Sustentabilidade

Mancha de petróleo se espalha em meio à inoperância de Bolsonaro

Ministro Ricardo Salles só visitou uma das praias atingidas em 7 de outubro, mais de um mês após o aparecimento das primeiras manchas

Visita indesejada. Moradores das praias atingidas foram surpreendidos com a chegada da borra densa e preta. Foto: Raul Spinassé/Folhapress
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Do dia para a noite, uma borra densa, grossa e preta tomou a Praia do Forte, localizada na cidade de Mata de São João, no litoral norte baiano. “Parece uma massa daquelas de fazer pão, mas enorme, pesada. O cheiro era bem forte, principalmente em contato com o calor”, relata o argentino Javier Rozas, de 33 anos, dono de um restaurante local. O óleo chegou por lá em 11 de outubro, mas avança pelo mar nordestino desde o dia 30 de agosto.

De acordo com o Ibama, a mancha atingiu 166 localidades em todos os estados do Nordeste. Mais de 198,5 toneladas de resíduos foram recolhidas, um desastre ambiental de grandes proporções. Apesar da gravidade da situação, o episódio demorou a ser levado a sério. De braços cruzados por mais de um mês, o governo federal parece preocupado apenas em apontar os responsáveis pelo vazamento de óleo, mas a lista de culpados só aumenta, e o quebra-cabeça segue sem solução.

Uma força-tarefa foi formada para buscar respostas. A investigação da origem das manchas está sob a responsabilidade da Marinha e da Polícia Federal, que apuram a possibilidade de um crime ambiental. O Ibama e o ICMBio analisam os impactos ambientais do vazamento, enquanto a Petrobras atua regionalmente, contratando funcionários terceirizados para fazer a limpeza das praias.

As manchas atingiram diversos estados ao mesmo tempo, e foram notadas primeiramente nas praias de Pernambuco, Paraíba e Sergipe. Ao se aproximar da costa baiana, pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, em parceria com a Universidade Federal de Sergipe, recolheram amostras das manchas de óleo em 4 de outubro. A pesquisadora Olívia Cordeiro, da UFBA, explica que os testes permitem identificar se o óleo é de origem brasileira.

“Essas amostras carregam uma espécie de ‘impressão digital’, biomarcadores e isótopos estáveis. Cada óleo é produzido em uma bacia petrolífera que teve condições ambientais diferenciadas na época de formação”, explica. Com o resultado de que o óleo teria grandes chances de ser de origem venezuelana, a universidade logo foi procurada pela Petrobras, que também realizou os testes e reafirmou a análise da UFBA. Além disso, também concluíram que as manchas eram de petróleo cru, ou seja, um composto sem qualquer tipo de refinamento.

Manchas de óleo atingem o litoral do estado de Sergipe. Foto: Marcos Rodrigues/AFP

Pelo aspecto das borras, Cordeiro diz que as manchas devem estar na superfície do mar há mais de dois meses. A Marinha notificou 30 navios-tanque de dez diferentes nacionalidades que tiveram percurso confirmado na região, mas ainda não existe nada conclusivo, nem mesmo por imagens de satélite. Por suas características físicas, o óleo pode ser encoberto por uma fina camada de água do mar, o que impossibilita a identificação das manchas ao se observar de cima, explica a pesquisadora. Por esse motivo, ao fazerem uma varredura a pedido do governo brasileiro, satélites americanos também não foram capazes de identificar a origem das manchas no oceano.

Sem respostas conclusivas, começaram a surgir outras hipóteses. No fim de setembro, a Administração Estadual do Meio Ambiente de Sergipe avistou barris de óleo na praia Barra dos Coqueiros, litoral norte do estado, identificados como lubrificantes da empresa holandesa Shell. Pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe atestaram que o conteúdo do barril era o mesmo das borras. A empresa nega a correlação. “Isso aponta para uma possível reutilização da embalagem em questão”, disse a Shell em nota.

Os outros especulam sobre a possibilidade de a lambança ser obra de um “petroleiro fantasma”, um navio de transporte ilegal da commodity. Essa seria uma forma de driblar o embargo econômico dos EUA à Venezuela, dona de uma das maiores reservas de petróleo do mundo. William Nozaki, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, conhecido pela sigla Ineep, explica que as sanções impulsionam a atuação de navios que desligam os transmissores para não serem identificados por satélites.

Mais de 198,5 toneladas de resíduos foram removidas da costa nordestina

“O embargo dos EUA sobre o Irã e a Venezuela encareceu o valor do frete nos mares desses países. Esse aumento de custo logístico tem provocado o crescimento do número de navios-tanque trafegando em alto-mar sem rastreamento”, diz Nozaki. Além disso, o sucateamento dos portos venezuelanos fez com que a estatal PDVSA passasse a abastecer seus navios em alto-mar, o que também aumenta as chances de vazamento de óleo.

A PDVSA negou, em 10 de outubro, que o petróleo na costa brasileira tenha sido proveniente de seus portos. Ricardo Salles rebateu e disse que a resposta do governo venezuelano era “descabida”, já que ele nunca afirmou que o óleo tinha vindo diretamente dos poços do vizinho sul-americano. Mesmo assim, o ministro correu para as redes sociais para alimentar teorias conspiratórias. “Óleo venezuelano, em barril de lubrificante reutilizado […] Deve ter caroço nesse angu aí”, escreveu.

A Petrobras contratou terceirizados para a limpeza. Foto: Ademas/AFP

Apesar do tom provocativo, o ministro do Meio Ambiente não deveria estar tão confiante. Deputados querem convocá-lo para prestar esclarecimentos na Câmara. “É época de reprodução das tartarugas marinhas, do peixe-boi marinho, nós temos a chegada de aves migratórias para o Brasil. É uma situação superdelicada. A gente sente que o governo demorou demais para agir”, afirma Rodrigo Agostinho, do PSB-SP, um dos autores do pedido. De fato, Salles só visitou uma das praias atingidas em 7 de outubro, mais de um mês após o aparecimento das primeiras manchas.

Com esse mesmo entendimento, deputados do PT solicitaram ao procurador-geral da República, Augusto Aras, a abertura de um inquérito para apurar as más condutas administrativas do ministro. De acordo com o Plano Nacional de Contingência, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2013, o governo poderia ter convocado grupos de acompanhamento e avaliação e comitês de suporte para agilizar o trabalho emergencial.

Os deputados sustentam que o ministro cometeu crime ambiental por “deixar de adotar medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental irreversível”, além de incorrer em infração administrativa por violar as regras jurídicas na promoção e preservação do meio ambiente. Ambas as acusações, se comprovadas, poderiam custar a Salles o cargo de ministro.

Não se descarta a possibilidade de um “petroleiro fantasma” ser o responsável pela lambança

De acordo com o relatório de áreas atingidas apresentado pelo Ibama, 72 municípios em todos os estados da Região Nordeste haviam sido afetados até 14 de outubro. A maioria dos locais possui vestígios esparsos, mas 15 deles ainda contêm as manchas pretas mais densas.

Na fauna, as tartarugas marinhas foram as mais impactadas. Ainda segundo o Ibama, 13 tartarugas foram encontradas mortas e 10 estavam com vestígios de óleo na carapaça. A veterinária Thais Pires, que atua no Projeto Tamar, na Praia do Forte, afirma que a maior preocupação é com os filhotes dos animais. “O óleo faz uma barreira física que não permite que o filhote alcance o mar. Ele tem 4 centímetros de carapaça e apenas 20 gramas. Nas áreas mais impactadas, a gente retira esses filhotes para soltar em locais mais limpos ou, em algumas situações, também fizemos solturas em alto-mar”, diz.

Bahia e Sergipe declararam situação de emergência por conta da persistência do óleo em suas áreas litorâneas. Ambos os governos pediram auxílio financeiro do governo federal para alocar recursos nas cidades mais afetadas. Em nota, o governo da Bahia afirmou que “as praias estão sendo limpas rapidamente à medida que os órgãos identificam as áreas com pontos de manchas de óleo. Não há, no momento, expectativa de redução do fluxo de turistas”.

Cenário. O vazamento pode prejudicar o ciclo reprodutivo das tartarugas.
Foto: Projeto Tamar/Fundação Pró-Tamar

Para a pesquisadora Olívia Cordeiro, da UFBA, as ações devem ser centradas na limpeza diária das regiões, uma vez que o tamanho do vazamento original e suas proporções de alcance permanecem desconhecidos. “Depende das correntes marítimas, da temperatura dessas correntes e do vento que fica na superfície dessa lâmina d’água.”

“Temos poucas informações sobre as repercussões futuras na vida das tartarugas. No momento, a gente tem lidado com a iminência de impactos já nesse ciclo reprodutivo”, acrescenta Thais Pires, do Projeto Tamar.

O cenário, no entanto, demonstra um pouco mais sobre a realidade dos aparelhos ambientais no Brasil. Para William Nozaki, estamos diante de uma tragédia anunciada, em razão do desaparelhamento dos órgãos de fiscalização. “O desmonte das políticas ambientais e de defesa coloca em risco nosso meio ambiente e nossos recursos naturais estratégicos.”

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