Sustentabilidade

O desafio de levar música às comunidades ribeirinhas da Amazônia

Um trabalho amazônico em um momento em que a mata grita por socorro ante a fúria dos predadores

Na Amazônia, um barco leva música para consolar a devastação. Foto: Daniel Herrera
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Recentemente conclui um mês inteiro na Amazônia a bordo da Gaia, a minha gaiola, uma embarcação de madeira com dois andares de convés, cheio de redes, típico desses rios. Levamos o cinema até as comunidades do Rio Paru, em uma zona perdida entre os confins do Pará e o Amapá, e apresentamos pela primeira vez a ópera para os ribeirinhos do Rio Arapiuns, afluente do Tapajós, com a presença de dois tenores italianos doc, provenientes de Modena, terra de Luciano Pavarotti. 

Eu estava realmente muito contente e, dulcis in fundo, o piloto do avião que me levava de Santarém até São Paulo, através de Brasília, ofereceu-me o que parecia ser um magnífico presente final. O Airbus saiu no sentido oposto ao de Santarém e eu, da janelinha à direita, pude ver, imersas em uma fantástica luz do pôr do sol, as praias do Tapajós que mais amo: Maria José, Arariá, Taparí… Sem dizer nada pelo autofalante, o piloto prosseguiu voando baixo, com os motores no mínimo, até virar sobre a Serra da Piroca, mostrando de perto a ponta do Cururu (um dedo compridíssimo apontando para o Tapajós, que naquele trecho é enorme, largo mais de 30 quilômetros) e exibindo a pérola dos Caribes amazônicos, o vilarejo de Alter do Chão, com seu promontório de areia pontuado por cabanas de palha que, com o reflexo do sol, pareciam incandescentes. 

Nunca havia visto um espetáculo tão belo em 15 anos que rodo por este paraíso, desconhecido para a maioria das pessoas. Uma apoteose! 

Mas logo depois, a menos de 1 quilômetro de Alter do Chão, eu os vi: inesperados, impensáveis, escarnecedores, com as cores cinza e ocre, a submergir do verde vivo da floresta, esquadrados, monótonos, sem vegetação. Campos imensos de soja. Em um ano eles cresceram ao infinito, erodiram centenas de milhares de hectares. Como os tentáculos de um polvo monstruoso, estão destruindo toda a selva ao redor do Tapajós. É terra queimada à direita e à esquerda da transamazônica Cuiabá-Santarém, recém-asfaltada. Por dezenas e dezenas de quilômetros. 

Eu podia ter tirado fotos perturbadoras, estabelecer nas imagens aquilo que estou contando para vocês, mas fiquei de boca aberta, estupefato, entontecido, paralisado: não esperava por isso. Sou amigo de um frade de 92 anos, Ettore Turrini, que passou uma vida irrealizável para defender os pobres e as árvores do Acre. Eis então: ele teria chorado!!! Eu fiquei somente embasbacado: perante meus olhos desenrolava-se o fim da Amazônia!

No Tapajós, a cacique Jarakí asperge uma fumaça negra, enquanto ora ao deus Tupã para salvar a floresta que está virando campo de soja

Alguns dias antes, os dois tenores tinham cantado na igreja de Alter do Chão a Ave Maria de Schubert e um Panis Angelicus. O público que lotava os bancos não acreditava nos próprios ouvidos: não tinham jamais ouvido duas vozes poderosas entoarem aquelas árias sacras com tanta poesia e potência. Fazia um calor infernal. Fomos todos para a pracinha para beber uma cerveja, mas, enquanto passávamos entre as mesas dos pequenos restaurantes cheios, pessoas um pouco “altas” nos receberam aos gritos de “Viva Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro…” 

Um amigo argentino tem um boteco por ali e nos explicou que se tratava de sojeiros, pessoas vindas recentemente do Sul, que não tinham respeito por nada nem por ninguém. Como o presidente, eles são descendentes de “vênetos” imigrados do Rio Grande do Sul à procura de terras cultiváveis, antes em Mato Grosso e, agora, impunemente, na Amazônia. De dentro daquele avião, de repente, entendi quem são e o que está acontecendo. 

O projeto ópera incorporou desta vez dois tenores de Modena, terra de Pavarotti.

Nunca vi tantas embarcações de grande porte e tantas jangadas gigantescas, empurradas por reboques de alto-mar, como vi agora em Santarém, onde a água límpida do Rio Amazonas se mistura com aquela escura do Tapajós. O terminal da Cargill vai a todo vapor para encher de soja, dia e noite, uma infinidade de navios de carga provenientes dos Estados Unidos, da China e da Europa. O terminal tinha nascido 16 anos atrás para fazer carregar a soja que descia em barcaças pelo Rio Madeira, de Porto Velho e do estado de Rondônia, então o mais martirizado da Amazônia. Mas era lógico que o terminal teria feito chegar, em breve tempo, as cultivações até o Rio Amazonas, e mais além: quanto mais próximas as plantações fossem de Santarém tanto mais econômico seria o transporte.

Com o vazio de um governo com um presidente inexistente e súcubo dos EUA, o gigante americano dos grãos, sem mais nenhum tipo de controle, aposta agora com a Alcoa (o gigante americano do alumínio, presente com minas de bauxita em Juruti, a três horas de navegação de Santarém), a quem se consegue dedicar mais contra o pulmão verde do mundo, com passagem livre para os sojeiros (cultivadores de soja), grileiros (falsificadores de documentos para apropriar-se de propriedades de outros ou do governo), madeireiros (cortadores ilegais de madeira), garimpeiros (procuradores de ouro e outros metais) e aos que provocam incêndios… Um apocalipse!

A paisagem beira-rio foi devastada pela soja. Foto: Daniel Herrera

No Tapajós sobrou uma faixa de floresta primária com uma fachada sutil. Igual aos filmes de western de antigamente: uma aparência de saloon que não tem nada atrás dela. Não me critiquem se vos confesso que, a este ponto, não tenho mais esperanças: nós, homens, somos uma espécie maldita. Entre os índios há pessoas iluminadas, como a cacique da comunidade indígena de Lago da Praia, Ligiane, que nos ofereceu um ritual da etnia Jarakí em nheengatu (língua aborígene da Amazônia), na luz do crepúsculo, na praia encantada de Arapiuns. Em meio à fumaça sagrada que saía de um paiol de cerâmica, dedicava ao deus Tupã fervorosas preces para salvar a floresta da devastação e para impedir a alienação de seu povo. 

Mas as suas desesperadas palavras contra a avidez dos potentes não chegavam às mentes dos mais jovens, que giravam em círculos, com os cocares nas cabeças, mas rindo. Vimos crianças com celulares de última geração nas mãos em um lugar onde não há nenhuma cobertura para celulares, e talvez nunca haverá: pura emulação, fotos, joguinhos eletrônicos…

A Gaia chega ao Tapajós trazendo música e dança.

Até o carimbó, belíssimo ritmo típico da região do Baixo Amazonas, parece ter-se dissolvido no nada. A Cauatuea, no Rio Paru, vilarejo formado por 15 míseras casas de madeira sobre palafitas, conectadas por uma passarela cambaleante, de segunda a sexta-feira, o megafone comunitário difunde, do amanhecer até o entardecer, músicas e discursos evangélicos. É uma lavagem cerebral operada por aquelas igrejas que foram, juntamente com as fake news de Steve Bannon no WhatsApp e no Facebook, as grandes responsáveis pela eleição de Bolsonaro. Depois, de repente, o sábado e o domingo passam, como se nada fossem, do sacro ao profano: o dia todo martela, com a eletricidade de uma bateria, o funk mais monocórdio e brega que existe, entoando hinos para a perereca (que em português significa rã, mas também o órgão sexual feminino) que foge e não se deixa que ninguém a apanhe.     

A ideia de levar cultura para a Amazônia a bordo da gaiola flutuante Gaia, sob a forma de cinema, teatro, marionetes e obras líricas, não parece mais ter razão de ser. O projeto foi batizado de Fitzcarraldo, do filme de Werner Herzog, de 1981. Aquela legendária película inicia-se com uma frase indígena que não posso compartilhar em cheio, à vista da arrepiante ruína que está tomando conta desta imensa e maravilhosa região: “Certos índios usam o termo Cayahuari Yacu para definirem a Amazônia: a terra onde Deus não terminou a criação. Eles acreditam firmemente que, somente quando o homem estiver extinto, Deus voltará para terminar o seu trabalho”.

* Oliviero Pluviano, 67 anos, é um jornalista italiano que trabalhou por 22 anos como correspondente da agência Ansa. Desde quando se aposentou (2012), cuida do projeto Fitzcarraldo com o barco Gaia na Amazônia, dos 100 Nonni, procurando e entrevistando os vovôs da imigração italiana, e de um acervo de fotos dos grafites da metrópole de São Paulo. Em 2014, recebeu o título honorífico de cavaliere do presidente da República da Itália.

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