Sustentabilidade

Em tempos de Trump e Bolsonaro, Sonic é herói ambientalista subversivo

Aos olhos do contexto político atual, série dos anos 90 se torna inesperadamente subversiva, dada sua mensagem ambientalista

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Essa onda “verde” tem início lá no século XIX, com a revolução industrial. A preocupação com os efeitos da industrialização começou na Inglaterra por volta de 1870, quando um grande número de pessoas passou a sofrer de doenças causadas pela contaminação da água e do ar. A densidade populacional disparou nos centros urbanos, onde habitavam os trabalhadores industriais, resultando em condições precárias de moradia e sobrevivência. É nesse período que surgem as primeiras leis de regulamentação de emissão de poluentes e os primeiros movimentos de resgate à vida rural e de preservação ecológica.

Mas é na década de 1970 que o tema ganha uma expressividade mundial. É neste contexto de pós-guerra, em meio aos movimentos de contracultura e busca por estilos de vida alternativos que surgem as primeiras campanhas políticas baseadas em plataformas ambientais e os primeiros partidos criados em torno dessa causa. O movimento indiano Chipko (foto), em que ativistas abraçavam árvores como forma de se manifestar pacificamente contra o desflorestamento, ganhou repercussão no mundo todo. É criado nos EUA o Dia da Terra; no Canadá, o Greenpeace. Na Suécia é realizada a primeira Cúpula da Terra, evento organizado pela ONU que acontece a cada 10 anos com o objetivo de reunir líderes mundiais para promover o desenvolvimento sustentável, na época um conceito novo.

O medo causado pelos desastres ambientais das décadas de 70 e 80, incluindo o acidente nuclear de Chernobyl, ampliou o interesse em torno das causas ecológicas.

De volta aos EUA do começo da década de 90, ambientalismo era um tema comum na cultura popular. Desenhos animados como Tartarugas Ninja e Capitão Planeta abordavam diretamente as causas ambientais, conscientizando o público sobre o descarte de lixo, reciclagem e preservação.

Procurando estratégias que a impulsionassem nos EUA e no resto do mundo, a Sega começou a abraçar movimentos culturais em seus jogos como forma de se diferenciar da Nintendo. Em 1991, três jogos para seu então carro-chefe, o Mega Drive, de uma forma ou outra refletiram a realidade do começo da década: Toejam & Earl parodiava a cultura urbana com sua trilha funk e R&B, Streets of Rage retratava a violência das ruas ao som eletrônico do techno e do house e Sonic, sua maior aposta, reverberava as preocupações ambientais. Mas embora sua mensagem seja até que bem óbvia, Sonic raramente é lembrado como um herói ambientalista. 

Como era comum em jogos de ação antigos, a narrativa de Sonic é transmitida de uma forma bem minimalista, por meio de seus cenários e da própria jogabilidade, mas o manual preenchia as lacunas que faltavam em sua trama. Se você jogá-lo sem nenhum contexto, você sabe que Sonic precisa libertar animais de tanques e de dentro de robôs, que formam um exército contra o herói. Sabe também que Dr. Robotinik (apelidado de Eggman, devido seu formato oval), o vilão do jogo, é o único ser humano deste mundo e que a ciência e a tecnologia estão associadas a ele, que sempre aparece com uma nova invenção para derrotar Sonic. Quanto mais próximo estamos do confronto final com Robotinik, mais industrializado, bélico e tecnológico se torna o cenário. O jogo transmite bem essa dualidade de mundo natural, colorido e exuberante versus mundo industrializado, tenso e sombrio.

Na versão do jogo para o Master System, que é um pouco diferente da original do Mega Drive, há um mapa do mundo entre as fases, indicando que o jogo se passa em uma ilha de riquezas naturais, e que Robotinik está instalado em uma zona industrial no topo de uma colina, onde há chaminés que emitem grandes nuvens de fumaça preta.

O manual do jogo em japonês é o que melhor explica a situação. Ele diz: “Essa é a Ilha Sul, um tesouro de joias e relíquias históricas. Também é dito que essa é a ilha onde as ilusórias Esmeraldas do Caos adormecem. Elas são super substâncias que dão energia a todas as coisas vivas. Além disso, elas também podem ser usadas pela ciência e tecnologia como armas nucleares ou laser de alta energia.” 

É interessante notar que essa menção a armas nucleares só aparece no manual do jogo lançado no Japão, justamente o único país do mundo que sofreu ataques nucleares. Os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki pelos EUA no fim da Segunda Guerra Mundial não apenas mataram centenas de milhares pessoas e animais diretamente, como contaminaram os sobreviventes, plantas e rios com radiação, com consequências ambientais que só não foram piores que as de Chernobyl.

Com isso, no mundo de Sonic, a industrialização é consequência da cobiça do homem por poder tecnológico e militar.

E isso não se trata apenas de uma interpretação subjetiva. Em uma entrevista publicada em 2010, Yuji Naka, co-criador da série, diz por meio de intérprete: “Dr. Robotnik é uma representação ligeiramente radical de toda a humanidade e do impacto que ela está tendo na natureza. Em 1991 esse era um assunto muito sensível e, embora eu tivesse meu ponto de vista, na época não falei abertamente sobre isso. Com Sonic, tive a oportunidade de expressar meus pontos de vista de maneira diferente, com Robotnik por trás das máquinas e poluição que violam o meio ambiente.”

A temática ambiental é levada ainda mais a fundo em Sonic CD, que desenvolve essa mensagem a partir do conceito de desenvolvimento sustentável. Nele, Sonic começa cada fase no presente, podendo viajar para o passado ou para o futuro. O que é sempre bem evidente é que no passado intocado pelo Robotinik a natureza é exuberante, havendo traços de civilizações antigas que coexistiam com a fauna e a flora. Já no futuro contaminado pela industrialização desenfreada e tecnologia, as máquinas e a poluição tomam conta do cenário. Às vezes sequer há vida mais no local, restando apenas metal enferrujado e destroços.

Para evitar esse apocalipse industrial, o jogador precisa encontrar uma máquina do Robotinik no passado para eliminar sua presença no futuro, não apenas apagando a existência dos inimigos robóticos mas transformando os cenários em paraísos utópicos cheios de vida e cor. E essa é a forma como o jogo quer que você jogue: eliminando a presença de Robotinik e seus métodos insustentáveis no passado para garantir um bom futuro. 

O que é interessante de notar é que ele promove uma ideia de desenvolvimento sustentável, em que o progresso tecnológico não impede a preservação do meio ambiente. Que no mundo ideal, natureza e tecnologia coexistem em harmonia. Que isso é um bom futuro.

Sonic

Esse conceito de viagem no tempo também estaria presente em Sonic 2, mas devido seu prazo apertado de desenvolvimento, essas ideias foram descartadas. Contudo, o alerta de degradação ambiental permanece, com fases como a Oil Ocean Zone, que representa um derramamento em uma plataforma de petróleo, e a Chemical Plant Zone, onde uma água contaminada por resíduos químicos é praticamente sinônimo de pesadelo.

Leia também: O que esse jogo polonês nos ensina sobre a polarização política

Em 1992, enquanto Sonic CD estava sendo desenvolvido e pouco antes do lançamento de Sonic 2, foi realizada no Rio de Janeiro a terceira e histórica edição da Cúpula da Terra, a ECO 92. A importância atribuída à questão ambiental era tão grande naquele momento que a conferência reuniu Chefes de Estado de quase todos os países do mundo — mais precisamente, 178. Ao longo de uma semana e meia, eles discutiram medidas que protegessem coletivamente o planeta e promovessem o desenvolvimento sustentável. E uma das palavras-chave deste evento, repetida incontáveis vezes em todos os discursos foi “futuro”.

Não se faz um bom futuro se no presente não há consciência sobre nosso impacto no meio ambiente, se nossa relação com a natureza é apenas exploratória. O discurso na ECO 92 da canadense Severn Cullis Suzuki, que então tinha apenas 13 anos, simboliza o quão importante foi este evento para a humanidade e as próximas gerações que viriam.

A ciência descreve as consequências catastróficas da mudança climática há mais de 30 anos. E, mais do que nunca, entendemos o impacto da poluição nas nossas próprias vidas. Segundo a OMS, a Organização Mundial da Saúde, 1 em cada 9 mortes é causada pela poluição. Só de respirar ar poluído, você corre o risco de eventualmente sofrer um AVC ou desenvolver doenças como câncer ou alzheimer.

E, apesar disso, o mundo está assistindo ao completo desmantelamento das políticas ambientais na maior potência econômica do mundo. Em dois anos de mandato, o presidente dos EUA Donald Trump já revogou duas importantes conquistas ambientais: o Plano de Energia Limpa assinado por Barack Obama, que obrigava os estados a limitarem as emissões de carbono em usinas, e a saída dos EUA do Acordo de Paris, um tratado assinado por praticamente todos os países do mundo, que os comprometem a cumprir diversas medidas para reduzir o aquecimento global.

O Brasil de Jair Bolsonaro corre o risco de seguir o mesmo caminho. O presidente eleito, que imita Donald Trump, já declarou interesse em abandonar o tratado de Paris e a ONU e explorar terras indígenas e preservadas. Multado por crime ambiental em 2012, ele diz que órgãos como o Ibama, são, como ele mesmo descreve, “xiitas”, e que pretende acabar com essa forma de ativismo.

Esse relaxamento das políticas ambientais e vilanização ecológica nos EUA e no Brasil em prol das indústrias que poluem e desmatam é um enorme retrocesso, com consequências que extrapolam os limites geográficos e que poderão ser sentidas por todas as formas de vida na Terra, mesmo que inadvertidamente.

E quando a gente considera esse contexto político, Sonic se torna uma série inesperadamente subversiva. Mesmo quando olhamos para os jogos da fase 3D do personagem, ele se mantém evocando imagens de desastres ambientais e associando seu vilão à industrialização e à exploração predatória dos recursos naturais. De alguma forma, Eggman e Trump até se parecem, compartilhando uma personalidade narcisista e megalomaníaca. No episódio 18 da segunda temporada da série animada Sonic Boom, que parodia as eleições norte-americanas de 2016, Eggman é claramente inspirado em Trump.

O mais irônico disso tudo é que, segundo Ohshima, o senso de atitude de Sonic foi baseado no ex-presidente dos EUA Bill Clinton, um democrata tal como Barack Obama, cujo braço direito era ninguém menos que Al Gore, um dos maiores ativistas ambientais do congresso norte-americano.

Quando Sonic foi criado para refletir o zeitgeist cultural dos anos 90, Ohshima e Naka provavelmente não imaginavam que quase 30 anos depois ele poderia ser visto como uma mensagem de resistência.

Num mundo onde o lucro é mais valorizado do que nossa própria perspectiva de futuro, ambientalismo e sustentabilidade não são apenas questões políticas, mas de sobrevivência. E se a gente é capaz de enxergar o heroísmo ambiental em um ouriço azul de sapatos vermelhos, provavelmente somos capazes de fazer o mesmo com seres humanos.

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