Intervozes

Associação vai exigir ações afirmativas para negros/as no audiovisual

Homens negros representam menos de 2% das lideranças profissionais em grandes produções audiovisuais; as mulheres negras estão completamente ausentes

Debate na SPCine em novembro: afirmação
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Por Marina Pita*

“A melhor resposta que poderíamos dar a essa conjuntura de avanço do conservadorismo nos níveis municipal, federal e internacional era essa”, afirmou a advogada e cineasta Viviane Ferreira, ao analisar a criação da Associação dos/as Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).

A organização será formalizada publicamente nesta sexta-feira 2, durante a realização da série Diálogos Ausentes e 1º Seminário Audiovisual Negro. A partir de então, a Apan passará também a compor o Conselho Consultivo da SPCine – empresa de cinema e audiovisual de São Paulo ligada à Secretaria Municipal de Cultura –, criando mais uma frente de reivindicação e demanda para políticas de incentivo ao audiovisual negro.

Em uma das mesas de debate do Encontro SPCine, realizado entre 16 e 18 de novembro, em São Paulo, a fala de Viviane e o anúncio, tanto da criação da Apan, quanto da nova composição do Conselho Consultivo da SPCine, ganhou ares de momento histórico.

Isso porque a participação de profissionais negros e negras no audiovisual no País é baixíssima, quase inexistente, apesar de o Brasil ser um país cuja população é 54% negra, conforme último dado disponível do IBGE.

Pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), com as vinte maiores bilheterias de cada ano, considerando 2002 a 2014, escancarou o racismo na produção audiovisual brasileira: 84% dos cineastas são homens brancos; 14%, mulheres brancas; e 2%, homens negros.

E nestes 13 anos analisados, nenhuma mulher negra esteve à frente de uma produção de grande bilheteria, tampouco assinou roteiros. Já os homens brancos foram responsáveis por 69% dos textos.

Esta ausência não é sentida e questionada apenas no Brasil. Na edição do Oscar de 2016, a ausência de negros e negras indicados aos prêmios de atuação, roteiro e direção, mesmo havendo filmes focados na temática negra e com atores e diretores negros – caso de Selma, da diretora Ava DuVernay – repercutiu em críticas severas à academia norte-americana, que desde 2011 não mantinha negros de fora de suas indicações.

Sendo o audiovisual um setor que, em geral, exige alto investimento e qualificação específica e técnica, a reversão deste cenário – que reflete a desigualdade racial do país – sem políticas afirmativas é inviável.

“Reconhecer a impossibilidade de abdicar do esforço em construir políticas de ações afirmativas no setor audiovisual é um primeiro pressuposto, desmistificar o que vem a ser esse conjunto de políticas é o segundo”, destacou Viviane Ferreira durante a abertura do evento.

“É fundamental garantir aos protagonistas as condições materiais e simbólicas para que as dificuldades ou desníveis possam ser superados e as escolhas possam ser feitas de maneira lúcida e, consequentemente, a médio e longo prazos”, frisou, ainda.

Cenário de oportunidades

Para ela, se por um lado há o avanço do conservadorismo na política institucional, da perspectiva da audiência há o esgotamento da narrativa clássica. “O público não aceita mais essa narrativa viciada proposta pelo homem branco, heterossexual e endinheirado. Ele não consegue mais fazer o seu capital render vendendo a narrativa viciada. E aí há o momento de transição e precisamos pensar como reorganizar o diálogo e essas relações no mercado audiovisual – um diálogo de desconstrução de desigualdades”.

Um exemplo de tentativa do mercado audiovisual de suprir a demanda por um audiovisual negro, mas sem superar a estrutura excludente, é a série O Sexo e as Nega. “O audiovisual é, sobretudo, um retrato da realidade e cada um faz o retrato a partir de sua experiência de vida. A experiência de vida de um homem branco não é a experiência de vida de uma mulher negra. E aí a gente precisa entender que para conseguir avançar e sair desse jogo de manobra e apropriação cultural do que é a nossa criatividade, nossa subjetividade negra, precisamos diversificar todos os espaços do setor audiovisual”, disse.

Para Viviane, o momento pode ser muito fértil para a democratização da produção audiovisual porque além das exigências da audiência por conteúdo de qualidade e que retrate a realidade do País, as produções culturais provenientes de grupos sociais tradicionalmente marginalizados vêm paulatinamente ganhando espaço.

“Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora. E isso não é apenas uma abertura dos espaços dominantes à ocupação dos de fora. É também resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político cultural”, destaca. “E isto vale não apenas para raça como também para “outras “etnicidades, marginalidades, assim como para o feminismo e as políticas sexuais e movimentos LGBTs”, analisou a cineasta negra durante debate.

Por outro lado, há a preocupação e cautela da Apan em não deixar o espaço de visibilidade e diálogo em torno do cinema negro se transformar em um cubículo cuidadosamente regulado e vigiado para impedir qualquer avanço e fortalecer o racismo e suas práticas nefastas e arraigadas.

Dessa forma, a associação mantém como objetivo elaborar e pressionar pela implementação de estratégias culturais para o setor audiovisual capazes de construir uma teia para consolidar um conjunto de políticas de ações afirmativas para o setor que dê conta de aprimorar iniciativas existentes.

Uma destas iniciativas é o Curta Afirmativo, linha de financiamento audiovisual criada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) em 2014 – a primeira ação afirmativa com recorte racial do audiovisual no país.

“Há importância de existir a Apan, em diálogo com a Ancine, em diálogo com a SPCine, em diálogo com o mercado, em diálogo com a sociedade civil para entendermos como cada uma das partes pode atuar para alterar essa ordem. O audiovisual é uma brincadeira muito cara e não podemos continuar neste jogo de perde-perde apenas para garantir a continuidade do status quo racial”, afirmou a representante da Apan.

FilmeSelma.jpg Cena de Selma, de Ava DuVernay (EUA/2015)

“Ou a gente avança e entra no jogo de ganha-ganha, tanto materialmente quanto subjetivamente, ou a gente precisa endurecer o jogo. O conjunto identificado como massa mostra que não está mais disposto a ser manobrado e aí, a partir deste ponto, podemos alterar a ordem e resolver essa questão”, completou.

Em momento de transição tanto no governo municipal de São Paulo quanto na esfera federal, Viviane não titubeia diante da possibilidade de portas se fecharem para este diálogo tão necessário em um futuro breve.

“Como fazer para ter continuidade nas políticas afirmativas? Da perspectiva da sociedade civil, o nosso diálogo é com o Estado e seja qual for o Estado, ele precisa dialogar com a sociedade civil. Se não há espaço para isso, a gente mete o pé na porta e adentra a estrutura do Estado para garantir o diálogo”, diz.

“É importante não perder isso de perspectiva porque a estrutura do Estado não é o condomínio, o play, o apartamento de indivíduos. Posso assegurar que uma população que conseguiu sobreviver às políticas genocidas de um Estado durante 500 anos, não está disposta a deixar de combater as posturas racistas, seja lá qual for o governo”.

A seguir, algumas das propostas iniciais para políticas afirmativas:

– Garantir a presença de profissionais negros em comissões de seleções de projetos audiovisuais tanto na iniciativa pública quanto na iniciativa privada;

– Garantir a presença de profissionais negros nas instâncias decisórias dos órgãos e empresas públicas e privadas do setor audiovisual;

– Fortalecer os espaços específicos dentro dos grandes festivais e no circuito alternativo para exibição do cinema negro, como política de formação de público;

– Garantir a representação de produções e realizadores negros nos espaços principais – nas telas e nos debates – dos grandes festivais como política de reconhecimento da excelência das obras e de seus profissionais;

– Programa de fortalecimento institucional de pequenas e médias empresas geridas por pessoas negras e com forte produção e distribuição de conteúdo voltada para essa parcela da população;

– Reserva de espaço pelas programadoras e distribuidoras para aquisição obrigatória de conteúdo produzido por empresas geridas por pessoas negras com foco em produção de conteúdo voltada para a população negra;

– Estruturação de uma resolução por parte da Ancine que olhe para o princípio da isonomia alinhada com o princípio da equidade e estabeleça regras reguladoras iguais entre os iguais e diferentes para os diferentes;

– Fortalecer uma política de formação que oferte laboratórios para que pareceristas, críticos, dramaturgos, curadores, exibidores, programadores, distribuidores e realizadores para que possam compreender a diversidade de temas e possibilidades de abordagem e reconhecimento da subjetividade negra por meio da linguagem audiovisual;

 

*Marina Pita é jornalista, branca e compõe o Conselho do Coletivo Intervozes. É prima-tia de duas meninas negras e espera que as próximas gerações possam se ver nas telas – e possam estar atrás delas – e que o momento de identificação das próximas gerações de crianças negras com o conteúdo audiovisual brasileiro não seja na repercussão de tragédias como a do terremoto do Haiti, que tanto chamou a atenção das pequenas já citadas.

 

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