Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Para além do pão e circo: as esquerdas e as Olimpíadas

Jogos deveriam afirmar ciclo progressista, mas são usados pelo governo golpista para normalizar a situação política

Torcedores do Brasil durante a estreia da seleção de handebol: a festa não esconde os problemas reais
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Por Josué Medeiros

Com o fim dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o saldo que fica não é só das medalhas e recordes, dos dramas e superações protagonizados pelos atletas. As Olimpíadas causam sempre um impacto político complexo e não evidente, de difícil processamento para as esquerdas. A rejeição inicial ao megaevento não se sustenta quando começam as competições.

A disposição de boicotar as transmissões, de não se importar com as modalidades, desaparece, em geral, logo na festa de abertura. Seria uma contradição? Ou pior, hipocrisia? Seria errado, então, vibrar com as vitórias, se abater com as derrotas? Seguramente que não. Não é porque nos deixamos levar pelos Jogos que abrimos mãos dos nossos valores.

Nos envolvemos, nos emocionamos, comemoramos, torcemos e vaiamos, sem abandonar nossas posições críticas. Os pódios e cronômetros, as réguas e os placares não anulam nossa certeza de que o capital captura o esporte e tampouco cancelam nosso conhecimento de que poucos estão lucrando.

As manifestações culturais e simbólicas no capitalismo vão muito além da clássica fórmula do “pão e circo”. Sem dúvida que, em uma sociedade de classes, um acontecimento dessa monta “serve” aos propósitos da classe dominante. Isso, contudo, é apenas o ponto de partida. Não pode ser, jamais, o ponto de chegada.

Gramsci nos ensinou que a hegemonia da classe dirigente é fruto de um processo político e social múltiplo e diverso, com várias camadas e mediações e que conjuga as dimensões do consenso e da coerção.

Nesse emaranhado de valores e concepções de mundo que – difusa ou organizadamente – agem na sociedade, é importante reter do olhar gramsciano a possibilidade, mais ou menos aberta a depender da situação histórica e conjuntural, que os dominados têm de produzir fissuras no projeto de poder, de avançar com suas lutas e projetos em contextos e experiências que, a princípio, reforçam a dominação e a exploração. Novos consensos podem se desenvolver, contra a vontade das elites.

É na chave da disputa de hegemonia que as Olimpíadas impactam as esquerdas. Se os resultados dos Jogos são (salvo exceções) incontestáveis, as consequências políticas são, quase sempre, imprevistas, raramente são unilaterais para caber em fórmulas prontas e muitas vezes mudam com o tempo.

Existe uma dimensão geopolítica dos Jogos Olímpicos que atravessa sua história. Hitler utilizou as Olimpíadas de 1936 em Berlim – cuja candidatura foi definida em 1931, antes da ascensão do nazismo – para fazer uma poderosa propaganda das ideias acerca da suposta superioridade da “raça” ariana e também de afirmação da estética nazista.

O ditador alemão foi em parte exitoso, pois viu seu país liderar o quadro de medalhas daquele ano, mas foi frustrado no atletismo – modalidade esportiva mais importante dos Jogos – com as memoráveis vitórias de Jesse Owens, atleta negro dos Estados Unidos.

Outro momento geopolítico foi o atravessamento das Olimpíadas pela Guerra Fria. A União Soviética foi sede dos Jogos de 1980, e sofreu com um boicote de países do bloco capitalista. A revanche veio em 1984, quando a sede foi nos EUA, com o boicote do campo comunista. Na época, o impacto simbólico dos Jogos de Moscou foi infinitamente maior que aquele de Los Angeles, e não só graças ao choro do mascote Misha contra o boicote.

No final dos anos 1970 havia um enorme otimismo quanto ao destino dos países comunistas, e as Olimpíadas ajudaram a alimentar esse sentimento. Hoje sabemos que o sucesso daquele evento se assemelha mais a um último brilho de uma estrela em extinção.

As Olimpíadas do Rio de Janeiro carregaram sentidos geopolíticos diversos. A conquista brasileira para sediar os Jogos marcou a consolidação de uma nova configuração política na América do Sul. Em 2009 o ciclo de governos progressistas (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai, Uruguai, Venezuela) estava no auge. Mesmo com contradições e impasses importantes, pela primeira vez na história da região combinavam-se processos de democracia política, crescimento econômico e diminuição da desigualdade.

O Brasil era o principal expoente desse processo. O ciclo progressista impactou a ordem mundial e abriu um campo de possibilidades para novas relações internacionais: O multilateralismo passou a lidar com um protagonismo inédito dos países em desenvolvimento, novas alianças e blocos se formaram (BRICS, IBAS, Unasul). Tal processo culminou em 2009 (uma semana antes do Rio ser escolhido sede da Olimpíadas) com a substituição do G-8 pelo G-20 como principal articulação política internacional.

As Olimpíadas do Rio poderiam ser a celebração dessa nova geopolítica. Não obstante, seu impacto no contexto internacional é justamente o oposto. A América do Sul vive hoje uma dramática reversão do ciclo progressista, com uma contraofensiva neoliberal que ameaça não só os direitos sociais, mas ataca os fundamentos mais básicos da democracia representativa.

Na Argentina, o presidente Macri anulou por decreto leis que haviam sido aprovadas por maiorias incontestáveis no parlamento, como a legislação que democratiza os meios de comunicação; na Venezuela a oposição ao chavismo alimenta um clima de guerra civil; no Paraguai e no Brasil presidentes eleitos foram depostos por golpes de estados articulados pelas maiorias parlamentares conservadoras em associação com o Poder Judiciário e as elites empresariais.

Para as esquerdas sul-americanas, os Jogos marcam um momento de crise sem precedentes. A cidadania ativa brasileira sentiu em especial esse sabor amargo. Após meses de luta em defesa da soberania popular, o que se vê é o governo golpista usando as Olimpíadas para normalizar a situação política.

Mais grave é que a própria forma como o megaevento foi organizado é reveladora dos limites e contradições dos governos do PT, que fechou os olhos ao custo social e ambiental altíssimo dos Jogos: milhares de pessoas perderam suas casas e foram removidas em processos autoritários; áreas de proteção ambiental foram degradadas e privatizadas; o legado em infraestrutura será apropriado por poucos, na medida em que a rede de metrô não foi ampliada, a de trem não foi modernizada e que a baía de Guanabara segue poluída.

O pior é que, em nome da segurança dos atletas e turistas, a presidenta Dilma enviou ao Congresso uma absurda lei antiterrorismo, que agora será usada contra os movimentos sociais pelo governo golpista.

Para além do aspecto geopolítico, as Olimpíadas têm também um resultado político mais etéreo, menos mensurável, e nem por isso menos importante. Os Jogos também são momentos de reafirmação de novos consensos na medida em que reforçam certos valores e experiências, e que amplificam a visibilidade de certas pautas e lutas.

A luta contra o racismo sempre se fez presente nas Olimpíadas. Jesse Owens fez da sua vitória em Berlim um fator de mobilização contra o brutal racismo que prevalecia na sociedade estadunidense. Trinta e dois anos depois, em 1968, na Cidade do México, dois corredores negros dos EUA, Tommie Smith e John Carlos, foram além de Owens e denunciaram o racismo ao receberem suas medalhas de ouro e bronze, eternizando o momento com o imortal gesto dos Panteras Negras. Por conta disso tiveram suas medalhas cassadas e foram expulsos dos Jogos. Em 1976 um conjunto de nações africanas boicotou as Olimpíadas de Montreal em protesto contra o bárbaro Apartheid na África do Sul.

No Brasil não seria diferente, e embora a repercussão não tenha sido internacional, foi significativo que a primeira medalha de ouro que o país conquistou tenha sido com Rafaela Silva, uma atleta negra, moradora de uma favela carioca e que sofreu ataques racistas em 2012, nos Jogos de Londres, quando foi desclassificada.

Ademais, foram as Olimpíadas mais gays da história, com o maior número de atletas assumidos. Essa marca esteve presente na abertura dos Jogos, com a transexual Lea T puxando a delegação brasileira. O diretor da cerimônia, Fernando Meirelles, declarou antes da festa que o deputado fascista Jair Bolsonaro e o candidato republicano não aprovariam a exibição, cujo conteúdo exaltou os povos indígenas, os negros e as mulheres.    

Na maioria do povo brasileiro, o sentimento ao final das Olimpíadas é de satisfação, uma saudade e uma vontade que durasse mais. O mesmo vale para as esquerdas, ainda aturdidas com a consolidação do golpe, e que tiveram nos Jogos um momento de recarregar as baterias para retomar a luta contra o neoliberalismo e em defesa da constituição e da soberania. Enfim, primeiramente, fora Temer

*Josué Medeiros é professor de Ciência Política e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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