Sustentabilidade

Terra arrasada

Bolsonaro deixou de investir 3,3 bilhões de reais do Fundo Amazônia, a acumular 56 projetos “em análise”

Devastação. A Floresta Amazônica perdeu mais de 8,5 mil quilômetros quadrados de cobertura vegetal apenas no último ano - Imagem: Greenpeace Brasil/Arquivo
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Sob a direção de Jair Bolsonaro, o Brasil não cessa de bater recordes negativos na seara ambiental. Após concentrar 40% da perda de mata nativa em todo o mundo no ano passado, o País atravessa 2022 com voracidade redobrada sobre suas florestas. O mês de julho foi o sexto com maior número de alertas de desmatamento registrados no atual governo, cúmplice por ação ou omissão de uma devastação que, segundo levantamento feito pela plataforma de monitoramento Global Forest Watch, desde janeiro de 2019 já consumiu cerca de 4,5 milhões de hectares da Amazônia e de outros biomas brasileiros.

Ao término de mais um ano-referência de medição do desmatamento pelo Inpe, que vai de agosto de 2021 a julho de 2022, ao menos 8,5 mil quilômetros quadrados de floresta foram derrubados, número próximo ao do período anterior, quando o País registrou o maior índice de devastação dos últimos 15 anos. Sugerida por Ricardo Salles e continuada por seu clone e sucessor à frente do Ministério do Meio Ambiente, Joaquim Leite, o estouro da “boiada” que afrouxou normas, sucateou órgãos de fiscalização e esvaziou fontes de financiamento deixou o Brasil sem defesas contra a devastação ambiental protagonizada por madeireiros, grileiros, garimpeiros ilegais e setores do agronegócio.

O estudo do Inesc também denuncia nomeações políticas sem critério técnico e redução das verbas para a fiscalização

O calcanhar de aquiles dessa fragilidade é a paralisação dos fundos de financiamento às políticas ambientais. O governo, atendendo em parte às pressões do Supremo Tribunal Federal para a retomada das ações financiadas pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente ­(FNMA) e pelo Fundo Amazônia, publicou no ­Diário Oficial de 26 de julho a portaria de criação de um grupo de trabalho para reestruturar esse último. A medida é, porém, vista como tímida pelas entidades socioambientais, que pregam uma total reversão no atual processo de desmonte. Um diagnóstico do abandono dos dois maiores fundos ambientais brasileiros é feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc, nos primeiros capítulos da série “Caminhos para o Financiamento da Política Socioambiental no Brasil”, recém-lançada.

Proposta pelo próprio Brasil em 2006 durante uma conferência da ONU sobre o clima, a criação do Fundo Amazônia foi vitaminada com doações – principalmente dos governos da Noruega e da Alemanha – que possibilitaram um caixa de 4,8 bilhões de ­reais, rendimentos incluídos. Desse montante, no entanto, 3,3 bilhões continuam sem ser alocados, enquanto 56 projetos estão represados há anos, em fase de análise: “Em 2019, as inciativas foram paralisadas pelo atual governo, dando início a uma era de destruição da política ambiental na Amazônia”, diz o estudo do Inesc. O relatório aponta problemas que contribuíram para o esvaziamento do fundo, como “falta de pessoal, gestão infralegal, nomeações políticas sem critério técnico e redução de orçamento nos órgãos de fiscalização”.

Assessora política do Inesc e autora do estudo, Alessandra Cardoso afirma que “o desmonte do Fundo Amazônia ignorou décadas de lições aprendidas sobre como combater o desmatamento”. Ela diz que “não existe política sem financiamento”, por isso é urgente a recomposição da capacidade de execução orçamentária do fundo: “A política socioambiental brasileira precisa ser retomada com a máxima urgência, dado o estado de desmonte da sua estrutura e institucionalidade, o que levou ao descontrole do governo em relação a problemas de alta sensibilidade e relevância, como o desmatamento e o avanço de uma série de outras atividades ilegais sobre áreas protegidas e terras da União, a exemplo do garimpo”.

Descrédito. Com Salles e Bolsonaro, o Brasil deixou de ser um respeitado interlocutor na área ambiental e tornou-se um pária, concentrando 40% do desmatamento mundial – Imagem: Redes sociais e Frederico Gambarini/DPA/AFP

Para representantes do movimento socioambiental, a revitalização dos fundos passa necessariamente pela derrota do governo Bolsonaro: “Não existem condições para captar recursos, principalmente com instituições e fundos ambientais internacionais, se o Brasil continuar a ser considerado um pária ambiental. Assim, é fundamental retirar o atual governo e eleger um presidente que possa nos dar credibilidade. Não falta interesse de órgãos internacionais para doarem ao Brasil, mas, com Bolsonaro presidente, só andamos para trás nessa agenda”, diz Pedro Ivo Batista, membro da Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de ONGs pelo Meio Ambiente (FBOMS) e dirigente da Associação Alternativa Terrazul.

A visão é compartilhada pelo deputado federal Rodrigo Agostinho, do PSB, expoente da Frente Parlamentar Ambientalista: “Presenciamos nos últimos três anos e meio o total esfacelamento dos fundos de financiamento e dos investimentos no combate ao desmatamento. Não há política pública, não há vontade política. Para tentar reverter o estrago, é preciso que a população tenha consciência na escolha de seus representantes para o Legislativo e eleja um presidente da República com um plano de governo comprometido de fato com o meio ambiente”, diz. Para o parlamentar, investir em orçamento, fiscalização, comando e controle é o caminho para deter o desmatamento: “Os grileiros criminosos e os garimpeiros ilegais agem à luz do dia, sem qualquer tipo de reprimenda. A longo prazo precisamos de estratégias econômicas como o Programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), a criação e demarcação de áreas protegidas, as concessões florestais e a bioeconomia”.

O Fundo Nacional do Meio Ambiente padece com os cortes orçamentários da chamada “reserva de contingência”

A principal proposta do Inesc é a retomada do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa) nos moldes em que funcionava antes de a participação da sociedade civil ter sido extinta por Bolsonaro. Desde abril, o STF formou maioria determinando esse movimento, mas o governo até agora não revitalizou o comitê. “É necessário que seja editado novo decreto restabelecendo a participação social e que esta importante instância de governança que é o Cofa defina prioridades para aplicação dos recursos”, diz Cardoso. Um comitê ativo, acrescenta a assessora política, “deve contribuir para que sejam aperfeiçoadas diretrizes e orientações para que o Fundo Amazônia volte a operar com maior escala e velocidade, sem entraves burocráticos”.

Pedro Ivo propõe uma “reestruturação democrática do Cadastro Nacional das Entidades Ambientalistas (CNEA)”, com eleições para o Fundo Amazônia, assim como para o FNMA. O ambientalista, dirigente nacional da Rede e integrante de uma chapa coletiva ao Senado pelo Distrito Federal, diz esperar que um novo governo possa “retomar o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento da gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, expandindo-o para todos os biomas e trabalhando para instituir o desmatamento zero”. A proposta de retomada do PPCDAM, esvaziado e substituído por um simulacro pelo governo federal em 2020, também é feita pelo Inesc, que aponta o plano como “o principal instrumento de financiamento da política que foi desmontada” por Bolsonaro.

Batista. “Sem mudar o governo, ninguém investe na Amazônia“ – Imagem: Redes sociais

No segundo capítulo da série, o Inesc aponta cinco atos de desmonte que fazem com que o FNMA “não exista mais”: corte de recursos, fim da participação da sociedade civil no Conselho Deliberativo, restrição à autonomia do Conselho, burocratização dos editais e sacrifício fiscal. Em relação aos recursos, é proposta a mudança da regulamentação que determinou que o fundo seja alimentado por 20% dos recursos arrecadados com as multas ambientais lavradas por Ibama e ICMBio: “Defendemos que o FNMA passe a contar com pelo menos 50% das multas do Ibama, em um contexto onde o órgão também precisa assumir um papel mais ativo no comando e controle, fiscalizando e punindo desmatadores ilegais”, diz Cardoso. Há também outras fontes possíveis de receita ligadas à exploração de recursos naturais de alto impacto socioambiental, acrescenta, como a Compensação Financeira pela Exploração Mineral, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Hídricos e os ­royalties do petróleo: “Defendemos que os recursos do FNMA não sejam capturados pela nefasta ‘reserva de contingência’, como acontece há alguns anos”.

Representante da sociedade civil de 1999 a 2001 e depois coordenador-geral do FNMA no governo Lula, o advogado Rogério Rocco concorda com o diagnóstico do Inesc: “A partir do momento em que se desconstruiu aquilo que é a essência do FNMA, ou seja, a participação de amplos setores da sociedade, ele passou a ser meramente um conjunto de letrinhas dentro da estrutura do Ministério. Os recursos dos programas eram submetidos a um processo de aprovação legitimado pela garantia da participação e do controle social e da intervenção direta da sociedade na análise, fiscalização e aprovação final dos gastos. Isso constitui a essência do fundo, mas, a partir do momento em que perde essa estrutura, o fundo deixa de existir”.

Rocco, que também aponta a retomada do PPCDAM como pontapé inicial de uma nova política ambiental em um eventual novo governo, propõe “um grande revogaço desses decretos, portarias e instruções normativas que foram dolosamente alteradas pela gestão criminosa de Ricardo Salles e Jair Bolsonaro”. E acrescenta: “É preciso recolocar à frente dos órgãos ambientais gente competente, servidores qualificados e comprometidos em cumprir a lei e limpar as instituições dessa horda de incompetentes e delinquentes que as ocupou. Só assim se poderá retomar a governança da Amazônia e um processo permanente de diálogo e acordo para desenvolver a região, respeitando e se integrando aos seus potenciais ambientais”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terra arrasada”

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