Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Paz na Colômbia, democracia para todos

Sem uma construção política sólida, o mérito da votação do acordo de paz reduziu-se a uma decisão pouco convicta pelo “sim” ou pelo “não”

Juan Manuel Santos parecia convicto da vitória no plebiscito, mas o "não" prevaleceu
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Por Simone Gomes e Tatiana Oliveira*

A esta altura, o desfecho do plebiscito de 2 de outubro de 2016, na Colômbia, já é conhecido por quase todos. À pergunta “Você apoia o acordo final para o término do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura?, os colombianos responderam “não”.

A opção venceu o “sim” por cerca de 67 mil votos, diferença contabilizada entre os mais de 13 dos 35 milhões de votantes habilitados para o referendo. Rejeitou-se, portanto, a proposta de paz encabeçada pelo atual presidente Juan Manuel Santos. O que muita gente talvez não saiba são algumas das dinâmicas entre os principais atores envolvidos no plebiscito de triste desfecho: o grupo guerrilheiro FARC-EP, o ex-presidente Álvaro Uribe e os grandes proprietários de terra.

O resultado do plebiscito, ao invés de provocar questionamentos acerca da construção política junto à sociedade, retornou aos seus proponentes como uma crítica à abertura democrática engendrada por aquele instrumento de participação e consulta popular.

Passou-se a especular que o formato seria antes uma forma de subverter, não de servir, à democracia, porque baseado em uma volatilidade que diz respeito não só aos méritos da decisão, mas a uma apreensão compósita da realidade, inconsistente, ou, como foi, em parte, o caso na Colômbia, condicionada pela intempérie (choveu no dia da votação).

Esta é uma concepção elitista da democracia, distante da sociedade e das suas necessidades, e que, ao fim e ao cabo, conduziu a uma batalha de desinformação e boataria.

O fato é que na ausência de uma construção política sólida junto à sociedade, o complexo mérito da votação acabou reduzido a uma decisão pouco convicta pelo “sim” ou pelo “não”. O momento que antecedeu as urnas não incluiu a mobilização social em torno do tema, tampouco o governo se responsabilizou por campanhas informativas sobre os pontos do acordo ou sobre as etapas seguintes do processo.

A imprensa, por sua vez, reproduziu informações ambíguas sobre o assunto, o que pareceu a muita gente como um esforço deliberado para confundir.

Daí que o processo tenha reproduzido um círculo vicioso de desconfiança que afeta a democracia colombiana e permeia a relação dos seus atores. Isto não sem razão. Tal dinâmica responde a uma dolorosa história de perseguição política, assassinatos e corrupção, uma memória que foi trazida pelo plebiscito.

Os dados da votação mostram que as regiões mais afetadas pelo conflito votaram “sim”. Este é o caso das cidades de Cauca, Guaviare, Nariño, Caquetá, Antioquia, Vaupés, Putumayo e Chocó, entre outras regiões cuja história passa por massacres sistemáticos de uma população que parece sempre disposta a recomeçar, pondo fim à guerra de mais de 50 anos.

O “não” ganhou nas áreas em que Uribe e seu partido possuem maior apoio, conformando um mapa em que as franjas do país, sobretudo suas zonas rurais, mais afetadas pela guerra, votaram pela paz, ao passo que o centro e as grandes cidades votaram contra o acordo, em que pese a elevação relativa da insegurança nestas localidades na última década.

O “não” ganhou também pelo índice de abstenção, em um país com índices de abstenção eleitoral historicamente altos, mas dadas as condições de votação para este plebiscito, a incrível marca de 63% deixa de surpreender.

A divulgação das pesquisas de intenção cujos resultados foram incapazes de captar as disputas travadas no âmbito da sociedade também não ajudou. E uma vitória esmagadora do “sim” retratada nas sondagens pode ter desmobilizado eleitores.

Assim é que, nos parece, o “não” (das urnas e das abstenções) tornou-se um chamado da população para aprofundar a discussão. Longe de representar a rejeição do Acordo de Paz, constituiu uma demanda expressa por maior participação em um processo que toca a vida de colombianos e colombianas, revolvendo lutos que merecem ser respeitados.

Juan Manuel Santos parecia convicto da vitória do “sim”, principalmente após uma longa negociação com as FARC, selada em um acordo assinado em La Habana, Cuba, e cinco anos de diálogos referendados pela comunidade internacional.

Contudo, o neoconservadorismo uribista foi eficaz em se valer dos afetos e medos cotidianos, jogou com uma espécie de subjetividade coletiva da guerra. Ilustrativo a este respeito foi a evocação da “ideologia de gênero”, que serviu para arregimentar a oposição à gestão Santos, indicando, mais uma vez, certa afinidade entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo renitente nas nossas sociedades.

A campanha (des)informativa liderada por Uribe contou com imagens lúdicas, nas quais o líder Timoncheko, das Farc, figurava como candidato à Presidência em 2018. Outras mentiras que embasaram o voto “não” exploraram a substituição do sistema político pelo comunismo, a expropriação de terras e o sentimento de que o processo de paz terminou por fortalecer a guerrilha. Chegou-se mesmo a argumentar que a guerrilha seria formada pelas elites do país.

Aparece, então, a questão do lugar da oposição, e particularmente da oposição de esquerda, no país. Para além do caso conhecido de extermínio do partido União Patriótica, entre 1980-1990, há outro, recente, no qual Uribe é investigado por utilizar o órgão de inteligência do país como centro de espionagem. Apresenta-se, pois, o enorme desafio de institucionalização da oposição na Colômbia, o que não será possível sem a participação das Farc e outros grupos armados ilegais, como o ELN.

Por fim, os empresários e donos de terra colombianos, especialmente os ligados ao setor retrógrado representado por Uribe, parecem ter muito a perder com a paz, dado que se abriria uma nova porta para lidar com os conflitos agrários, que não fosse por meio da contrainsurgência.

Vale lembrar que a reforma agrária é um dos pontos centrais, e mais polêmicos, do acordo. Ademais, na economia política da guerra, a “paz” teria um alto preço para alguns setores, sobretudo os envolvidos no mercado da segurança – não apenas a indústria pesada da guerra, mas a segurança particular – alimentado pelo medo.

Em 3 de outubro, um dia após o resultado, as FARC lançaram um comunicado, sublinhando a necessidade de uma “via difícil” para a implementação dos acordos de Habana, dado que a “via fácil” do plebiscito, como sonhara o presidente Santos, sofreu um revés eleitoral e político.

A organização reiterou, ainda, seu compromisso com a paz. No entanto, já em 4 de outubro, o cessar fogo entre partes foi suspendido e o comando das Farc ordenou o deslocamento dos seus membros para “posições seguras”. Santos, por sua vez, anunciou uma nova reunião a portas fechadas, que deve incluir Uribe.

Os movimentos sociais organizaram manifestações por todo país, mostrando que outro caminho para a paz é possível e que um maior diálogo com a sociedade é necessário. Para que a paz seja duradoura e para todos será importante curar o ódio e cicatrizar feridas. Para que a oposição se dê pela via institucional, e a luta política não volte a alcançar as armas, será preciso garantir o direito de manifestação da oposição. E a vingança deve estar fora deste plano.

*Simone Gomes é Doutora em Sociologia e Tatiana Oliveira é Doutora em Ciência Política e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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