros projetos do governo de corte de despesas. Assim, será possível discutir e aprovar os dois conjuntamente. Fique-se atento a isso. Voltaremos ao assunto em algumas semanas.

Como informado na própria entrevista, a previdência dos militares contempla em torno de 296.000 beneficiados e o valor está em mais ou menos 32 bilhões de reais, de forma que é extremamente relevante, pois supera, por exemplo, o gasto com o Bolsa Família, programa que provadamente beneficia muito o País sob diversos aspectos.   

Sob o argumento histérico de cortar emergencialmente despesas, a proposta, que é duríssima, irá prejudicar milhões de pessoas, inclusive as que ganham apenas um salário mínimo, assim como suas famílias, que delas dependem, porém não se acha que é emergencial cortar privilégios dos militares. O governo Temer mantém sua coerência interna, mas escancara a incoerência dessa sua lógica com a Constituição de 1988.

Quando perguntado sobre o teto do benefício, Caetano responde que é cinco mil e poucos reais (5.189,82 reais). Se o objetivo é cortar despesas, para que alguém precisa ter garantido pela previdência um valor tão alto?

A previdência, para ser sustentável, deve garantir que as pessoas tenham condições de consumir minimamente e sobreviver de forma digna na velhice. Um valor em torno do que o Dieese tem por salário mínimo apto a sustentar uma família com homem, mulher e dois filhos, que era 3.940,41 reais em novembro deste ano, deveria ser o teto. Mais do que isso significa pagar benefício exagerado a quem já ganhou muito ao longo da vida e, assim, deveria ter poupado mais.

Fazendo isso, o governo estaria, inclusive, estimulando uma maior formação de capital, ao pagar um pouco menos àqueles que já ganham muito e que se viriam obrigados a poupar e investir mais. Não dá para pedir que o assalariado mínimo poupe ou invista, pois, com a enorme tributação brasileira sobre o consumo e outros problemas, o valor de 880 reais do salário mínimo é insignificante, representando, por exemplo, menos de 1/4 do salário calculado como necessário pelo Dieese, mencionado anteriormente.

No Reino Unido e em outros países, o benefício pago é mais ou menos o mesmo a todos os aposentados, independentemente de quanto ele ganhou ao longo da vida, o que permite pagar valores maiores a quem ganhou menos e menores a quem ganhou mais. É uma sistemática que beneficia tanto eficiência econômica quanto equidade.

A entrevista de Caetano como um todo revela claramente que sua preocupação principal foi com a sustentabilidade fiscal da Previdência sem abrir espaço para uma eventual mudança no financiamento ou no pagamento do benefício para os que ganham mais ao longo da vida.

É uma proposta, portanto, sem qualquer preocupação social, a não ser pela manutenção do salário mínimo como piso, que seria um absurdo se não acontecesse, mas, do jeito que anda, pode se esperar tudo do governo atual.

A proposta de reforma foi feita olhando para quanto se precisa economizar em “x”, “y”, “z” anos, mas sem prestar a devida atenção, por exemplo, ao aumento de desemprego que pode causar em curto prazo num momento em que o fim da crise econômica ainda é uma incógnita.

Uma medida para mitigar os efeitos socioeconômicos negativos que a reforma da Previdência causará, obrigando inúmeros aposentados a receberem apenas o salário mínimo, seria a continuação da política de aumento real dele, o que não acontecerá por conta da PEC dos gastos. Então, trabalhadores, preparem-se para sofrer bastante, acaso essa reforma seja aprovada.

A reforma da Previdência, tal como está, é um caminho perfeito para fazer o Brasil não sair nas próximas décadas da armadilha da renda média-baixa. Com mais gente no mercado de trabalho e benefícios menores para os mais pobres, o número de pessoas desempregadas ou recebendo apenas o salário mínimo aumentará.

O Brasil é um país no qual é muito mais difícil desenhar políticas públicas do que em outros devido à sua enorme desigualdade. O trade-off entre eficiência e equidade se torna ainda mais complexo, pois esta última precisa ter grande peso. Apesar de o País ter um dos maiores PIBs do mundo, ainda que em queda livre nos últimos anos, a imensa maioria da população é pobre e isso, por óbvio, mina a eficiência econômica por falta de produtividade.

A elite brasileira precisa estar ciente de que ela tem a obrigação de contribuir bastante para a distribuição de oportunidades similares, o que passa por uma distribuição de renda que garanta um poder mínimo de consumo para que se tenha vida digna.

Enquanto não se compreender isso, o país viverá de crises em crises. Cabe lembrar que mesmo os países mais iguais e desenvolvidos do mundo têm políticas públicas muito mais inclusivas do que as brasileiras e, portanto, exigem contribuição alta dos mais ricos para o bem estar social. 

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