Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

A engenharia de golpes e os (des)mandos do capital

Quedas de governos, crises econômicas, descredibilização institucional e instabilidade política são alguns dos resultados obtidos no processo

As concessões feitas por Dilma não foram suficientes para apaziguar as elites nacionais e internacionais
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Por Karen Honório e Lucas Guerra

Nada mais internacional do que a análise da política nacional, nada mais nacional do que observar a dinâmica internacional. Os golpes e tentativas de golpe nos países da América Latina ao longo das primeiras décadas do século XXI, contra presidentes democraticamente eleitos, devem ser entendidos como parte de uma estratégia que coloca do mesmo lado forças políticas internas e externas em busca de um maior aprofundamento dos modelos neoliberais.

Os verdadeiros “donos do mundo”, grandes capitalistas financeiros que correspondem a 1% da população e concentram 99% da riqueza produzida no planeta, convertem de maneira engenhosa seus interesses particulares em políticas nacionais e na própria política internacional.

A ortodoxia neoliberal, modelo político-econômico que desnutre o Estado de bem-estar social para alimentar o sistema financeiro transnacional, é imposta a partir do raciocínio acima como a única proposta viável de gestão dos recursos estatais.

Tal ideia matiza-se sobremaneira por meio de conferências e organismos internacionais onde reúnem-se a elite financeira mundial e chefes de estados de grande parte dos países, como o Fórum de Davos. Nesses momentos são estabelecidas e acordadas as regras do jogo político em prol dos interesses dessas elites.

As grandes potências globais e organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, reproduzem e legitimam tais estruturas de dominação financeira, recompensando com prestígio, credibilidade, investimentos e empréstimos – que, na maior parte das vezes, conduzem ao aumento do endividamento externo e fuga de capitais – os países cujos governos se subordinam aos (des)mandos neoliberais.

Os países “insurgentes”, cujos governos pautam a estratégia política e econômica na defesa de alguma soberania nacional, nos investimentos sociais e busca por alternativas ao modelo imposto como único, são devidamente castigados pelos “caciques financeiros”, que contam com diversos instrumentos para aplicar suas sentenças.

Quedas de governos, crises econômicas, descredibilização institucional e instabilidade política são alguns dos resultados frequentemente obtidos no processo.

É importante notar que os instrumentos utilizados para promover a retaliação política são frequentemente invisibilizados, travestidos em véus de imparcialidade técnica e neutralidade.

É o caso, por exemplo, das agências de avaliação de risco, empresas especializadas, entre outras coisas, na análise da “confiabilidade” dos países, ou seja, a capacidade destes de pagar suas dívidas no mercado internacional.

As estadunidenses Standard & Poors, Fitch Ratings e Moody’s são as principais empresas do ramo, de modo que as notas atribuídas por elas são determinantes para o fluxo e taxação de juros de empréstimos e investimentos nos países que avaliam.

Diretamente vinculadas à classe de banqueiros, rentistas e especuladores de Wall Street, tais agências consistem de fato em ferramentas orgânicas dos mais altos setores do capitalismo financeiro global para punição dos países resistentes à ultraliberalização econômica e desmantelamento de algum tipo de controle dos fluxos de capitais e/ou setores estratégicos do Estado.

A descredibilização de países pelas notas a eles atribuídas pelas agências de rating afeta primordialmente a relação destes com o mercado internacional e, consequentemente, as políticas econômicas nacionais.

Não obstante, a retaliação da alta burguesia financeira internacional se volta também para a arena política doméstica desses países, em processos nos quais os conglomerados midiáticos tradicionais – geralmente vinculados aos mesmos grupos e interesses que as agências de risco internacionais – exercem papel fundamental.

Por meio deles, há a propagação em larga escala do rebaixamento das notas de classificação do país, sem um mínimo de reflexão crítica sobre em que consistem as agências de rating e que critérios utilizam em suas avaliações.

A “crise” econômica terrível e irremediável é fabricada e alardeada nas principais revistas e noticiários do país, com o uso massivo de termos técnicos inacessíveis à maioria da população e apontamento do governo como responsável exclusivo e culpado inegável por essa situação. Assim, a opinião pública é manipulada contra governos democraticamente eleitos promovendo deslegitimação e instabilidade política.

Podemos analisar a atual crise política do Brasil a partir dessa perspectiva. Em 2014, ao se candidatar para um segundo mandato na Presidência, Dilma Rousseff adotou como um dos pilares de seu projeto de governo a defesa do Marco Regulatório do Pré-Sal, lei que garante à Petrobras a prerrogativa de ser operadora única nos campos de pré-sal em território brasileiro, bem como a participação obrigatória em no mínimo 30% dos processos de exploração e produção relacionados ao petróleo, cujos lucros seriam revertidos no financiamento de políticas públicas na área da Educação e Saúde e programas sociais.

A não abertura total ao capital estrangeiro desagradou as elites financeiras internacionais. CEOs de algumas das “Sete Irmãs” – conjunto de empresas privadas que detém oligopólio sobre a extração de petróleo mundial – se manifestaram abertamente a favor de uma nova lei que permitisse maior participação de entes internacionais no mercado petrolífero brasileiro.

Setores da burguesia nacional, que mantém relações carnais com o capital transnacional, responderam à demanda por meio de um projeto de lei – de autoria do senador José Serra (PSDB) – que retira os privilégios citados da Petrobras, por considerar a empresa incapaz de gerenciá-los.

No início de fevereiro desse ano, não por acaso exatamente na semana de votação desse projeto de lei no Senado, as três principais agências de classificação de risco aqui mencionadas rebaixaram a nota de grau de investimento do Brasil.

O rebaixamento da nota foi exaustivamente reproduzido por amplos setores da mídia tradicional do país, junto a análises da queda de preço do petróleo no mercado internacional e retrospectivas dos casos de corrupção recentemente ocorridos no seio da Petrobras.

Assim, construiu-se na opinião pública uma noção de urgência por “socorro” externo e descrença na capacidade de gestão estatal dos recursos petrolíferos, favorecendo a legitimação da abertura da empresa aos investimentos estrangeiros.

As já estreitas margens de manobra do governo – assolado por problemas na gestão da economia e grave instabilidade política e institucional – foram dramaticamente reduzidas com a contrariedade da opinião pública. O projeto de lei que retira os privilégios das atividades petrolíferas concedidos a Petrobras foi aprovado, colocando em risco a gestão de um recurso primordial para o crescimento econômico, desenvolvimento social e soberania energética do país.

As indefensáveis concessões feitas por Dilma Rousseff na condução da política econômica brasileira não foram suficientes para apaziguar o antagonismo das elites nacionais e internacionais. Os ataques midiáticos prosseguiram para muito além do Marco Regulatório do Pré-Sal, levando a uma intensificação da instabilidade política e econômica do país que culminou na aprovação na câmara dos deputados do pedido de impeachment da Presidenta.

Nesse “golpe branco” que procura se institucionalizar, grupos políticos predatórios têm se manifestado contra o governo democraticamente eleito pela população, instrumentalizando o discurso da “reunificação nacional” para tentar impor projetos alinhados à alta burguesia internacional. O PMDB — partido que comanda a construção do golpe — publicou no fim do ano passado o documento “Uma Ponte para o Futuro”, projeto para um possível governo sucessor.

Entre as diretrizes, se encontram a flexibilização de leis trabalhistas, corte nos gastos sociais e concessões às empresas estrangeiras em áreas estratégicas para a economia nacional, como a exploração do petróleo.

Frente ao cenário de caos orquestrado, cabe a reflexão sobre a janela de oportunidades que se abre para uma retomada ultraliberal de reforma do Estado e os impactos nas conquistas sociais das últimas décadas. É isso que está em jogo, é isso que estamos perdendo.

*Karen Honório é professora da UNILA, doutoranda em R.I no PPGRI-San Tiago Dantas, membro do Núcleo de pesquisa em Política Externa Latino-Americana (NUPELA) e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI. Lucas Guerra é graduando em Relações Internacionais e Integração na UNILA e pesquisador júnior no Núcleo de pesquisa em Política Externa Latino-Americana (NUPELA).

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