Marina Silva

Opinião

É fundamental nacionalizar o debate sobre a proteção da Amazônia

Os países ricos relutam em custear as adaptações necessárias nas nações em desenvolvimento, como se o naufrágio não fosse um risco concreto

Quem, eu? Os líderes mundiais parecem ignorar a gravidade da crise climática
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É preciso dizer que para nós, brasileiros, a COP26, a mais importante reunião global sobre o clima, foi mais um momento em que o presidente da República, Jair Bolsonaro, demonstrou sua compreensão insuficiente das questões ambientais. Além de se apresentar com imagem e currículo de vilão, nosso país esteve representado apenas pelo nível ministerial através do ministro de Meio Ambiente, Joaquim Leite. Este levou na bagagem pouco compromisso e muita demanda por recursos, sem fazer o dever de casa, que é proteger o meio ambiente. Não à toa, a nossa delegação guardava vergonhosamente um segredo: os dados do Inpe sobre o desmatamento crescente, que gerariam críticas e cobranças na reunião de cerca de 200 países, além de fragilizar algumas das afirmações carregadas de autoelogio sobre a política ambiental feitas pelas autoridades brasileiras.

Ao final do evento, o debate interno não foi sobre resultados, compromissos e estratégias para cumpri-los, mas uma celeuma sobre o ministro Joaquim Leite ter ou não manobrado, quanto às informações sobre desmatamento enviadas pelo Inpe à sua pasta bem antes de a comitiva embarcar para Glasgow. Assim, tivemos um lamentável desempenho antes, durante e depois da COP26 em razão da desastrosa participação do governo Bolsonaro. Nosso país é líder no ranking de biodiversidade da ONU e já teve protagonismo nas convenções ambientais, nas quais tive oportunidade de contribuir enquanto ministra do Meio Ambiente, de 2003 a 2008. Nesta edição, restou o constrangimento de receber o antiprêmio Fóssil do Dia, conferido pelo movimento ambientalista ao representante do Brasil.

O Pacto pelo Clima de Glasgow, que oficializa os consensos em termos de ações políticas, traz avanços e frustrações. As frustrações em geral se devem a vários fatores, como, por exemplo, a completa falta de conciliação em relação às contribuições da ciência, que apontam para a necessidade de financiar os países em desenvolvimento e reduzir emissões; o ambiente político interno dos países e seus jogos de pressão de setores da economia; uma participação ativa do mundo corporativo, notadamente da indústria fóssil para defender seus interesses acima da segurança de todos e, em particular, de 48 países cujos territórios estão sendo reduzidos pelo aumento do nível dos mares em razão das mudanças climáticas.

Duas grandes barreiras não foram superadas ao final dos debates na COP26. Uma delas foi a atuação das corporações empresariais para impedir compromissos mais arrojados no corte de emissões, principalmente da indústria fóssil. A outra foi o jogo de empurra entre os países ricos e as nações em desenvolvimento sobre o financiamento climático. No primeiro caso, um estudo publicado recentemente na revista Nature identificou que novos fundos para financiar a indústria fóssil receberam das maiores economias do planeta, desde o início da pandemia, o montante de 300 bilhões de dólares, o que sinaliza o tamanho do desafio para que o planeta tenha uma matriz energética limpa até 2050, com zero emissão de gases de efeito estufa. No segundo caso, os países ricos cobravam das nações em desenvolvimento compromissos maiores com a redução de emissões e estes, por sua vez, redarguiam que o financiamento climático não é caridade, mas uma obrigação histórica dos maiores emissores ao longo do tempo.

O INVESTIMENTO NA INDÚSTRIA FÓSSIL AINDA É TRÊS VEZES SUPERIOR AO VALOR DESTINADO PARA UMA ECONOMIA COM BAIXO CARBONO

Esse embate impediu que se chegasse a um acordo para o cumprimento da meta de 100 bilhões de dólares para financiar a mitigação, adaptação e tecnologias de transição para economia de baixo carbono, sobretudo para os países em desenvolvimento de renda baixa e renda média. Esse valor é três vezes menor do que a quantia destinada à indústria fóssil. Em ambos os casos, não estão sendo ouvidos os apelos da ciência. É como se o mundo fosse um barco com buracos na ponta ocupada pelos países em desenvolvimento e os países ricos e suas poderosas corporações dissessem que o buraco não fica do lado deles. É uma irracionalidade? É, no mínimo, uma lógica incompatível com o que seria racional fazer, pois um colapso climático destruiria todo o nosso modo de vida ou até a própria vida.

Os resultados positivos da COP26 são ações incrementais quanto à ­necessidade­ de ações drásticas. Sem dúvida, foi importante a declaração internacional de líderes mundiais para preservar as florestas e reduzir o desmatamento e a degradação dos solos até 2030, bem como a decisão de limitar o aquecimento global a 1,5 grau até o fim do século, como previsto no Acordo de Paris. Isso significa reduzir, já em 2030, as emissões em 45% em relação aos níveis de 2010 e chegar a zero emissões líquidas em 2050. Da mesma forma são bem-vindos o aumento do financiamento dos povos indígenas, que são responsáveis por áreas que guardam 80% da biodiversidade do mundo; o encerramento da venda de carros a combustão a partir de 2035; e o acordo para a redução do metano que propiciou declaração conjunta dos EUA e China, os dois maiores emissores de gases do planeta.

Pode-se afirmar que essa COP se realizou em circunstâncias únicas. De um lado, temos a gravidade dos eventos climáticos extremos em um nível que não havia sido ainda experimentado pela humanidade. O mundo tem várias regiões castigadas com ondas de calor, tempestades, inundações e incêndios, com perda de vidas e de patrimônio público. De outro lado, nunca tivemos tantos dados e conhecimento sobre o funcionamento de nossa atmosfera e os impactos da ação humana sobre ela. Entre a gravidade da situação e um colossal volume de informação, o mundo fez suas escolhas.

No Brasil, o debate sobre a proteção ambiental, principalmente no que concerne a zerar o desmatamento em nossas florestas, reveste-se de importância estratégica. É fundamental nacionalizar o debate sobre a proteção da Amazônia, que é o principal indicador de compromisso com algum chão de futuro para o nosso país, de alguma fonte de esperança para a nossa casa comum, o planeta. •


*Fundadora da Rede Sustentabilidade, foi candidata à Presidência da República nas últimas eleições, senadora (1995-2011) e ministra do Meio Ambiente (2003-2008).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: EWAN BOOTMAN/NURPHOTO/AFP

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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